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Os Espelhos Quebrados de Narciso. Diálogos pós-coloniais sobre memória e história de Angola

Catarina Antunes Gomes
Catarina Antunes Gomes is a researcher at the Centre of Social Studies of the University of Coimbra and a member of Studies on Democracy, Multicultural Citizenship and Participation of the same institution. She has a PhD degree on Sociology attributed by the School of Economics of the University of Coimbra. Her academic formation is in Social (...)

citation

Catarina Antunes Gomes, "Os Espelhos Quebrados de Narciso. Diálogos pós-coloniais sobre memória e história de Angola ", REVUE Asylon(s), N°10, juillet 2012/juillet 2014

ISBN : 979-10-95908-14-2 9791095908142, Défaire le cadre national des savoirs, url de référence: http://www.reseau-terra.eu/article1322.html

à propos

Narcisse est évoqué ici métaphoriquement pour désigner les limites de la raison indolente – raison qui, suite à la caractérisation de Santos (par exemple, 2002), est déclarée comme l’un de ses axes principaux constituant la modernité occidentale. Comme Narcisse, décrit dans la version d’Ovide, qui n’est capable d’appriecier que son propre reflet, l’auto-référencialité de la modernité occidentale présente une résilience enracinée qui la rend difficilement surmontable. Les miroirs brisés de Narcisse signifient, donc, l’interpellation postcoloniale qui est adressée à la raison indolente.

Le sujet principal consiste à étudier la possibilité de développer une analyse postcoloniale de l’expérience et de la mémoire du colonialisme portugais en Angola. Cela implique l’exercice d’une conscience critique sur deux défis associées : avant tout, envisager sérieusement le défi postcolonial du rôle de la bibliothèque coloniale sur l’invention et la nomination de l’autre et du besoin d’instituer une justice cognitive qui peuve conduire à la justice ontologique ; deuxièmement, considérer le défi sérieux des épistémologies du Sud, non comme une nouvelle pratique d’exclusion dans laquelle un centre est remplacé par un autre centre, mais plutôt comme une véritable pratique éthique d’élargissement du réel pour mieux comprendre l’expérience des sujets et des processus historiques.

Note des rédacteurs de TERRA : Les images et cartes de ce document n’apparaissent que dans la version PDF ci jointe du document, de même que les références (à partir de la n. 40 et de p. 67).

résumé

English

In this work, Narcissus is metaphorically evoked to designate the limits of the indolent reason – a reason which, following the characterization of Santos (e.g., 2002), is stated as one of its principal axes constituting Western modernity. Such as Narcissus, described in Ovid’s version, who is not capable of appreciating anything but his own reflection, the self-referenciality of Western modernity has presented a rooted resilience which makes it hard to overcome. The broken mirrors of Narcissus means, thus, the postcolonial interpellations that are addressed to the indolent reason.

The main topic is exploring the possibility of developing a post-colonial analysis of the experience and the memory of Portuguese colonialism in Angola. This implies the exercise of a critical consciousness about two associated challenges : a) to seriously consider the postcolonial challenge about the role of the colonial library on invention and in the nomination of the other and about the need to institute a cognitive justice that inaugurates also an ontological justice ; b) to seriously consider the challenge of Southern epistemologies, not as a new practice of exclusion in which a centre is replaced by another centre, but as an ethical practice of enlargement of the real for understanding the experience of subjects and of historical processes.

A note by the TERRA editors : Footnotes (from n.40 and p. 67 on), pictures & maps appear only in the attached PDF version of the current document .

Português

Neste trabalho, Narciso é evocado metaforicamente para designar os limites da razão indolente – razão esta que, seguindo a caracterização de Santos (v.g., 2002), se afirma como um dos principais eixos constitutivos da modernidade ocidental. Tal como Narciso, descrito na versão de Ovídio, que nada mais é capaz de apreciar que não seu próprio reflexo, a auto-referencialidade da modernidade ocidental tem apresentado uma enraizada resiliência que a torna dificilmente superável. Os espelhos quebrados de Narciso designam, assim, as interpelações pós-coloniais que são dirigidas à razão indolente.

A temática primeira consiste em explorar as possibilidades de desenvolvimento de uma análise pós-colonial sobre a experiência e a memória do colonialismo português em Angola. Tal implica o exercício de uma consciência crítica sobre duas questões associadas : a) considerar seriamente o repto pós-colonial sobre o lugar da biblioteca colonial na invenção e na nomeação do outro e sobre a necessidade de procurar instituir uma justiça cognitiva que inaugure, também, uma justiça ontológica ; b) considerar seriamente o repto das epistemologias do sul, não como nova prática de exclusão em que um centro é substituído por outro centro, mas como prática ética de ampliação do real em prol da compreensão da experiência de sujeitos e processos históricos.

A nota dos editores TERRA : As notas de rodapé (de n.40 e p. 67 em diante), imagens e mapas aparecem apenas na versão PDF em anexo do documento atual.

Mots clefs

"Os Espelhos Quebrados..."

PDF - 4.5 Mo

"Este trabalho foi desenvolvido no âmbito do projeto de investigação ’ALICE, espelhos estranhos, lições imprevistas’, coordenado por Boaventura de Sousa Santos (alice.ces.uc.pt) no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra - Portugal. O projeto recebe fundos do Conselho Europeu de Investigação, 7.º Programa Quadro da União Europeia (FP/2007-2013) / ERC Grant Agreement n. [269807]”.

NINI

Minha mãe.

Por me ensinar o respeito.

***

Agradecimentos.

A quem me ensinou.

A todos os que participaram na construção deste trabalho.

A Roberto de Carvalho.

A Boaventura de Sousa Santos.

A V.Y. Mudimbe.

Com gratidão.

***

Ocimbotowa fa kokuenye. Vamue vati : ‘tu u lilí kaliye !’. Puãi noke vati : ‘oco hacoko te knodombo momo oco tu ka kala longu su’. ‘Tunde ketele liako ovimboto vi lila lila kondombo lika ! [1]

O sapo morreu durante o tempo seco. Alguns dos seus filhos disseram : ‘choremo-lo agora !’. Mas depois acharam que não era bom e que o melhor era esperar o tempo das chuvas ; então eles teriam mais força para fazê-lo. [2]

***

Índice

Introdução

Os olhares de Narciso

A interrogação do tempo

Uma discussão pós-colonial sobre o tempo Da possibilidade da presença : as epistemologias do sul

A interrogação da memória

Memória como objecto : Halbwachs

Novos limiares

A interrogação da identidade

A interrogação do mal

A convocação pós-colonial da memória

I. As implicações epistemológicas da memória

Os desafios da memória

Ampliar o real

Inscrições e dilemas pós-coloniais

Entre a reminiscência e a suspeição : os dilemas da justiça e da identidade

Na face dos verbos que nos enunciam sem nos anunciar

Forças de resistência e forças de teorização

Quando enunciar é anunciar : inter-historicidade

A tradução inter-cultural como momento fundador da inter-historicidade

Da inter-historicidade à comunalidade

II. Instrução e educação colonial em Angola : a crítica à razão metonímica

A construção colonial de Angola através da instrução

A educação colonial no período tardio O ensino da portugalidade

Desarticulações coloniais

Poder ser : o papel da educação na luta pela libertação

III. Os espelhos quebrados de Narciso : a crítica à razão metonímica e a crítica à razão proléptica

Memórias anti-históricas

A nomeação do colonial : a escravatura

A nomeação do colonial : o terror

As irrupções da memória : como o presente chama o passado Vem do passado As funções da memória : a crítica pós-colonial

As guerras e os silêncios

Crítica à razão proléptica : cuidar o futuro

Reflexões finais

Uma nota final sobre Narciso : a comunalidade ou quem se lembra de Platão ?

Bibliografia.

***

OS ESPELHOS QUEBRADOS DE NARCISO. DIÁLOGOS PÓS-COLONIAIS SOBRE MEMÓRIA E HISTÓRIA DE ANGOLA

Na mitologia greco-romana, Narciso, filho de Cefiso e de Liríope, repudiou o amor que lhe era devotado por Eco, a ninfa. Castigado por Nêmesis, Narciso foi condenado a enamorar-se por si próprio. Conta a lenda que Narciso morreu, contemplando obsessivamente o seu reflexo nas águas de um lago. O amor pelo seu reflexo intangível ditou a sua morte em desespero. E, em desespero, Eco nada mais foi do que um apelo sem resposta. [3]

***

Introdução

Narciso é aqui evocado metaforicamente para designar os limites da razão indolente – razão esta que, seguindo a caracterização de Santos (v.g., 2002), se afirma como um dos principais eixos constitutivos da modernidade ocidental. Tal como Narciso, descrito na versão de Ovídio, que nada mais é capaz de apreciar que não seu próprio reflexo, a auto-refencialidade desta razão tem apresentado uma enraizada resiliência que a torna dificilmente superável. Os espelhos quebrados de Narciso designam, assim, as interpelações pós-coloniais que são dirigidas à razão indolente. A possibilidade de quebrar estes espelhos é, por seu turno, elaborada, essencialmente, a partir das propostas oriundas das epistemologias do sul, as quais assentam, fundamentalmente, na abertura à diversidade epistemológica do mundo. [4]

Na realidade, as análises que se inscrevem na teoria crítica contemporânea como pós-coloniais têm almejado superar o que qualificam como sendo a auto-referencialidade da modernidade ocidental. Um dos principais argumentos elaborados é que uma tal auto-referencialidade não poderá ser superada no seio do logocentrismo e da configuração epistemológica que a sustenta. O esforço de superação, entendido aqui não como prática de eliminação, mas como prática de ampliação, necessitará, portanto, de se ancorar em lugares de enunciação que se encontram, à partida, no momento fundacional e na actuação das nossas disciplinas, excluídos, ou normalizados, como excepções patológicas e/ou fases evolutivas. É nesta óptica que Santos elabora a sua proposta relativa às epistemologias do sul. Estão são, de modo sumário, conceptualizadas como o conjunto de epistemologias que visam a recuperação dos saberes e práticas silenciados e que são convocados a partir da hermenêutica diatópica (Santos, 2008).

O trabalho aqui apresentado e discutido submete-se a dois questionamentos : por um lado, um questionamento empírico e, por outro, um questionamento teórico-analítico. Ao nível do primeiro questionamento, há-que esclarecer que a temática primeira consiste em explorar as possibilidades de desenvolvimento de uma análise pós-colonial sobre a experiência e a memória do colonialismo português em Angola mediante as epistemologias do sul. Tal implica o exercício de uma consciência crítica sobre duas questões associadas : a) considerar seriamente o repto pós-colonial sobre o lugar da biblioteca colonial na invenção e na nomeação do outro e sobre a necessidade de procurar instituir uma justiça cognitiva que inaugure, também, uma justiça ontológica ; b) considerar seriamente o repto das epistemologias do sul, não como nova prática de exclusão em que um centro é substituído por outro centro, mas como prática ética de ampliação do real em prol da compreensão da experiência de sujeitos e processos históricos.

A este primeiro nível de questionamento, importa salientar três enfoques estruturantes. Em primeiro lugar, a necessidade de colocar história e memória em relação epistemológica. Como será explanado, a relação entre ambas tem sido objecto de intensas controvérsias, as quais derivam mormente do questionamento do privilégio epistémico atribuído à história. O debate sobre a possibilidade (ou sobre os limites) de encarar a memória como campo epistemológico permitiu não só o ampliar do leque de tópicos de possível abordagem, bem como o ampliar da concepção canónica de conhecimento, abrindo, por conseguinte, o olhar à diversidade epistemológica do mundo. Para além disso, o peso da influência da monocultura do conhecimento da razão indolente, assim como a preponderância da produção do conhecimento histórico construído, sobretudo a partir das fontes e dos olhares da autoridade colonial, têm contribuído, de modo significativo, para a invisibilização da experiência social dos sujeitos colonizados. A este respeito, a centralidade da memória é, portanto, dupla : ela permite, por um lado, focar a atenção nas ausências da análise histórica convencional sobre os regimes coloniais, e, por outro, concebida como conhecimento rival, ela permite aceder às formas pelas quais sujeitos historicamente secundarizados nomeiam, interpretam e ajuízam sobre a experiência desses mesmos regimes.

Em segundo lugar, no seio das epistemologias do sul, colocar em relação epistemológica história e memória requer uma dupla ecologia : a ecologia das temporalidades e a ecologia dos saberes. No âmbito das relações entre história, na sua acepção canónica, e histórias e memórias marginalizadas e/ou invisibilizadas, a ecologia dos saberes exige, de facto, que estas últimas sejam reconhecidas como campos epistemológicos. As especificidades dos sentidos de temporalidade, vividos e transmitidos, na, e pela, memória, por seu turno, apelam directamente a uma ecologia das temporalidades. Refira-se que, para Santos (cf. 2002 ; 2006), próprio o exercício da ecologia dos saberes é, inclusivamente, correlato de uma nova literacia temporal – a multitemporalidade. A multitemporalidade, enquanto diálogo de saberes diferentemente situados, possuídos, vividos e exercidos, depende, assim, do exercício da hermenêutica diatópica, o qual se transfigura, neste âmbito, num exercício de inter-historicidade.

A inter-historicidade que se procura constituir é, pois, o resultado desta dupla ecologia aplicada à reconceptualização das relações entre história e memória. Do ponto de vista das epistemologias do sul, esta inter-historicidade assentará, num primeiro momento, no trabalho da tradução inter-cultural, a qual é construída numa zona de contacto, onde as culturas trazem aquilo que consideram ser passíveis de tradução recíproca. Trata-se de uma zona de contacto de carácter cosmopolita, na medida em que, por via do princípio da reciprocidade, há uma recusa da auto-referencialidade da modernidade ocidental como parâmetro, regra e limite do diálogo.

Santos propõe para tal estratégias epistemológicas centrais. Em primeiro lugar, uma epistemologia dos conhecimentos ausentes – condição indispensável para o exercício da sociologia das ausências, pois para « identificar o que falta e por que razão falta, temos de recorrer a uma forma de conhecimento que não reduza a realidade ao que existe » (2002 : 229). Daí a relevância da memória. A epistemologia dos conhecimentos ausentes centra-se, neste trabalho, nas práticas sociais de memória (formas de evocação, nomeação, representação e simbolização do passado e estratégias de transmissão), consideradas estas como fontes de conhecimentos que interpelam as narrativas históricas dominantes originadas a partir da modernidade ocidental e moldadas pela natureza colonial desta. Uma segunda estratégia passa pelo que o autor conceptualiza como uma epistemologia dos agentes ausentes. Nela, a prática da rebeldia detém uma centralidade significativa, sendo aqui valorizado o papel da subjectividade desestabilizadora do conformismo, do unanimismo e da resignação fatalista ao realismo trágico. Mas é também duplamente central, na medida em que é nos agentes ausentes que estas práticas (frequentemente micro e a partir de fontes não elitistas e/ou canónicas) se elaboram. Tais estratégias forçam os limites da representação e presentificação do real historicamente elaborados pela razão indolente. Os limites da representação do real – neste caso proporcionados pela história -, são revisitados, neste trabalho, por dois modos principais. O primeiro é a trans-escala, a qual « pressupõe uma certa desaprendizagem dos actuais critérios de determinação de relevância », convidando-nos « a perscrutar a realidade social através de diferentes mapas cognitivos a operar em diferentes escalas » (Santos, 2002 : 233). O segundo é a perspectiva curiosa. De carácter lúdico, satírico e desestabilizador, a perspectiva curiosa interroga os critérios de relevância científica convencionais a partir do que estes consideram ser irrelevante, blasfemo ou herege.

Exibindo necessariamente uma natureza processual, a inter-historicidade constitui-se, assim, como um desafio permanente a regimes de verdade e autoridade. De facto, ao invés de operar como força de estabilização e institucionalização daqueles, o conceito de inter-historicidade, ancorado nos mecanismos acima descritos, afigura-se como uma dinâmica de interpelação mútua, pela qual o estatuto da constelação edificada entre conhecimento, representação e verdade é objecto de questionamento e de revisão não apenas pelos clássicos arcontes que estabelecem a anterioridade ontológica das disciplinas, mas também por sujeitos, historicamente situados, cuja dupla função de autoria/autoridade não tem sido reconhecida como fonte de interpelação válida. Neste sentido, a inter-historicidade assemelha-se a uma arena agnóstica e dialógica onde se processam « interactions between allegorical and empirical truths », a qual atesta, fundamentalmente, « the idea of truth as a project » (Mudimbe, 2013 : 67).

O segundo questionamento a que este trabalho se submete poderá ser descrito como meta-objectivo, dada a sua natureza teórico-analítica. É, no entanto, indispensável salientar que tal qualificação (‘meta’) não pretende designar a formulação de uma ‘super-teoria’. O desígnio aqui implícito procura revisitar criticamente alguns debates que foram sendo ostracizados pelo vigor do pensamento crítico contemporâneo, na sua declinação pós-moderna, pós-estruturalista e, também, pós-colonial. A recuperação crítica de tais debates insere-se no que atrás foi enunciado : considerar seriamente o repto das epistemologias do sul, não como prática de exclusão em que um centro é substituído por outro centro, mas como prática ética de ampliação do real em prol da compreensão da experiência de sujeitos e processos históricos. Esses mesmos debates podem, pois, ser re-colocados como uma revisitação de determinados conceitos e suas relações, tais como as noções de identidade, de inter-cultural e de transcultural. Essa re-colocação, por seu turno, é, em certo sentido, inescapável, se se considerarem os impasses simultaneamente epistemológicos, éticos e políticos, a que a radicalização da gramática pós-colonial da subalternidade e do essencialismo estratégico conduziu. Aliás, se o ‘meta’-objectivo das epistemologias do sul é a superação das linhas abissais que organizam o conhecimento, a realidade, o sentido e a identidade, como não revisitar tais debates ?

Poderá, pois, ser de utilidade a interrogação sobre a possibilidade de se pensar a diversidade epistemológica, incluindo a biblioteca colonial, em termos de comunalidade, ou de arquivo comum, cujas activações – contingenciais e selectivas – condensam opções e identidades particulares em dinâmicos processos de re-actualização e, mais relevante ainda, de reposicionamento face ao outro. Neste âmbito, importa sublinhar que, longe de ser inédita e tendo sido elaborada por Derrida, a ideia de arquivo, associada a uma noção de comunalidade, enquanto comum-pertencer, poderá ter a virtualidade de ser pensada como instrumento de uma ampliação particular do real – ampliação essa caracterizada pela hibridação (o que implica, no mínimo, uma profunda relativização do essencialismo estratégico) e pela persistente admissão do novo. Tal significa, num segundo momento, colocar a hipótese se tal virtualidade pode ser pensada como um momento de transcendência, não como realidade última de uma síntese dialéctica fixa e perene, mas como momento inaugural do novo, isto é, como momento em que novas possibilidade de ser são inauguradas na sua dignidade e se encontram disponíveis e não restringidos a regimes exclusivistas de verdade, autoria, identidade e diferença (comunalidade).

&

O trabalho empírico que sustenta o presente relatório foi sendo realizado em Portugal, entre finais de 2009 e Junho de 2012. Este centrou-se, sobretudo, na realização de entrevistas (semi-estruturadas e abertas) a angolanos. Na maior parte, tratava-se de angolanos de primeira geração a residir em Portugal, por motivos de estudo e/ou trabalho, com fortes ligações às suas terras natais, onde permanecem as suas famílias, onde residem as suas perspectivas de futuro e para onde regressam com alguma frequência. Outros entrevistados encontravam-se em Portugal por curtos períodos de tempo, normalmente para visitar familiares. O principal enfoque foi dado a jovens adultos. Todavia, a exploração do material empírico que foi emergindo exigiu também a inclusão de angolanos mais velhos, por forma a analisar as modalidades de transmissão geracional da memória. O anonimato é regra sem excepção. Duas estadas em Luanda (Novembro de 2012 e Abril de 2013) permitiram realizar pesquisa documental em bibliotecas e arquivos da cidade, bem como realizar entrevistas semi-estruturadas com actores vários (desde académicos, a actores da sociedade civil e a indivíduos mais velhos, pais e avós).

Procurou-se, pois, desenvolver uma abordagem pela narrativa e pela memória. Neste sentido, as biografias, bem como qualquer outro tipo de narrativas pessoais, ganham uma relevância particular. Todavia, não foi adoptada a metodologia clássica das histórias de vida das ciências sociais, a qual « assenta na definição da trajectória de vida como um processo de acumulação de conhecimentos : uma trajectória linear, um caminho, uma viagem ou percurso unidireccionado com princípio, meio e fim, que retrata uma visão culturalmente específica do que é o percurso de vida, assente numa filosofia da história no sentido da sucessão de acontecimentos » (Viegas e Gomes, 2007 : 20), reproduzindo-se, assim, o sentido moderno de temporalidade linear.

Viegas e Gomes alertam, a partir da perspectiva da antropologia da experiência, para os efeitos redutores que matematizam as histórias de vida de acordo com a grelha desta temporalidade linear. As autoras propõem, por essa razão, a substituição das histórias de vida na sua concepção canónica por narrativas de vida, conceptualizando estas

« como um procedimento analítico e metodológico que privilegia a constituição de significados a partir das relações intersubjectivas. O contexto temporal que enquadra estas narrativas de vida decorre do primado de Kiekegaard We live forward and understand backwards (vivemos para o futuro e compreendemos com o passado). (…) A acção social não se vê assim limitada a um enfoque temporal unívoco mas, pelo contrário, é um caleidoscópio do passado interpretado no presente, sob a expectativa do futuro » (2007 : 20).

De facto, as narrativas de vida e de memória não se baseiam necessariamente na reconstrução de sequências de vida. Elas incluem também pequenos relatos de histórias, narrativas sobre o seu trajecto de vida, em suma, episódios que se vão relembrar para reflectir e dar significado ao passado e também ao presente. Tais relatos e narrativas tendem a emergir de situações quotidianas e podem ser despoletados quer a nível individual, quer no contexto de interacções sociais diversas. [5]

Para além disso, nas entrevistas semi-estruturadas, procurou-se enfatizar os exercícios de reflexidade sobre a temática geral abordada, com o objectivo de aceder às interpretações de fundo que os sujeitos constroem a propósito daquela. Esta metodologia foi, ainda, complementada, numa perspectiva comparativa, com uma pesquisa bibliográfica, documental e histórica. Esta estratégia relevou-se fundamental para dar corpo aos desafios da tradução inter-cultural atrás explicados.

Neste contexto, a opção metodológica traduz uma preferência por um modelo de ‘compreensão criativa’. De acordo com Mudimbe, tal modelo decorre de uma orientação analítica de cariz instrumentalista. De facto, ao invés de depositar em grelhas analíticas e modelos científicos o poder cabal de explicação da realidade, a abordagem instrumentalista considera aquelas como instrumentos, isto é, como linguagens que potencialmente podem traduzir uma dada ordem de coisas em compreensão : « a viewpoint for understanding something creatively in a prudent expectation, where the rendered is what it should be, is a construct that depends on both the reliability of the grid and the perception of the analyst, not the exhibition of an empirically definitive truth » (Mudimbe, 2013 : 21).

Outras observações se impõem. Por um lado, é impossível falar de uma memória única do colonialismo. O que se encontra são memórias plurais, por vezes rivais, enformadas por diferentes trajectórias de vida, diferentes pertenças geracionais e outras, diferentes experiências de vida. Tal exige claramente que a memória seja pensada em termos plurais (Burke, 2011). A complexidade da memória, estando nela articulados ajuizamentos por vezes ambivalentes, por vezes paradoxais, não deve ser menosprezada, mas tão pouco deverá produzir a menorização da memória como campo epistemológico. Esta complexidade é, como se verá, derivada dos múltiplos usos da memória, especialmente no campo das asserções morais.

As narrativas de memória aqui analisadas são reveladoras de complexas subjectividades que traduzem e manifestam constelações dinâmicas do que Santos (2006) denomina de topoi da fronteira, do barroco e do sul. Na verdade, enquanto subjectividades de fronteira, elas dão voz às margens e ao que nelas foi sendo secundarizado (o valor das suas experiências, interpretações, sentidos, etc.). Enquanto subjectividades barrocas, elas descentram o centro e centram as margens. São, por isso, profundamente desestabilizadoras, ao avançarem com significados e interpretações que desarticulam sentidos hegemónicos produzidos por um dado centro. E, por fim, enquanto subjectividades do sul, elas denunciam as opressões historicamente engendradas pelo colonialismo.

A primeira parte do trabalho tem o duplo objectivo de analisar criticamente a recente génese do interesse sobre as questões da memória no âmbito das ciências sociais e de lançar as bases do enquadramento teórico do presente trabalho. A segunda parte explora as possibilidades de colocar história e memória em relação epistemológica e construir a centralidade desta última a partir da perspetiva das epistemologias do sul. A terceira parte centra-se na crítica de uma das formas da razão indolente : a razão metonímica. Procura-se, essencialmente, demonstrar como a razão metonímica foi constituída como um pilar da dominação colonial, através das políticas coloniais de educação e de instrução. Procura-se, também, realizar a crítica a esta razão a partir das desarticulações com que os sujeitos coloniais confrontaram a autoridade colonial. A quarta parte realiza a crítica às razões metonímica e proléptica a partir das narrativas de memória de sujeitos pós-coloniais. Na última parte, impõe-se uma sistematização teórica sobre as questões levantadas pela interrogação empírica e pela análise crítica dos impasses enfrentados pelas análises pós-coloniais. A essa sistematização aliar-se-á o semeio de questões que não podem ser dissociadas do intento primeiro das epistemologias do sul : a superação das linhas abissais. Poderá tal superação, assente na inter-historicidade e tendo, como momento primeiro, a tradução inter-cultural, ser conceptualizada como ‘comunalidade’ ?

I. Os olhares de Narciso

Sobretudo a partir de 1970, assistiu-se a um assinalável interesse sobre a memória que permeou as fronteiras disciplinares. A (re) emergência do tema é complexa, sendo esta, em grande parte, atribuída ao criticismo dirigido contra as narrativas e as promessas falhadas da modernidade ocidental. De facto, o declínio das visões utópicas sobre o futuro, veiculadas por aquelas, tem sido interpretado como um importante factor que redireccionou significativamente a atenção para o passado e suas memórias, mobilizados como recurso de reivindicação histórica e identitária de grupos em situação de subalternidade. Neste sentido, e associado, pois, a uma ‘identity politics’, o interesse sobre a memória, simultaneamente, reflecte e contribui para o desenvolvimento de uma ‘cultura do trauma, ressentimento e justiça histórica’. [6]

Todavia, embora seja predominantemente relacionado com o criticismo sobre o projecto da modernidade e a sua emergência seja historicamente relacionada com o contexto europeu pós II Grande Guerra (cf. Olick et al, 2011), o debate sobre a memória re-presentifica-se noutros contextos históricos (cf. Climo e Cattell, 2002), nomeadamente transacionais (cf. Verdery, 1999 ; Brito et al, 2004 ; Makdisi e Silverstein, 2006), marcados por conflitos profundos (cf. Roudemetof, 2002 ; Fierke, 2008), sendo, ainda, um tema de relevo elaborado pelas análises pós-coloniais (cf. Fabian, 1996 ; Jewsiewicki e Mudimbe, 1993 ; Mudimbe, 1988 ; 1994 ; Chakrabarty, 2000 ; Werbner, 1998 ; Goldberg e Quayson, 2002 ; Hargreaver, 2005, entre outros).

A interrogação do tempo

Quando integrado no exercício crítico da arqueologia epistemológica da modernidade ocidental, o debate sobre a memória tende a ser enformado por um sentido específico de temporalidade, a que Santos denomina de monocultura do tempo linear (cf. 2002, 2006). Por monocultura do tempo linear, é designada a « ideia de que a história tem sentido e direção únicos e conhecidos ». Para o autor, « Esta lógica produz a não existência declarando atrasado tudo o que, segundo a norma temporal, é assimétrico em relação ao que é avançado. É nos termos desta lógica que a modernidade ocidental produz a não-contemporaneidade do contemporâneo » (2006 : 96).

Daqui decorre que a distância ao passado mede a expansão dessa mesma modernidade. A persuasão de um tempo medível, cuja databilidade é comensurável à caducidade, está intimamente ligada à emergência da economia capitalista e possui uma agencialidade coerciva, na medida em que define a linha abissal entre o existente (enquanto presente actual e operante) e o inexistente (enquanto caducidade de modos de existência não operativos de acordo com os parâmetros do presente absolutizado). [7]

De facto, a perspectiva moderna associa a consagração do princípio do novo e da ruptura com o passado com o projecto moderno de emancipação humana, assim como com o seu vanguardismo, declinado historicamente nas narrativas redentoras do historicismo de pendor hegeliano, do evolucionismo, do positivismo, do triunfalismo científico, do colonialismo e do desenvolvimento (Latour, 1991). Esta celebração da distância em relação ao passado produz, todavia, uma complexa relação com aquele, em que a enunciação da sua ausência produz o anseio pela sua presença, o desconforto pela sua permanência, a ambivalência pela sua (in)inteligibilidade (Lowenthal, 1985). Tais aporias permitem complexificar, por seu turno, os efeitos redutores do sentido moderno de temporalidade linear nas experiências da história e da memória, nas quais as unidades delimitadas e sequenciais do passado, do presente e do futuro se desvelam mutuamente constituintes, em tensas relações de coevidade.

As perspectivas modernas sobre memória e historicidade estão, na realidade, associadas às noções de progresso, triunfo e racionalismo positivo. Enquadrada por este logocentrismo, assistiu-se, progressivamente, no campo da memória, a uma transmutação que assinala a passagem « from an emphasis on knowledge from the past about how to do things to an emphasis on knowledge about the past that certain things happened (Hacking, 1998) » (Olick et al, 2011 : 9), o que é sintomático de uma certa desvalorização moderna do passado enquanto recurso heurístico. Tal desvalorização é historicamente correlata com a instauração de um ‘ethos do novo’ [8] , o qual celebra uma constelação específica de valores (inovação, mudança, progresso, produtividade capitalista, autonomia individual, etc.), Neste contexto, processam-se novas dinâmicas de negação da coevidade ditadas pelo ritmo célere de transformações sociais em que o ‘novo’ é gerador da obsolescência programada e automática. [9]

Também ao nível da história, essa transmutação conduziu à afirmação do historicismo, assente numa ideia favorita particular, segundo a qual a história é linear e irreversível. Esta concepção teleológica da história, cuja consagração é atribuída a Hegel enquanto progresso da consciência, da razão e da liberdade, deu fundamentalmente origem, no espaço da tradição intelectual do Ocidente, a duas influentes correntes da filosofia da história. Por um lado, a que se baseia numa narrativa evolucionista sobre os graus de desenvolvimento histórico. Esta postula o princípio da não contemporaneidade do contemporâneo – princípio este originário do pensamento de Wilhelm Pinder, formulado, paradoxalmente, no seio de uma reacção romântica contra a tese do percurso unilinear da história, e tornado popular através do trabalho crítico de Karl Mannheim (1950) na primeira metade do século XX (Koselleck, 2004). Em oposição, uma segunda corrente derivada do historicismo é o relativismo e a correlata afirmação das especificidades dos trajectos históricos de cada sociedade. [10]

Ao historicismo, o materialismo histórico apontava criticamente os limites e os efeitos mistificadores da ideia de progresso veiculada por aquele, assim como o necessário engajamento do historiador com a transformação do presente. Retratado como pretensão dogmática sobre uma suposta perfectibilidade infinda da humanidade, o historicismo é, pois, acusado de produzir uma concepção de tempo vazio e homogéneo que Walter Benjamin propõe substituir por um « tempo preenchido pelo Agora ». Nas suas palavras : « O materialista histórico não pode prescindir de um conceito de presente que não é passagem, mas no qual o tempo se fixou e parou. Porque esse conceito é precisamente aquele que define o presente no qual ele escreve história para si. O historicismo propõe a imagem ‘eterna’ do passado ; o materialista histórico fá-lo acompanhar de uma experiência que é única. Deixa aos outros o papel de se entregarem, no bordel do historicismo, à prostituta chamada ‘Era uma vez’. Ele permanece senhor das suas forças, suficientemente forte para destruir o contínuo da história » (2010 : 17/ 18-19).

Na visão de Benjamin, o olhar histórico é, pois, confrontado com as ruínas do sofrimento humano e, nessa confrontação, o historiador deverá adoptar um papel comprometido e engajado « to recover the voices of the past sufferers and thereby provide them with some small measure of secular salvation » (Hinsley, 1996 : 119-120). Como se verá adiante, será este o papel a desempenhar pela crítica da monoracionalidade hegemónica e que é elaborada por Santos. [11]

Refira-se que, do ponto de vista da teoria da história, a crítica à visão teleológica partilhada pelo historicismo e pelo materialismo histórico deu, paradoxalmente, azo à sofisticação metamorfoseada de uma espécie de postulados teleológicos – sofisticação esta que se encontra especialmente visível na popularização ideológica da teoria do fim da história, formalizada por Fukuyama (1992). Para esta, e de acordo com as palavras de Anderson, « o capitalismo é o nec plus ultra da vida política e económica na Terra. O fim da história não é a chegada de um sistema perfeito, mas a eliminação de quaisquer alternativas melhores » (1992 : 87). As múltiplas objecções levantadas à pressuposição do fim da história que Fukuyama apresenta com óbvia pretensão hegeliana no sentido da afirmação de uma síntese última e perene, salientam, v.g., os efeitos invisibilizadores do triunfalismo liberal, assim como a subestimação das desigualdades, enquanto ‘desvantagens culturais’ a serem superadas, e estão na base da crítica de Sader (2003) e de Santos (2006). Tal como para Sader, também para Santos tal perspectiva assinala o colapso da teoria da história, enquanto incapacidade para pensar de modo plural a transformação social, ao propor um presente absolutizado na sua « repetição automática e infinita », celebrado pelas « versões capitalucionistas do pensamento pós-moderno » (2006 : 47).

É-se conduzido, pois, a uma espécie de eternização do presente

« como monotonia da novidade programada e monocultura da diversidade reprimida ou tolerada (….). Vivemos num tempo de repetição, e a aceleração da repetição produz simultaneamente uma sensação de vertigem e uma sensação de estagnação. (…) Esse nevoeiro epistemológico actua como bloqueio do pensamento e da acção emancipatórios » (Santos, 2006 : 61-62).

Tal traduz, na realidade, uma certa incapacidade que a razão indolente apresenta em pensar-se para além de si mesma, em pensar-se para além da sua própria imaginação e em pensar-se para além do seu lugar de enunciação. Poder-se-á interpretar tal incapacidade como manifestação do vigor das estruturas de colonialidade do saber e do poder que Mignolo (2003 ; 2005) e Quijano (2000) abordam. Na sua crítica ao eurocentrismo, por exemplo, Quijano analisa a incapacidade de auto-superação do pensamento eurocêntrico, examinando comparativamente as suas mais emblemáticas leituras do mundo – liberalismo, materialismo histórico [12] e pós-modernismo. Em sintonia com Santos, Quijano demonstra, por um lado, como as duas primeiras se encontram ancoradas numa ideia de totalidade (sistémica ou orgânica) que traduz o referencial inescapável de uma estrutura composta por elementos homogéneos, a-históricos, os quais mantêm entre si relações lineares organizadas em função de tal estrutura. Por outro lado, argumenta que

« Para poder negar la realidad del poder societal, el empirismo y el postmodernismo requieren negar la idea de totalidad histórico-social y la existência de un ámbito primado en la configuración societal, actuando como eje de articulación de los demás. (…) En el postmodernismo, desde sus orígenes post-estructuralistas, el poder sólo existe a la escala de las micro-relaciones sociales y como fenómeno disperso y fluido. (…) El cambio histórico sería estrictamente un asunto individual, aunque fueran varios los individuos comprometidos, en micro-relaciones sociales » (2000 : 353-354).

O historicismo afigura-se, assim, como um objecto prioritário da crítica pós-colonial. O impulso deste criticismo resulta, fundamentalmente, da rejeição do que Santos denomina de monocultura do tempo em que o historicismo se baseia. [13] Como referido, essa monocultura do tempo impõe uma visão linear, unívoca e unidirecional do desenvolvimento histórico, a qual opera como uma espécie de grelha qualificativa que infere sobre a evolução histórica de cada sociedade. Nesta transmutação de cariz neoevolucionista, fica consequentemente desacreditada

« a ideia de modelos alternativos de desenvolvimento ou mesmo de alternativas ao desenvolvimento », tornando, por conseguinte, « impossível pensar que os países menos desenvolvidos sejam mais desenvolvidos que os desenvolvidos em algumas características específicas. Estas são sempre interpretadas em função do estádio geral de desenvolvimento em que a sociedade de encontra » (Santos, 2006 : 40).

Resulta daqui a capitulação em face ao desafio de transformação e emancipação social e aos engajamentos que este exige, à semelhança do que se encontra implícito em Fukuyama. Mas do outro lado da trincheira, a capitulação do historicismo faz desmoronar a mitologia moderna de uma única e universalista emancipação humana, visibilizando-se, nas suas ruínas, o facto, segundo o qual, nas ausências e nos vazios das (meta)narrativas historicistas, vivificarem múltiplos e diversos trajectos e práticas de transformação e emancipação social e histórica.

O historicismo participa, então, do desenvolvimento de uma monoracionalidade de cariz eurocêntrico, designada por Santos como razão indolente (cf., 2002, 2006, 2007, 2009), a par de uma pletora de factores históricos como a hegemonia da figura do Estado liberal, do colonialismo, das teorias da modernização e do desenvolvimento capitalista. A razão indolente assinala, deste modo, o gigantismo de uma mesmidade epistémica, de carácter marcadamente expansivo, colonial e capitalista, nos domínios social, político, filosófico e científico, face à qual, como alerta Quijano (2000) e Santos (1999), nem o marxismo conseguiu elaborar alternativas fora da sua esfera de influência.

Sublinhe-se a este propósito que, na sua versão proléptica, a razão indolente, ancorada na noção de tempo linear e ambicionando a planificação da história, permitiu a expansão indefinida e abstracta de um sentido de futuro, no qual, apesar da sua indefinição e abstração intrínsecas, se depositariam expectativas elevadas, graças à aliança, historicamente constituída, entre historicismo e triunfalismo moderno. Como refere Santos, « O futuro é, assim, infinitamente abundante e infinitamente igual, um futuro que (…) só existe para se tornar passado. Um futuro assim concebido não tem de ser pensado » (2006 : 107).

E mesmo quando, a partir dos anos 80 do século XX, correntes pós-modernas e pós-coloniais, assim como as ‘blasfémias’ das teorias da complexidade e do caos [14] – protagonistas de relevo de novos posicionamentos científicos e filosóficos que assinalam o abandono dos reducionismos positivistas e correlatos determinismos -, vieram a desafiar o status quo, a prevalência da razão indolente subsistiu como princípio de estruturação não só do que é possível conceber como conhecimento, mas também do que é possível conceber como real e possível.

Com evidentes efeitos de naturalização e despolitização, o olhar que daqui resulta não permite, nestas condições, dar conta das lógicas interescalares (Santos, 2006), da diversidade de trajectórias históricas específicas, de espaços-tempos distintos, de relações conflituais, descontínuas, na medida em que articula esta heterogeneidade em função de um ideal de totalidade ou, em alternativa redundante, em função da negação dessa totalidade, remetendo-a para um cenário global imune às dinâmicas estruturantes das relações de poder. O que aqui se evidencia é o predomínio de uma mesma [15]. A riqueza das suas variações e contra-argumentações são testemunhas dos topoi (argumentos) que lhe estão subjacentes e que dão corpo ao modelo hegemónico de racionalidade e de conhecimento. De facto, nas suas múltiplas manifestações e tipos, a razão indolente apresenta-se como impotente « porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela própria » (dando origem a posições realistas e/ou deterministas), desvela a sua arrogância, na medida em que « se imagina incondicionalmente livre » (ocasionando leituras construtivistas que celebram o livre arbítrio), revela-se como metonímica, pois « se reivindica como a única forma de racionalidade » (canibalizando outros saberes como matéria prima), e, por fim, afirma-se como proléptica, « porque julga que sabe tudo a respeito (do futuro) e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente » (2002 : 89).

No que se refere mais especificamente à razão metonímica, esta é guiada pela ideia obsessiva de totalidade codificada como ordem, já anteriormente objecto de crítica. A astúcia reside no facto de o todo que supostamente é formado pelas suas partes, além de estabelecer hierarquias internas, é, na realidade, uma das partes transformada em parâmetro e critério da validade e do lugar das demais. A razão metonímica afirma-se, desse modo, exaustiva, tudo englobante, completa. Comporta-se como Narciso, descrito por Ovídio, que apenas se vê a si próprio, desenhando linhas abissais entre o belo e o horror, a existência e a não existência, entre o visível e o invisível, entre o válido e o não válido, entre o presente e o ausente/inexistente. [16]

Significa isto que o que define a razão metonímica é a cooperação entre dois mecanismos : o primado da auto-referencialidade, por um lado, e, por outro, a sua expansão por via da domesticação/conversão/normalização do diverso, transformado em matéria-prima da própria razão metonímica. As linhas abissais que esta vai desenhando são, ainda, blindadas por uma segunda consequência : é que, no modelo da razão metonímica, as partes não possuem vida própria, além e/ou fora do todo – que é uma parte – que lhes atribui lugar e sentido. Elas produzem a impossibilidade de as partes serem outra coisa que não partes da razão metonímica. Como explica Santos :

« A razão metonímica é obcecada pela ideia da totalidade sob a forma de ordem. Não há compreensão nem acção que não seja referida a um todo e o todo tem absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compõem. Por isso, há apenas uma lógica que governa tanto o comportamento do todo como o de cada uma das suas partes » (2006 : 91).

Uma discussão pós-colonial sobre o tempo

Para Santos, o resultado global é, como referido, o estrangulamento do mundo e o desperdício da sua experiência (v.g., 2002), o que assinala uma significativa contracção do presente – efeito da auto-refrencialidade da razão indolente. De facto, ao assentar na produção paralela de si mesma e, simultaneamente, na sua ampliação por via da domesticação/ conversão do diverso, a razão metonímica reformula a noção de contemporaneidade. O que nela é considerado coevo é, na realidade, uma parte extremamente reduzida do simultâneo. Tal suscita o problema da não contemporaneidade do contemporâneo, o qual redunda no problema da negação da coevidade e correspondentes práticas epistemológicas e políticas que renegam para o lugar do arcaico, do primevo e do residual tudo o que não é passível de ser encapsulado pelo modelo da razão metonímica.

O poder classificatório desta razão exerce-se, então, através da imposição de um sentido hegemónico de temporalidade que permite não só a dissociação entre o que se encara como contemporâneo e o que se percebe como simultâneo, como também permite que o simultâneo possa ser conotado e classificado como arcaísmo. Trata-se de um poder classificatório, porque a negação da coevidade é o baptismo da inferioridade e porque a temporalidade que determina a pertença à contemporaneidade é a da razão metonímica. Por curtas palavras : ela auto-constitui-se como critério de pertença à contemporaneidade e ela designa apenas o presente e a presença que considera como sendo significativas e como sendo aquelas de que vale a pena tratar. Esta delimitação altamente restritiva da concepção de contemporaneidade desqualifica e invisibiliza tudo o que a ela não corresponde.

Refira-se, ainda, que a re-emergência contemporânea da memória encontra-se hoje também ancorada nas reacções face à aceleração do tempo, à obsolescência dos significados, à cultura da amnésia e às reconfigurações identitárias fluídas e fragmentadas (cf. Huyssen, 1995 ; Climo et al, 2002 ; Nora, 2002). O sentimento de aceleração da história, cunhado na primeira metade do século XX por Daniel Halévy, é descrito por Pierre Nora como decorrendo do reconhecimento, segundo o qual a experiência do mundo moderno é marcada pela mudança e não pela continuidade. Ao mesmo tempo que gera dificuldades acrescidas na antecipação do futuro que se converte crescentemente no domínio da incerteza e do desconhecido, tal descontinuidade é ancorada na intensificação da distância em relação ao passado :

« We no longer inhabit that past, we only commune with it through vestiges − vestiges, moreover, which have become mysterious to us and which would do well to question, since they hold the key to our ‘identity’, to who we are. We are no longer on very good terms with the past. We can only recover it by reconstructing it in monumental detail with the aid of documents and archives ; in other words, what we today call ‘memory’ – a form of memory that is itself a reconstruction − is simply what was called ‘history’ in the past. We are dealing here with a radical and dangerous shift in the meaning of words, a shift itself characteristic of the spirit of the age. ‘Memory’ has taken on a meaning so broad and all−inclusive that it tends to be used purely and simply as a substitute for ‘history’ and to put the study of history at the service of memory » (Nora, 2002 : 4-5).

Leituras como a de Nora tendem a afirmar o vigor da síndrome da experiência eurocêntrica moderna, cunhado eloquentemente por Peter Laslett como « the world we have lost ». [17] Pese embora o facto de Nora discutir as forças de democratização da história, associadas, v.g., às lutas contra a opressão colonial, e o seu contributo na visibilização dos silêncios e das ausências, a ideia subjacente à noção de aceleração moderna da história encontra-se, nas interpretações correntes da academia e do senso comum, predominantemente ancorada no sentimento eurocêntrico e na sua identificação como experiência global universalista. É esta proclividade em equacionar a experiência europeia a um universalismo que tem sido criticada por variados autores.

De facto, a noção de aceleração da história parece carregar consigo toda uma constelação simbólica em que permanecem vigentes ideias relativas a uma modernidade europeia como centro motriz e inaugurador da história mundial, restando às múltiplas histórias do mundo ou a pacatez estagnada da ausência de progresso que a integração na modernidade europeia poderia trazer ou, em alternativa, o dinamismo moderno, e sendo, inclusivamente, de extraordinária dificuldade para o olhar eurocêntrico conceber que a vivência da aceleração da história constitui uma experiência primordial dos povos sujeitos à dominação colonial. Produzida por uma razão indolente, na sua forma metonímica (Santos, 2002), esta proclividade, produtora de um significativo desperdício de experiência, é interpretada por Lander da seguinte forma :

« Esta es una construcción eurocéntrica, que piensa y organiza a la totalidad del tiempo y del espacio, a toda la humanidad, a partir de su propia experiencia, colocando su especificidad histórico-cultural como patrón de referencia superior y universal. Pero es más que eso. Este metarrelato de la modernidad es un dispositivo de conocimiento colonial e imperial en que se articula esa totalidad de pueblos, tiempo y espacio como parte de la organización colonial/imperial del mundo. Una forma de organización y de ser de la sociedad, se transforma mediante este dispositivo colonizador del saber en la forma ‘normal’ del ser humano y de la sociedad. Las otras formas de ser, las otras formas de organización de la sociedad, las otras formas del saber, son trasformadas no sólo en diferentes, sino en carentes, en arcaicas, primitivas, tradicionales, premodernas » (2000 : 23-24). [18]

Esta crítica pós-colonial à temporalidade linear como regime de organização e produção de conhecimento e de realidade sancionada deverá, contudo, ser acautelada por duas ordens de observação. A primeira dirige-se directamente à acessível e sedutora pressuposição, segundo a qual o abandono ou a relativização do conceito de temporalidade linear conduz necessariamente ao desvelamento de « an ‘other time’ whose logic and historical expression are incommensurable with the normative temporality of clock and calendar associated with western modernity » (Ganguly, 2004 : 162). No quadro deste desejo, tende a ser afirmado o carácter inédito daquilo que seria(m) a(s) temporalidade(s) pós-colonial(ais). Poder-se-á identificar aqui, com relativa facilidade, o anseio que determina a busca e o esforço pela restauração de uma diferença, cuja autenticidade radical e cuja existência foram sendo historicamente desqualificadas. Ganguly discute esta questão a propósito na análise elaborada por Bhabha (2004). Para o autor, em Bhabha, o pós-colonial opera como uma espécie de ‘contra-modernidade’ que re-introduz o passado de modo distinto. Ao fazê-lo, são re-apresentadas outras temporalidades. No entanto, o poder amplificador deste posicionamento poderá redundar numa nova afirmação de nativismo, ainda aprisionada na falácia do não-sincrónico. Para Ganguly, a não sincronicidade é interpretada por Bhabha como manifestação de um fosso temporal que caracteriza a subjectividade pós-colonial.

O segundo questionamento está associado a esta primeira observação. De facto, embora o criticismo da temporalidade linear e dos seus efeitos excludentes seja fundamental, importará ter em conta que tal crítica está, igualmente, presente na própria produção filosófica da modernidade ocidental. Essa mesma crítica, a qual pode ser encontrada, inclusivamente, em Hegel quando identifica o momento de desfasamento, em que o progresso da consciência nasce a partir de um contexto de declínio, ou em Bergson, tem sido, na realidade, invisibilizada por um processo de estereotipização conceptual, ao qual não está alheio a institucionalização, expansão e sofisticação do sistema capitalista – processo este que tem contribuído para uma certa representação monolítica da diversidade das interrogações, abordagens e problematizações filosóficas produzidas por essa mesma modernidade.

Assim, por exemplo, se, em Bhabha, a sincronicidade (manifesta, v.g. na adesão a uma temporalidade linear) implicaria a homogeneização cultural, nomeadamente mediante os regimes de assimilação, em Ernst Bloch a não sincronicidade é conceptualizada como bloqueio e alienação. Do seu ponto de vista, portanto, a sincronicidade não implicaria necessariamente a adesão a uma temporalidade linear, mas uma forma de presença participativa pela qual o tempo poderá realizar o diverso in potentia. A sincronicidade seria, assim, o sinal da « liberation of the still possible future from the past… by putting both in the present » (Bloch, 1977 : 33).

Da possibilidade da presença : as epistemologias do sul

É neste sentido que a crítica da razão metonímica e a crítica a esta contracção do presente passa pela dilatação, ampliação e diversificação do presente – desafios estes a que responde uma sociologia das ausências. De modo sumário, esta procura demonstrar não só que a ‘não existência’ é activamente produzida como tal, como também é uma alternativa credível ao que a razão metonímica define e identifica como existência, como contemporâneo, como real, como possível. Implica isto ampliar o presente sob o signo do diverso, reconhecendo que, tal como Narciso obcecado pelo seu reflexo, a obsessão da razão metonímica por si mesma produz uma redução radical do mundo. Ao olhar as partes da razão metonímica como totalidades com vida própria e ao pensá-las em fluxo, movimento, em descontinuidade e em articulações impensadas, a sociologia das ausências amplia o presente, porque não reduz o real a um « é » absolutizado. [19]

Na sua actuação metonímica, a razão indolente contrai o presente, isto é, restringe-o ao que nomeia como existente, numa espécie de realismo trágico, fatalista e inescapável. Na sua versão proléptica, integrada no logocentrismo triunfalista do progresso, ela amplia o futuro numa abstracção vazia. A crítica à razão proléptica tem, assim, por objectivo maximizar as probabilidades de esperança em detrimento do potencial de frustração.

A razão proléptica emerge, como referido, de uma monocultura do tempo linear, a qual produz a dilatação do futuro, legitimada pela mitologia do progresso triunfalista. Mas tal mitologia opera como um horizonte promissor de redenção abstracta, dado que, como argumenta Santos, tendo a história « o sentido e a direcção que lhe são conferidos pelo progresso e o progresso não tem limites, o futuro é infinito, (…) [e estando] projectado numa direcção irreversível, ele é (…) um tempo homogéneo e vazio » (Santos, 2006 : 107). Neste contexto, a relação entre experiências e expectativas deixou de ser efectiva, pelo que, por mais miserável que seja o presente da experiência, a expectativa do futuro pode ser sempre redentora. Tal expectativa faz tolerar o presente e, tolerando o presente, a espera e a esperança do e no futuro desvela-se como passividade e resignação. [20]

A esta dilatação do futuro impõe-se a sua contracção, isto é, impõe-se a tarefa de o tornar objecto de cuidado. Se a ampliação do presente é tarefa da sociologia das ausências, a contracção e o cuidado do futuro implica, em Santos, uma sociologia das emergências. Para o autor, cuidar o futuro implica preservá-lo, não enquanto tempo de repetição do presente ou tempo de redenção abstracta, mas enquanto possibilidade, ou na linguagem heideggeriana, enquanto clareira de desenvolvimento de « possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que se vão construindo no presente através das actividades de cuidado » (Santos, 2006 : 108). Reencontra-se aqui a ideia gramsciana, segundo a qual o possível [21] é tão importante como o que é.

Será de interesse uma breve discussão, neste momento, sobre os contributos das reflexões de Heidegger acerca das possibilidades e responsabilidades ontológicas e ônticas da filosofia e a sua influência latente nas epistemologias do sul. Trata-se aqui, como referido na Introdução, da re-colocação crítica de alguns debates, cujos temas e linguagens, foram sendo historicamente ostracizados no momento preciso em que a demanda pós-colonial pela justiça cognitiva e histórica se cristaliza como enunciação de uma diferença incomensurável. Aliás, a este respeito saliente-se a forma pela qual os denominados ‘subaltern studies’ dialogam com o pensamento heideggeriano numa vertente pós-colonial (Renault, 2012). [22] Debatendo o fim da filosofia, « como triunfo do equipamento controlável de um mundo técnico-científico e da ordem social que lhe corresponde. Fim da filosofia quer dizer : começo da civilização mundial fundada no pensamento ocidental-europeu », Heidegger apela para um « pensamento que não pode ser metafísica nem ciência » ([1966] 1991 : 75/73).

Na sua crítica a este domínio do pensamento técnico-científico, de cariz matematizável e de ambições absolutistas, advoga por um pensamento do impensado, a que denomina metaforicamente de ‘clareira’. ‘Clareira’ designará, então, o campo do aberto e do livre, ou a livre dimensão do aberto. Mas, sendo aberto e livre, não se trata, todavia, de um campo abstracto. É, ao contrário, concebido como um campo que é destinado à presença :

« Perguntamos : abertura para quê ? (…) A clareira garante, antes de tudo, a possibilidade do caminho em direcção da presença e possibilita a ela mesma o presentear-se. A Alétheia, o desvelamento, devem ser pensados como a clareira que assegura ser e pensar e seu presentear recíproco » ([1966] 1991 : 79).

Pese embora os criticismos dirigidos contra o que é mormente interpretado como uma aprisionante metafísica da presença, centrados, sobretudo, no efeito de redução do existente ao presente (enquanto presença), haverá, nas suas palavras, um potencial libertador se a conexação entre existência e presença for re-equacionada. Vejamos.

‘Desvelamento’ e ‘Clareira’ são, pois, conceitos que não devem ser associados a concepções de verdade no sentido de saber absoluto e essencial e de pensamento ortopédico que impõe positivamente a relação de rectitude entre representação e enunciação como parâmetro único. Heidegger perfilha, assim, um conceito de verdade, não como adequação ou conformidade ao concebido como real, mas como desvelamento ao aberto e ao impensado. A crítica ao conceito convencional de verdade em Heidegger aproxima-se, no alertar para os seus efeitos, da denúncia realizada por Santos acerca das consequências de redução do mundo produzidas pelo pensamento abissal. Heidegger argumenta :

« Sob o império da evidência deste conceito de essência da verdade (…) admite-se como igualmente evidente que a verdade tem um contrário e que há a não-verdade. A não-verdade da proposição (não-conformidade) é a não concordância da enunciação com a coisa. (…) Isto fica excluído da essência da verdade. É por isso que a não-verdade enquanto pensada como parte contrária da verdade, pode ser negligenciada » (Heidegger, [1943], 1991 : 124).

De facto, Heidegger refunda o conceito de verdade na prática da liberdade : a essência [23] da verdade é a liberdade. Por seu turno, o fundamento da liberdade será o « deixar-ser o ente » ([1943], 1991 : 128). Mas este « deixar-ser » não é concebido na perspectiva negativa da indiferença, mas sim como a protecção da « história das possibilidades essenciais da humanidade historial » ([1943], 1991:129). Significará isto, no seio da sua teorização sobre o Ser, a possibilidade de pre-sentificar :

« Ser, pelo qual é assinalado todo ente singular como tal, ser significa pre-sentar. Pensado sob o ponto de vista do que se presenta, pre-sentar se mostra como pre-sentificar. Trata-se, porém, agora de pensar este presentificar propriamente, na medida em que é facultado pre-sentar. Presentificar mostra-se no que lhe é próprio pelo facto de levar para o desvelamento. Pre-sentificar significa : desvelar, levar ao aberto. No desvelar está em jogo um dar, a saber, aquele que no presenti-ficar dá o pre-sentar, isto é, ser » ([1962], 1991 : 207).

Na sua teorização, este « deixar-ser » é, simultaneamente, « o Ser-no-mundo-com-os-outros », exigindo, no âmbito mais específico da sua filosofia da compreensão enquanto possibilidade ontológica e ôntica, a formulação de conceitos-práticas como ‘Escolta’, ‘Acompanhar’ e ‘Cuidado’ (Thiele, 1995).

Retomando : a sociologia das emergências afigura-se, simultaneamente, como uma praxiologia do cuidado, pela sua recusa em conceber o futuro unicamente como progresso e por nele ver, à luz das experiências do passado, a possibilidade da frustração e da catástrofe. Se a razão proléptica procurou afirmar-se como uma axiologia, isto é, como uma constelação de valores e princípios ancorada na noção de progresso, a sociologia das emergências busca desenvolver a práxis do cuidado. Neste sentido,

« A sociologia das emergências consiste em proceder a uma ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes de modo a identificar neles as tendências do futuro (o Ainda-Não) sobre as quais é possível actuar para maximizar a probabilidade de esperança em relação à probabilidade de frustração. Tal ampliação simbólica é, no fundo, uma forma de imaginação sociológica e política que visa um duplo objectivo : por um lado, conhecer melhor as condições de possibilidade da esperança ; por outro, definir os princípios de acção que promovem a realização dessas condições » (Santos, 2006 : 109).

Por esta via, as expectativas que neutralizam o potencial mobilizador da esperança que, sendo reduzida à semântica da resignação, deixa de poder ser o cuidado prático e engajado do futuro, não são mais enquadradas e limitadas pelo logocentrismo da redenção abstracta, e passam a ser ancoradas em possibilidades e capacidades concretas do e no presente. A esta nova semântica da expectativa está associada uma nova semântica da esperança, associada à prática do desvelamento, pois

« A esperança não reside (…) num princípio geral que providencia por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e lugares excepto naqueles em que ocorreram efectivamente » (2002 : 35).

A interrogação da memória

É de assinalar a reacção romântica ao historicismo, na qual a veneração moderna da história, enquanto trajectória de progresso e de racionalidade, é confrontada com as figuras do inconsciente e da subjectividade, introduzidas por Freud, Henri Bergson e Proust, sendo o domínio da memória o campo da existência e exploração de tais figuras. Por outro lado, a influência das concepções positivistas sobre a história e que exerceram profunda influência sobre o estatuto adscrito à memória, consubstanciou-se, igualmente, na descrição desta última como fenómeno individual e privado das sociedades modernas, onde a figura do indivíduo emerge a par da ideia da memória individual. [24]

De facto, na tradição do pensamento ocidental, uma das concepções hegemónicas de memória tem sido alvo de importantes processos de naturalização e de reificação. Destes emerge uma representação específica da memória como facto, objecto ou mesmo processo natural, não mediado cultural e socialmente (Lambeck, 1996 ; Antze ; Lambeck, 1996). As implicações de tal representação são vastas. Uma das consequências mais significativas decorre do ancorar a memória na consciência individual, pelo que a memória tende a ser vista como algo privado possuído pelo indivíduo. Nesta forma de privatização simbólica da memória, são ocultadas as suas múltiplas e problemáticas ligações à experiência da vida social, assim como as convenções culturais e os enquadramentos sociais que emolduram as narrativas de memória. Esta espécie de individualização e privatização da memória provoca mormente a deslocação desta para um espaço/tempo interior e que, em termos representacionais, se situa « outside engaged experience and the give and take of social relations », pelo que « an inherently and pre-eminently temporally constitued process like remembering is thus detemporalized » (Lambeck, 1996 : 238). [25]

Pierre Nora, uma das figuras mais emblemáticas do movimento da ‘Nova História’, problematiza também criticamente esta proclividade para uma visão ‘privatizada’ e excessivamente ‘psicologizada’ da memória, relacionando-a com a sedimentação na cultura popular dos contributos de Freud (1956-1939) – para quem a memória seria o centro da identidade psíquica -, e de Proust (1871-1922) – para quem a memória seria o centro da identidade autobiográfica. Nas suas palavras,

« Déplacement décisif que se transfert de la mémoire : de l’histoire au psychologique, du social à l’individuel, du transmissif au subjectif, de la répétition à la remémoration. La psychologisation intégrale de la mémoire contemporaine a entraîne une économie singulièrement nouvelle de l’identité du moi, des mécanismes de la mémoire et du rapport au passé » (1984 : XXX).

Pese embora a relevância de uma visão que privatiza a memória, a busca pelos seus enquadramentos sociais, assim como a reflexão sobre os problemas levantados pela admissão de uma memória histórica e colectiva não deixou de ser empreendida. Durante o século XIX e início do século XX, essa busca, ancorada nas ideias de Lamarck e de Darwin, integrava-se no projecto das ciências naturais e procurava identificar uma base biológica onde tal memória estaria inscrita. É o caso de Richard Semon (1859-1918), biólogo evolucionista, cuja abordagem hereditária à memória, inspirada em Ewald Hering, Samuel Butler e Ernest Haeckel, o levou a formular os conceitos de ‘engram’, enquanto memória latente biologicamente inscrita, e de ‘ecphory’, enquanto activação dessa mesma latência (Schater, 2011). [26]

A influência de Semon pode ser traçada em abordagens posteriores à questão da memória. Apesar de se distanciar criticamente das propostas de Semon, Freud desenvolve o tema da memória orgânica ao redor dos conceitos de latência, memória reprimida e retorno do reprimido. Também a teoria iconológica sobre a memória social de Aby Warburg (1866-1929), nos anos 20 do século passado, inspira-se no trabalho de Semon. Esta via analítica tem sido, na contemporaneidade, explorada pelos teóricos da ‘memória cultural’, de onde se destacam os trabalhos de Jan Assman (1998 ; 2006).

Memória como objecto : Halbwachs

Os usos contemporâneos do conceito de ‘memória colectiva’ decorrem, em grande parte, do trabalho de Halbwachs (1925 ; 1950), o qual, apesar de não ter sido o único que procurou desenvolver uma perspectiva social sobre a memória, se tornou numa referência académica de contornos totémicos.

Halbwachs desenvolveu o seu trabalho a partir de Henri Bergson e Émile Durkheim. Em Bergson, Halbwachs encontrou uma análise filosófica sobre a experiência do tempo em que a memória é o mecanismo central, sendo esta conceptualizada não como repositório passivo que permitiria a reprodução objectiva do passado, mas como processo activo e cambiante, permeado pela subjectividade. Em Durkheim, Halbwachs encontrou a formulação conceptual de factos sociais, cuja variação não se deve à experiência subjectiva, mas a estruturas sociais e suas dinâmicas de transformação. A partir dessa intertextualidade, Halbwachs formula o seu postulado central : toda a memória é estruturada em identidades de grupo. Ou seja, de um modo sumário : a memória é um fenómeno social, porque o que se recorda é a memória de um passado intersubjectivo, vivido com os outros [27] ; porque as pessoas recordam memórias partilhadas que evocam em conjunto ; porque se apoia em marcos sociais de referência colectiva, e porque contribui para a identificação social. Estabelece-se, assim, um evidente elo entre a problemática da memória colectiva e a temática da identidade colectiva. Providenciando uma espécie de segurança ontológica a um dado grupo social, a memória colectiva « provides the group a self portrait that unfolds through time, since it is an image of the past, and allows the group to recognize itself throughout the total succession of images » (Halbwachs, 2011 : 147).

Após o contributo de Halbwachs, a temática da memória colectiva perdeu parte do seu protagonismo, embora tenha permanecido presente de modo metamorfoseado, nomeadamente no trabalho da escola de historiografia francesa dos Annales, emblematicamente representado por Marc Bloch e Lucien Febvre, colegas de Halbwachs. De facto, ambos partilhavam a crítica dirigida contra a ideia de uma ‘história total’, favorecendo a ênfase nos modos de vida e nas mentalidades e dando origem ao profícuo desenvolvimento da história das mentalidades durante as décadas de 1960 e 1970.

De qualquer modo, a influência de Halbwachs manifestou-se de forma particular na relação entre a questão da memória e identidade (cf. Booth, 2006). Pese embora o pendor durkheimiano do trabalho de Halbwachs [28], pelo qual a abordagem à memória de grupos (familiares, religiosos, de classe) permitiria identificar mecanismos de identidade e solidariedade, tal relação foi sendo elaborada em distintas perspectivas : memória como força integradora das particularidades individuais que sustenta um sentido de colectivo ; memória como força de afirmação de identidades invisibilizadas, subalternizadas, marginalizadas.

Uma segunda esfera de influência de Halbwachs decorre da integração do contributo de Bergson. Nesta segunda esfera, a questão da memória é retratada como processo activo, ligado à subjectividade e condicionado pelos imperativos do presente. Mas a relevância da memória do passado incide, igualmente, na dimensão das expectativas sociais relativamente ao futuro. A este respeito, Fentress e Wickman (1992), assim como Booth (2006), defendem que a memória possui uma qualidade prospectiva, pois fornece um contexto não só para interpretar a experiência do presente, como também para orientar a acção para o futuro. Ainda neste âmbito, saliente-se o trabalho de Backzo (1984) sobre a relação entre uma memória social colectivamente partilhada e presentificada e as esperanças de uma dada colectividade sobre o seu futuro. Explorando a fabricação e a manipulação da memória por regimes totalitários e ancorando a sua análise na noção de imaginário social como conceito referente às representações colectivas de dada sociedade, Backzo salienta os laços entre a memória colectiva e os anseios e as esperanças depositadas no futuro. Para o autor, de facto, « ce n’est que dans l’abstrait que mémoire et espoir collectifs s’opposent ; dans la réalité historique, très souvent l’une complète et alimente l’autre » (1984 : 9). E nesta segunda esfera, assiste-se, também, ao desenvolvimento das abordagens de cariz construtivista e das perspectivas que salientam o complexo das relações entre memória, conhecimento e poder. Encontra-se aqui, portanto, uma complexa dualidade nas abordagens à memória, assinalada por Booth quando advoga a adopção de uma posição intermédia entre o passivismo (a noção que somos a nossa herança) e a perspectiva construtivista radical :

« On one account, we always see the past from the vantage point of the present, and from its needs and conflicts. The contours of our appropriation of the past change, then, according to what presses in the here and now (....). The constructivist reading is surely right in this sense : that all of these actions contain at least in principle an element of will, of artifice, in the present. (….) At the same time (…) the thick memory of a life-in-common, the tectonic plates resting one on the other, deeply inform the present so that its actions are never wholly separable from the past » (2006 : 67).

Por fim, um outro legado da sistematização analítica avançada por Halbwachs manifesta-se no recuo da tendência do presentismo das tradições sociológica e antropológica e dos seus efeitos reificatórios, contribuindo para a temporalização conceptual e processual daquelas (cf., Stocking, 1982 ; Hartog, 2007).

A re-emergência da temática da memória nos anos de 1980 foi, em parte, conduzida pela terceira geração da escola dos Annales, incluindo Jacques LeGoff, Phillipe Ariès e Pierre Nora, entre outros. Adoptando a expressão de Bernard Guenée de ‘cultura histórica’ e aproximando-se da noção anglo-saxónica de ‘historical mindeness’ (entendida como capacidade de pensar historicamente e identificar o passado no presente), Le Goff (2000), por exemplo, discute o lugar do passado, procurando salientar as relações específicas que as sociedades estabelecem com o seu passado. O desenvolvimento desta questão numa perspectiva antropológica foi levado a cabo, entre outros, por Maurice Bloch.

Advogando que « there is no one way of relating to the past and the future and therefore of being in history » (1996 : 224), e recorrendo a um fundamentado exercício de comparação inter-cultural, Maurice Bloch identifica e problematiza tipos-ideais da relação culturalmente construída com o passado. O autor compara aquilo que denomina de ‘teorias folk’ da memória, distinguindo nelas dois modelos teóricos : o modelo aristotélico e o modelo platónico. Nas suas palavras,

« The Platonist sees particular events as swirling unimportantly around the person while the duty of that person is, above all, that he/she should retain his human identity and protect the true knowledge it implies from the injuries of events. The Aristotelian, on the other hand, cannot consider him or herself ultimately aloof from history. They should be actively seeking to deliberate and make choices about good events and knowledge so as to be continually created and recreated, made and remade through practical reasoning in the process of history » (1996 : 218-219).

Novos limiares

Mais recentemente, autores como Olick (2003 ; 2008 ; 2008ª ; 2009), Assmann (1998 ; 2006), Booth (2006), Derrida (1998), Ricoeur (2000) e Bernstein (1998), oriundos dos mais variados campos disciplinares, têm almejado uma reteorização das clássicas teorias sobre transmissão cultural aplicadas à memória. É no âmbito deste esforço que se tem procedido a uma nova leitura dos contributos de Freud [29], no intuito de produzir uma compreensão, não tipicamente psíquica, mas cultural da memória colectiva. Na perspectiva destes, a abordagem construtivista à memória peca pelo excesso de instrumentalização volitiva do passado que permite e, denunciando os limites positivistas do trabalho pioneiro de Halbwachs, os autores advogam a consideração de dimensões e elementos inconscientes, involuntários ou não volitivos da memória colectiva. Bernstein, por exemplo, avança nesta direcção, observando que

« what is communicated from one generation to the next is not only what is explicitly stated or what is set forth by percept and example, but also what is unconsciously communicated. Unless we pay attention to these unconscious dynamics of transmission, we will never understand the receptivity (and resistance) of a living tradition. What is repressed in the memory of a people is never ‘totally’ repressed in the sense of being hermetically sealed off from their conscious lives ; there are always unconscious memory-traces of what has been repressed. This is why there can be a ‘return of the repressed’, a return that can break out with great psychic force in an individual or in the history of a people » (1998 : 59).

Jan Assmann (1998 ; 2006) tem proposto a este respeito alguns dos contributos mais significativos, avançando com o conceito de ‘memória cultural’, à qual se poderá aceder, não pela reconstrução factual da história, mas sim por uma mnemohistória. Na óptica dos seus adeptos, o que a mnemohistória propõe não é, pois, o conhecimento do passado tal como ele ocorreu, mas sim como é lembrado nas suas distorções e transformações, focando-se, consequentemente, os mecanismos de transmissão (voluntários e involuntários) da memória. Deste ponto de vista, a validade da memória não reside na sua factualidade, mas na sua actualidade. Será, de facto, através da análise das formas de lembrar o passado que se poderão detectar elementos que escapam à enunciação voluntária ou consciente e que veiculam tectónicas de uma memória profunda que opera como horizonte de sentido.

Mas mais do que esta ousadia em discutir o que em Freud foi descartado, a edificação desta abordagem teórica permite conceber, de um modo mais amplo do que em Halbwachs, os enquadramentos sociais e culturais da memória. E fá-lo especialmente quando redescreve o conceito de memória colectiva (ou cultural, na acepção de Assmann) como uma variedade de produtos e práticas mnemónicas que são tão individuais como sociais e colectivas. Na sua qualidade de produtos e práticas, a memória é evidentemente objecto de transmissão explícita, nomeadamente por recurso aos mecanismos da tradição (oral, escrita, monumental, ritual, etc.). Mas tal não esgota a problemática de como perdura a memória, dos seus modos de transmissão não voluntária.

A interrogação da identidade

Como observado, no contexto da modernidade ocidental, a emergência e a consolidação da figura do Estado-Nação e o estatuto do trabalho histórico mantêm entre si fortes ligações. E uma das dimensões mais profícuas para analisar a emergência da preocupação para com a memória colectiva prende-se com a problemática da identidade, do nacionalismo e as funções legitimadoras dos usos políticos do passado em função da afirmação da identidade histórica nacional (cf. Hobsbawn e Ranger, 1992 ; Anderson, 1991).

Ao nível mais específico da identidade, Lambeck e Antze (1996), v.g., argumentam que qualquer invocação da memória é parte integrante de um discurso identitário. Neste sentido, os autores discutem a forma pela qual a memória opera, simultaneamente, como fundação fenomenológica da identidade (sabemos quem somos e as circunstâncias que nos fizeram) e como meio para a construção reflexiva da identidade (procuramos o passado para melhor nos compreendermos). Booth desenvolve, de modo concordante, estas ligações umbilicais entre memória e identidade, ao considerar, por exemplo, que :

« Political identity, through time and change, then, is not a matter of autochthony, of getting a lineage right, nor is it only a matter of asserting our present-tense values, forms of belonging, and so on. Identity works in three tenses, past, present and future, and in one of its central moments it is ethical. It makes us one with the past for purposes of accountability, sheds light on who we are in the here and now, and bind us towards our future societies. (….) It expresses an attachment to the past that is ours and a concern for our future » (2006 : 16).

O desenvolvimento das análises relativas aos nacionalismos e às identidades colectivas nacionais tem vindo a demonstrar a pertinência das funções da memória colectiva. Smith (1997), por exemplo, reflectindo sobre a temática da identidade nacional, desenvolve uma análise do nacionalismo como fenómeno cultural colectivo, como ideologia e movimento, atribuindo especial saliência na sua formação ao papel da memória e do passado histórico. No mesmo sentido, Benedict Anderson (1991) aborda a importância da memória, ao enfatizar como a dialéctica entre o lembrar e o esquecer contribui para a formação da identidade nacional, enquanto artefacto cultural.

Os elos entre nacionalismo, história e memória foram objecto de profunda crítica, a qual abriu caminho às abordagens mais contemporâneas sobre a relação entre história e memória, assim como à recusa dos efeitos totalizantes, nas suas variações ahistóricas ou suprahistóricas, das metanarrativas históricas que a radicalização dos nacionalismos pode engendrar. Neste âmbito, é de relembrar a crítica de Nietzsche aos usos do que apelida de história monumental. Entendida como « um certo excesso de história », pelo qual « a vida se desmorona e se degenera » e pela qual « grandes segmentos do passado são esquecidos, desprezados e fluem como uma corrente cinzenta ininterrupta », Nietzsche argumenta que a « história monumental ilude por meio de analogias : através de similitudes sedutoras, ela impele os corajosos à temeridade, os entusiasmados ao fanatismo (2004 : 17/ 22-23). Le Goff aborda também a manipulação da memória colectiva do poder, argumentando que

« a memória colectiva foi posta em jogo de forma importante na luta pelo poder conduzida pelas forças sociais. Apoderar-se da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de memória colectiva » (2000ª : 12).

A interrogação do mal

Uma outra força de dinamismo nos estudos sobre a memória reside na consideração do trauma como parte constituinte e impulsionadora do debate sobre a memória. Neste ponto, o contributo de Walter Benjamin é seminal, na medida em que, reportando-se às experiências limite da I Grande Guerra, aponta como

« these cataclysms (…) left people not only without the conditions for telling their stories in the heroic form of the epic or even the redemptive form of the novel, but with experiences that were in fact ultimately incommunicable » (Olick et al, 2011 : 14).

Benjamin (cf., 1992, 2010) aborda, de facto, as rupturas entre a experiência e a sua comunicabilidade, as quais são centrais nos discursos contemporâneos sobre o trauma, desenvolvidos a partir dos estudos sobre contextos de guerra e, no que diz respeito mais especificamente à tradição académica ocidental, sobre o Holocausto. [30]

O despertar da consciência sobre a centralidade dos processos sociais e colectivos de memória encontra-se, de facto, associada a análises que se debruçam sobre contextos de guerra, conflito e violência – históricos e contemporâneos. Nesta constelação temática, a literatura é, de facto, prolífera e demonstra a multiplicidade e a complexidade das questões envolvidas. A este nível, v.g., refira-se a obra colectiva « Le rôle des guerres dans la mémoire des européens. Leur effet sur la conscience d’être européen » (1997). Reunindo a obra os resultados de uma pesquisa sobre identidade e consciência europeia no século XX e pretendendo estudar o papel das guerras na formação da memória dos europeus, Fleury explora a hipótese, segundo a qual a experiência das guerras terá contribuído para a emergência de uma consciência europeia e de uma solidariedade entre os europeus (1997). Já Fernandéz, focando as consequências duradouras do franquismo e da guerra civil espanhola na constituição da subjectividade política e nos seus modos de relacionamento com o poder instituído, explica que o « medo, em boa parte devido à memória traumática da guerra civil, revitalizado pela possível reacção dos militares e da direita franquista perante o novo impulso democratizador, esteve muito presente durante todo o processo » (2004 : 113). [31] Adler (2004) desenvolve uma análise similar a partir dos testemunhos do terror stalinista. Roudemotof (2002) explora, por seu turno, como a independência da Macedónia, em 1991, da ex-Jugoslávia afectou profundamente as narrativas nacionais dos países envolventes (sobretudo, Grécia, Bulgária e Albânia), gerando intensos debates sobre identidade histórica e implicações políticas para os vários Estados da região. A pertinência da problemática da memória é, ainda, demonstrada nos casos em que a análise é desenvolvida numa perspectiva pós-colonial, como se abordará posteriormente. Bastará, de momento, evocar, a título de exemplo, o trabalho de Makdisi e Silverstein sobre a relevância da memória para a compreensão dos conflitos no Médio Oriente e no Norte de África. Para os autores,

« In order to understand the resurgence of past conflicts into the contemporary political culture of the Middle East and North Africa, it is necessary to focus on contentious histories (…). Memory (understood as historical imagination) and narration plays important roles in the constitution of national and postnational consciousness » (2006 : 9). E, reportando-se aos casos de Algéria e Líbano, observam contundentemente que « Absence of memory (…) becomes the condition of possibility for forging unity in the aftermath of violent discontinuity » (2006 : 11).

Também por referência a passados traumáticos, Whitehead (2004) aborda o conceito de ‘irrupções da memória’. [32] As ‘irrupções da memória’ assumem especial significado quando derivam da experiência, directa ou indirecta, de um passado colectivo repressivo. Dando especial ênfase aos contextos marcados por conflitos civis, Brito (2004) refere a este propósito que

« na maioria dos casos onde foram cometidas atrocidades há relativamente pouco tempo, o passado continua vivo no presente. Existem diversas expressões para descrever os efeitos dos acontecimentos passados sobre a cultura nacional. O ‘síndroma de Vichy’, o ‘complexo do Vietnam’ (...) são expressões que indiciam uma carga do passado sobre o presente. Assim, mesmo quando já deixou de fazer parte do programa político activo, o passado pode continuar a ser uma fonte muito enraizada de conflitos (...) e de animosidade social, aberta ou latente. Em alguns países (...), a sociedade reflecte abertamente sobre o significado das experiências do passado e debate-o. Noutros, o passado é um fantasma que tanto as elites políticas como a sociedade evitam mencionar. Ainda noutros, existem ‘irrupções da memória’, seguidas de silêncio » (2004 : 60). [33]

A problemática do trauma tem-se constituído, pois, como uma das arenas mais férteis para a exploração das questões da identidade, da memória e da justiça. [34] Distanciando-se criticamente das perspectivas iluministas e psicanalíticas sobre o trauma, acusadas de produzir falácias naturalistas, assim como de promover equivalências lineares entre o individual e o colectivo, o desenvolvimento da teoria do ‘trauma cultural’ expõe os íntimos elos entre tal noção e os processos colectivos de memória, transmissão, representação e identidade. Nesta perspectiva, Alexander providencia um entendimento liminar :

« Cultural trauma occurs when members of a collectivity feel they have been subject to a horrendous event that leaves indelible marks upon their consciousness, marking their memories forever and changing their future identity in fundamental and irrevocable ways. (…) It is the result of this acute discomfort entering into the core of the collectivity’s sense of its own identity » (2004 : 1/ 10).

Saliente-se, por fim, que a visão que tende a instaurar um exclusivismo na relação entre o Holocausto e a re-emergência da memória, associada ao trauma, deverá ser acautelada. É certo que o Holocausto, enquanto evento limite e enquanto símbolo do mal, gerou todo um repensar sobre a possibilidade e a necessidade de memória, tendo sido re-activado e mobilizado como referência no contexto de outras lutas, como a dos movimentos pelos direitos civis nos EUA na década de 1960, assim como a da emancipação relativamente a regimes autoritários na Europa pós-1989. E, na realidade, este estatuto iconográfico do Holocausto tem sido interpretado como estando a contribuir para a formação de uma memória global cosmopolita que poderá visibilizar outros eventos, reivindicações e violências (Olick, 2007 ; Levy, Sznaider, 2010). No entanto, sobre a possibilidade de se encontrar em formação uma ‘memória global’, Huyssen (1995) observava contundentemente que a mesma seria sempre prismática e heterógenea. Na realidade, e de um modo fundamental, tal relação de quasi-exclusivismo pode incorrer nos riscos de uma razão metonímica (Santos, 2002), produzindo desse modo efeitos de invisibilização sobre eventos outros aos quais não é socialmente atribuído o reconhecimento adscrito ao Holocausto, assim como efeitos de consagração da experiência europeia como a condensação simbólica última da experiência do sofrimento indizível e do mal inominável, obviando outras múltiplas experiências massificadas e extremas de violência, engendradas por processos como a escravatura e o colonialismo. Soyinka alerta para este risco, argumentando a este nível que a escravatura é um « global wrong that the world is inclined to absorb, or dismiss as a mere incidente in the course of history » (2000 : 22). Na sua perspectiva, portanto, a hegemonia da tese, segundo a qual o Holocausto contra o povo judeu constitui a primeira ‘ferida aberta’, o primeiro questionamento sobre a validade do humanismo europeu « provides further proof that the European mind has yet to come into full cognition of the African world as an equal sector of a universal humanity » (2000 : 26). Isto é, constitui uma manifestação da incapacidade de superar a sua auto-referencialidade.

A necessidade de trazer ao olhar os genocídios invisíveis do encontro colonial (Scheper-Hughes, 2004) encontra, v.g., uma resposta em The Bushman myth : the making of a Namibian underclass, de Robert J. Gordon. Através de uma análise histórica sobre o colonialismo alemão na Namíbia, focando a política de extermínio dos Bushman, prosseguida entre 1906 e 1914, pelas autoridades coloniais, o autor demonstra dois importantes aspectos. Por um lado, salienta como a estereotipização colonial de que os Bushman foram alvo sustenta o estatuto pós-colonial daqueles como ‘underclass’. Por outro lado, alerta de modo fulcral para a forma pela qual « events in Namibia anticipated those in Nazi Germany to an extraordinary degree » (2004 : 75). [35]

A convocação pós-colonial da memória

O que representará, portanto, o estudo das formas e do papel desempenhado pela memória para aquele que é descrito como sendo o objectivo primevo das análises pós-coloniais, i.e., a justiça histórica e cognitiva ?

No âmbito dos estudos pós-coloniais, Richard Werbner constitui uma das referências de maior relevo, defendendo que a abordagem ao político em África pós-colonial via a memória colectiva constitui uma relevante estratégia analítica para a compreensão de África contemporânea. Nesta perspectiva, e assinalando o fraco reconhecimento da importância da memória para a compreensão da temática do poder em África contemporânea, Werbner argumenta, por exemplo, que

« the critique of power in contemporary Africa calls for a theoretically informed anthropology of memory and the making of political subjectivities. The need is to rethink our understanding of the force of memory, its official and unofficial forms, its moves between the personal and the social in postcolonial transformations » (1998 : 2).

O ponto central do argumento de Werbner diz, pois, respeito, às formas pelas quais as heranças e as memórias do passado, bem como os seus legados de modelos de poder, de estratificação e de sociabilidades impendem ao nível da formação e do posicionamento das subjectividades pós-coloniais. Reconhecendo, assim, a importância do contributo fenomenológico, ao enfatizar a qualidade constitutiva da intersubjectividade na formação e na experiência do sujeito, Werbner procura problematizar as relações entre o pessoal, o político e o moral no seio das transformações pós-coloniais contemporâneas, mormente no que se refere ao posicionamento dos sujeitos face à esfera do poder e ao Estado. A compreensão pós-colonial das realidades contemporâneas necessita, pois, da ancoragem na análise histórica do colonialismo, mas, e de modo particularmente significativo, requer a consideração das formas múltiplas pelas quais as experiências coloniais se presentificam, condicionando, simultaneamente, a construção e a experiência do presente.

Importará evocar, a este nível, como a relevância da dominação colonial para a compreensão das realidades pós-coloniais constitui, v.g., o cerne da análise de Mamdani sobre o genocídio no Ruanda. Em When Victims become killers : colonialism, nativism and the genocide in Rwanda (2004), Mamdani re-elabora o argumento presente em Citizen and Subject. Contemporary Africa and the legacy of late colonialism (1996) demonstrando como, enquanto legado colonial, a distinção entre indígena e não indígena, embora tenha sido abolida da esfera civil pelo Estado pós-colonial, permaneceu como referencial de classificação social e como princípio orientador de dinâmicas de exclusão e rejeição do não indígena na pós-colónia. Ainda neste enquadramento, e partilhando a recusa de Werbner relativamente ao ‘presentismo’ que tende a tratar a memória como mero artefacto do presente, Jennifer Cole, v.g., (1998) desenvolve uma abordagem histórica à importância da memória na avaliação do político. Cole analisa a crise de memória entre os Betsimisaraka da costa este de Madagascar aquando das eleições de 1993, dando especial ênfase à relação de tensão entre a memória local das experiências de poder e o discurso contemporâneo do poder. Essa relação de tensão é retratada como um dilema em que, sobretudo, os anciãos se encontravam – dilema este entre as memórias dos perigos do envolvimento na esfera política e as pressões para participar no sistema democrático. As eleições constituíram, assim, uma oportunidade para compreender o papel social da memória e a relação estabelecida localmente com a esfera do político. Também o trabalho de Linda Green (2004) sobre a experiência da ditadura na Guatemala nos anos 1980 revela como as narrativas locais se referiam às situações de violência política e militar através de metáforas que evocavam a conquista do território pelos espanhóis, descrevendo o terror empregue pelo poder instituído como invasão. O que ambas as análises veiculam é que a enunciação do passado emerge como uma topografia moral que sustenta os significados dados ao presente e que influencia e condiciona significativamente o posicionamento e as práticas dos sujeitos nesse mesmo presente, assim como as suas expectativas face do futuro.

Será, pois, possível interrogar a memória enquanto possível campo de aprendizagem política ? Esta interrogação é avançada por Poluha e Rosendahl, para quem o conceito de aprendizagem política designa formas de aprendizagem sobre o poder e o seu exercício, nas quais « the respective actors use their experience, observation and frustrations to cope with ever new situations, changing themselves in the process » (2002 : 12). O papel do que as autoras designam por memória social é aqui central, na medida em que ela não só medeia a relação com o poder, como também é activada para debater o presente. No entanto, é de sublinhar fortemente que os processos de disputa e debate que são desenrolados não cumprem necessariamente uma função socialmente unificadora. De facto,

« social memory can be used in ‘silent disagreement’ (…) within repressive political systems, where people share ‘unsanctioned remembrance’ (…). Memories of repression and control, which cannot be expressed openly, are transmitted and shared in ingenious ways. The Cubans (…) display their silent disagreement with government policies by dealing with matters that are not officially talked about through sharing rumors, satire and ‘backward reading’. The Ethiopian peasants (…) also express their collective memories, when sharing experiences about state representatives and voicing their disappointment at the fact that the changes in politics, which seemed so promising at the beginning, did not followed through » (2002 : 21).

Na realidade, estes processos de posicionamento face ao presente, mediante a evocação da experiência prévia e da memória (nas suas múltiplas formas), apresentam uma complexidade significativa e não linear. Discutindo a realidade pós-colonial no Botswana, e particularmente a dúbia posição dos Herero, Durham (2002) demonstra como a experiência mais marcante da subjectividade pós-colonial é a incerteza não só ao nível dos debates sobre temas sociais de relevo, como também ao nível da incerteza sobre em que referencial ancorar a acção. A autora explica como, nas últimas décadas, aquilo que parecia ser inicialmente uma tensão entre dois sistemas distintos (uma burocracia de tipo ocidental baseada nos ideais liberais do indivíduo, da cidadania e da igualdade, por um lado, e um sistema baseado em responsabilidades comunais e exercício hierárquico do poder, por outro) confluiu num campo ambíguo de incerteza sobre as premissas da subjectividade política e da acção, onde cada acção pode, em potência, ser inflectida por expectativas e juízos contraditórios, e onde à ideia de cidadania estão associados intensos debates e negociações que decorrem da vitalidade transmutada dos regimes de diferenciação colonial (Mamdani, 1996 ; Werbner, 2002) e que fazem desmoronar os entendimentos normativos que a definem como identidade inequívoca, cuja pertença social – também ela inequívoca -, estaria na base da atribuição de direitos socialmente reconhecidos.

A partir dos anos de 1960, o investimento na prática da produção do conhecimento histórico sobre África levou ao reconhecimento da sua própria historicidade :

« To respect and to affirm the continuity of knowledge of the past which African societies have always produced. Africans have been writing their history for centuries in many parts of the continent, since Muslim culture offered them an instrument : the Arabic alphabet. (…) There, as in other places of the planet, Africans tell, sing, produce (…), sculpt, and paint their history. Just like other peoples, they have always sought to master their past, have had their historic discourses » (Jewsiewicki, Mudimbe, 2001 : 3).

Associada, então, à reabilitação da oralidade, já discutida, a emergente produção de conhecimento histórico sobre África obrigou ao re-colocar a questão da memória. Este segundo desafio reveste-se de particular importância, na medida em que o conhecimento histórico produzido sobre África é, de um modo fundamental, marcado pela biblioteca colonial. O que os autores problematizam é, assim, a possibilidade de conceber a memória – neste campo específico onde predominou historicamente uma historiografia colonial – como mais um campo epistémico :

« While the currently popular notions of recollection and collective memory are more ambiguous concepts than ‘oral traditions’, they also represent rich, as yet untapped, resources for African societies. The opposition between ‘oral’ and ‘written’ has led many scholars to the mistaken conclusion that the oral tradition died when bureaucrats imposed the ‘written truth’. Less tainted by that opposition, memory in all its various forms can thus be used much more effectively that ‘oral tradition’ to conceptualize the post-scripted spoken word » (Jewsiewicki, Mudimbe, 2001 : 4).

No cômputo global, recuperar a experiência de sujeitos historicamente colonizados bem como atentar nas múltiplas formas pelas quais os contextos presentes são experienciados, ajuizados e manipulados à luz dessa memória afigura-se como tarefa central. Discutindo a importância do diálogo entre história e memória na República Democrática do Congo, Mwembu considera o seguinte :

« History can be reconstructed thanks to memory (…) and memory in turn can be better interpreted thanks to history. (…) Memory reveals a solution to the difficulties of the historian in the sense that it offers a raw material for the rewriting of history after achieving a better understanding of the experience of the participants themselves. In that specific framework, it enriches history and even makes it more alive and closer to reality. History, for its part, validates memory – or not – and also allow it to be better understood in context whenever its account is considered accurate » (2005 : 440).

Avaliando a influência da monocultura do conhecimento histórico e os efeitos da invisibilização da experiência social dos sujeitos colonizados, o autor sublinha também vivamente a importância da memória para os contextos pós-coloniais, na medida em que « the archival documents that the colonizers had developed and left had not covered all domains of life (…). This resulted in quite a few gaps that only oral investigation could enhance » (2005 : 446).

II. As implicações epistemológicas da memória

Apresentando uma significativa amplitude temática no seio das ciências sociais (cf. Climo et al, 2002), o conceito de memória tem sido acusado de apresentar uma excessiva carga semântica produzida pela ‘indústria da memória’ (Olick et al, 2011). Talvez uma das manifestações mais eloquentes destas polissemias seminais seja a distinção conceptual entre memória colectiva e memória social.

Assim, por exemplo, Páez et al (1998) definem memória colectiva por referência ao que os grupos sociais recordam, esquecem e se apropriam do seu passado, e concebem, de modo um tanto vago, memória social como a influência que certos factores sociais exercem ao nível da memória individual e ao nível da memória colectiva. Esta nublosa adensa-se ainda mais quando se considera que, para além da evocação voluntária, preservada e recriada da memória comum, a memória colectiva designa mais do que os actos intencionais de evocação e mais do que o catálogo histórico de eventos. Como observado, na medida em que o passado se insinua e se presentifica nos hábitos, na cosmovisão, nos quadros cognitivos, afectivos e volitivos, esta memória presentifica-se e condiciona, em processos involuntários, modos de ser de dada colectividade (v.g., Bernstein, 1998 ; Booth, 2006). Também Connerton (1999), discutindo a questão da memória social, sublinha como o conhecimento e as imagens do passado são transmitidas não só por performances ritualizadas, mas também, e especialmente, por memórias-hábito. Trata-se de uma memória que, como Bergson, em Matière et Mémoire, indica, perdura nas sombras, sendo produzida e sentida na experiência do quotidiano e apre(e)ndida socialmente ao longo da vida (1939).

Em face da miríade de leituras possíveis, Klein, por exemplo, observa o seguinte :

« We have, then, several alternative narratives of the origins of our new memory discourse. The first, following Pierre Nora, holds that we are obsessed with memory because we have destroyed it with historical consciousness. A second holds that memory is a new category of experience that grew out of the modernist crisis of the self in the nineteenth century and then gradually evolved into our current usage. A third sketches a tale in which Hegelian historicism took up premodern forms of memory that we have since modified through structural vocabularies. A fourth implies that memory is a mode of discourse natural to people without history, and so its emergence is a salutary feature of decolonization. And a fifth claims that memory talk is a belated response to the wounds of modernity. None of these stories seems fully credible » (2000 : 143).

De carácter claramente polissémico, a problemática da memória tem sido, por isso, objecto de intenso debate, onde são elaboradas alternativas conceptuais – memória social ; memória colectiva ; memória cultural ; memória comunicativa (cf. Assman, 1998 ; 2006 ; Erll e Nunning, 2008) -, assim como o próprio criticismo que lhe é dirigido. De relevo maior são as implicações epistemológicas que a convocação da memória desperta.

Os desafios da memória

A relação entre história e memória tem sido objecto de intensas controvérsias. Esta tensa convivialidade frutifica, de modo significativo, nas condições do questionamento do privilégio epistémico atribuído à história, na crítica a ambições de carácter (neo e) positivista, no desmoronar da credibilidade heurística de narrativas totais e nos esforços em complexificar estas últimas a partir das situações e condições de subalternidade e invisibilidade, encetados por correntes pós-modernas e, de um modo particularmente vincado, pelas análises pós-coloniais.

Como facilmente se depreende, os desafios colocados pelo surto de interesse sobre a memória ao privilégio epistémico tradicionalmente detido pela história tendem a ser acolhidos com boas doses de cepticismo e, inclusivamente, repulsa. Tais desafios são mormente interpretados como visões utópicas e/ou inexequíveis, na medida em que não obedecem aos critérios hegemónicos de cientificidade. Na óptica dos seus críticos, a memória baseia-se (por constrangimentos sobretudo metodológicos), na história oral, a qual, sendo conotada com a memória individual, não terá suficiente poder heurístico para a produção de conhecimento cientificamente e globalmente válido. [36] O reconhecimento da oralidade como fonte de conhecimento (para o que é de realçar a contribuição de Jan Vasina [37]) conduziu a uma fecunda interdisciplinaridade entre historiadores, antropólogos e linguistas. Para Jewsiewicki e Mudimbe :

« The idea that oral traditions do not deserve our attention, and further that they exist only for the precolonial period, is false and even dangerous. This idea can be linked to another conception, no less errouneous, that African societies completely lost control of their future during the colonial period. This has given rise to a number of myths. An urbanized Africa would then be, from a cultural standpoint, a ‘bastard’ ; only the tural and thus ‘traditional’ African would be the incarnation of Africanness. These presuppositions have strongly marked the scholarly politics of Africanism, and particularly those of African anthropology » (2001 : 3).

Concebendo a inter e transdisciplinariedade como promiscuidade a evitar e recusando liminarmente o questionamento do estatuto e prática epistemológica da história, o criticismo dirigido aos estudos sobre a memória é expresso por Klein no seguinte modo :

« History, as with other key words, finds its meanings in large part through its counterconcepts and synoms, and so the emergence of memory promises to rework history’s boundaries. Those borders should attract our interest, for much current historiography pits memory against history even though few authors openly claim to be engaged in building a world in which memory can serve as an alternative to history. Indeed, the declaration that history and memory are not really opposites has become one of the clichés of our memory discourse. (…) Such disclaimers have little effect on the ways in which the words work. Where history is concerned, memory increasingly functions as antonym rather than synonym » (2000 : 128).

A tensão aqui retratada entre a posição que encara história e memória como sendo absolutamente distintas (Collingwood et al, 1999) e a que advoga a qualidade mutuamente constitutiva da relação entre ambas (Hobsbawn, 1997 ; Hutton, 1993), possui claramente uma natureza epistemológica. Em The principles of history and other writings in philosophy of history, Collingwood et al afirmam logo no início :

« What memory is, and whether it is a kind of knowledge or not, are questions that are not be considered in a book about history : for this at least is clear (…) memory is not history, because history is a certain kind of organized or inferential knowledge, and memory is not organized, not inferential at all » (1999 : 8).

A força das asserções dos autores não permite colocar história e memória em relação epistemológica. De facto, na visão destes, os apelos, v.g., de Burke sobre a necessidade de conceptualizar memória como fonte histórica e, simultaneamente, como fenómeno histórico (tal como a própria história), correriam o risco de ecoar no vazio (2011). Tal manifesta o vigor do pensamento abissal no traçar das fronteiras, tidas por (e desejadas como) inultrapassáveis, as quais definem a inclusão e, por conseguinte, a exclusão, relativamente a regimes hegemónicos de veracidade e validade. [38]

Hutton (1993), em evidente contraposição a Collingwood et al, identifica e analisa os múltiplos trilhos que colocaram historicamente em relação memória e história, avançando com uma interpretação do problema desta relação em termos do problema da consciência histórica efectiva formulado por Gadamer (1998). Defendendo que a hermenêutica é o método das ciências históricas e fazendo uma crítica aos tradicionalismos da cientificidade positivista, Gadamer explica :

« Aqui aparece qualquer coisa de essencialmente novo : o papel positivo da determinação pela tradição (Traditionsbstimmtheit), que o conhecimento histórico e a epistemologia das ciências humanas partilham com a natureza fundamental da existência humana. É verdade que os preconceitos que reinam sobre nós impedem, muitas vezes, o verdadeiro reconhecimento do passado histórico. Mas, na ausência de uma prévia ‘compreensão de si’, que é neste sentido, preconceito, e da disposição para a crítica de si mesmo (…), a compreensão histórica não seria possível e não teria sentido. É somente pela mediação dos outros que podemos chegar a um verdadeiro conhecimento de nós mesmos. (…) É cometer um grave contrasenso supor que (…) a tradição (presente em toda a compreensão) implica uma aceitação acrítica da tradição, ou um conservadorismo social e político. (…) uma tal suposição encerra a hermenêutica numa perspectiva idealista (…). Ora, o afrontamento da nossa tradição histórica é sempre, na verdade, um desafio crítico que essa tradição nos lança (…). Toda a experiência é um afrontamento deste género » (1998 : 12/14).

Tal significa que, no âmbito da teoria da compreensão hermenêutica de Gadamer, o pre-conceito assinala uma possibilidade positiva de compreensão e sociabilidade, na medida em que « em qualquer época dada, um vocabulário, o que inclui padrões de racionalidade e definições de verdade, é privilegiado, não num sentido metafísico ou absoluto, mas no sentido que se trata de um vocabulário partilhado » (Heckman, 1986 : 231). Nas suas palavras,

« O historicismo positivista é ingénuo porque jamais vai até ao fim das suas reflexões ; fiando-se cegamente nos pressupostos do seu método, esquece totalmente a historicidade que é também a ‘sua’. Uma consciência histórica, que se propôs ser verdadeiramente concreta, deve considerar-se, ela mesma, já como fenómeno essencialmente histórico » (Gadamer, 1998 : 87). Baseado na hermenêutica de Gadamer, Hutton considera, assim, que :

« Interpretation is always carried out from within the traditions in which we are immersed (…) Traditions’s authority lies in the context it provides for the historian’s interpretation of that which is strange and alien in the past. (…) So conceived, historical understanding involves a ‘fusing of horizons’ of past and present (...). The relationship between past and present is always dynamic and hence always provisional. (…) Gadamer would content that history, like memory, always involves reciprocal relationships. (…) The key to Gadamer’s argument, therefore, turns on his appreciation of tradition as the ground of historical understanding. It is as if tradition were a continuum that situates both memory and history. (…) It is a milieu of collective memory » (1993 : 159).

Pese embora a centralidade parcialmente (a)crítica que Gadamer atribui à modernidade ocidental [39], as suas propostas hermenêuticas permitem clarificar duas questões que se encontram intimamente interligadas. Por um lado, e como é evidente a partir da leitura de Hutton, a memória – enquanto horizonte de sentido e de compreensão – integra e molda a produtividade histórica. Ela constitui uma condição neste sentido particular : uma condição da própria história, da sua forma de produzir conhecimento, de julgar e encadear factos e de produzir explicações. Por outro lado, o alerta sobre esta historicidade da própria história é acompanhado pela colocação dos desafios germanos de desfamiliarização e desnaturalização, já que

« Possuir sentido histórico é vencer de maneira consequente a ingenuidade natural que nos faria julgar o passado segundo os critérios supostamente evidentes da nossa vida actual, na perspectiva das nossas instituições, dos nossos valores e verdades adquiridas. Possuir sentido histórico, significa : pensar expressamente no horizonte histórico que é coextensivo à vida que vivemos e à experiência de vida » (Gadamer, 1998 : 19).

A possibilidade da noção de consciência histórica efectiva abrir novas perspectivas residirá na abertura às disjunções e descontinuidades entre tempos e contextos de mundos e exeperiências não facilmente traduzíveis, cuja possibilidade de diálogo requer uma habitação mediativa. Nesta linha, por exemplo, Tony Bennet (1999), reflectindo sobre a impossibilidade de se aceder ao passado e sobre as consequências de se ter apenas acesso a arquivos, eles próprios historicizados, considera que o estatuto do conhecimento histórico não jaz no pilar da verdade positivista, mas na sedimentar realidade do presente e nas realidades que as historiografias do presente mantêm, preservam ou transformam. Na produção do conhecimento histórico, apenas uma observação de segunda ordem capaz de desnaturalizar instrumentos conceptuais e referenciais cognitivos - de neles ver a sua incompletude - poderá trazer a consciência de que esse conhecimento não é tanto sobre o ‘passado como foi’, mas sobre o ‘passado como é (significa/ importa) para o presente’. Isto ajuda-nos a compreender a forma pela qual a vigência e os lastros de uma ‘imaginação imperial’ condicionam, sem essa observação de segunda ordem, uma leitura naturalizada e unívoca do ‘passado como foi’ e que, frequentemente, retrata apenas ‘o passado como é (significa/ importa) para o presente’ de quem constrói e relata a história. [40]

Os debates sobre a possibilidade de se conceber a memória como campo epistemológico produziram a relativização do trabalho do historiador. Se sob a égide da ciência moderna positivista, o historiador detinha o monopólio sobre a produção do passado e do seu conhecimento, hoje deverá partilhar esse papel com uma pletora de novos actores (Nora, 2000). A validade do debate sobre a possibilidade, ou os limites, de encarar a memória como campo epistemológico, assim como a discussão sobre o papel da história na constituição da memória colectiva, são intensos, mas permitiram não só o ampliar do leque de tópicos de possível abordagem, bem como o ampliar da concepção canónica de conhecimento. [41]

A nota dos editores TERRA : A partir daqui, por favor, consulte a versão em PDF do documento atual, a fim de ler, a partir de p. 67 em diante, as notas de rodapé, que já não estão inseridos na versão atual, bem como para ver fotos e mapas.

Note des rédacteurs de TERRA : À partir d’ici veuillez vous reporter à la version PDF, ci jointe, de ce document pour acceder à partir de la page 67 aux notes de bas de page, au cartes et aux illustrations qui ne sont plus reprises dans le texte qui suit plus bas.

A note by the TERRA editors : From here on, please refer to the PDF version of the current document in order to read, starting from p. 67 on, the footnotes which are no longer inserted in the present version, as well as to see pictures & maps.

"Os Espelhos Quebrados..."

PDF - 4.5 Mo

Ampliar o real [42]

Como referido anteriormente, os efeitos da imposição unívoca de uma temporalidade linear incluem a desqualificação e a invisibilização de formas alternativas de construção de significado, identidade, história e memória. Jewsiewicki e Mudimbe denunciavam criticamente tais efeitos do seguinte modo : « By accepting historicity as the only rational reading of the world, transforming spatial dimensions into hierarchies of power, and robbing the Other of its creative agency and thus of its humanity, imperialist culture has reduced its own experience of the world to a single dimension. It has promoted a ventriloquist’s discourse of the Others, talking about the ‘politics of confrontation and hostility’ and opposing incompatible versions of the past until the final confrontation, the Gulf War being a good example. Said’s reflection on contemporary critical theory’s in-ability to take into account spatiality as a structure of inequality in the world emphasizes the historic gap between discourse, on the one hand, and cultural and political practices, on the other (…). This new reading describes an interaction between European history and the histories of other peoples for whom the dominant discourse has a bearing. In the mode of polyphony, this reading produces a synthesis without reducing other themes to silence, giving them rather a new profile and allowing new narrative forms to emerge » (1994 : 39/48).

De um modo mais fundamental, é esta monocultura do tempo linear que instaura a linha abissal entre história e memória, desqualificando esta última como campo epistemológico dialogante. A monocultura do tempo linear assinala, simultaneamente, a produção e atestação da monocultura do saber. Em face destes limites, Santos elabora a sua proposta relativa à ecologia dos saberes e à ecologia das temporalidades. A primeira assenta no princípio da incompletude e afirma-se como condição de inter-reconhecimento entre saberes (como, no caso, entre história e memória), e de debates epistemológicos entre diferentes formas de conhecimento. Sem implicar a aceitação acrítica do relativismo e desafiando hierarquias universais, abstractas e historicamente naturalizadas,

« A ecologia dos saberes visa criar uma nova forma de relacionamento entre o conhecimento científico e outras formas de conhecimento. Consiste em conceber ‘igualdade de oportunidades’ às diferentes formas de saber envolvidas em disputas epistemológicas cada vez mais amplas, visando a maximização dos seus respectivos contributos para a construção de ‘um outro mundo possível’, ou seja, de uma sociedade mais justa e mais democrática, bem como de uma sociedade mais equilibrada em suas relações com a natureza » (2006 : 100). Mas a ecologia dos saberes, no que se refere às relações entre história e memória, é indissociável de uma ecologia das temporalidades. Por esta última, é desmistificada a ideia, segundo a qual o domínio do tempo linear é auto-evidente, desvelando como ela corresponde a uma primazia conceptual da cientificidade hegemónica. Para além disso, permite questionar a validade das práticas de periodização cronológica a partir de distintos lugares de enunciação e experiência. Integrada na sociologia das ausências, a ecologia das temporalidades permite, assim, ver que : « a subjectividade ou a identidade de uma pessoa ou grupo social num dado momento é um palimpsesto temporal do presente, é constituída por uma constelação de diferentes tempos e temporalidades, alguns modernos, outros não modernos, alguns antigos, outros recentes, alguns lentos outros rápidos, os quais são activados de modo diferente em diferentes contextos ou situações » (Santos, 2006 : 101). E, na realidade, o exercício da ecologia dos saberes é correlato, para Santos, de uma nova literacia temporal – a multitemporalidade. No âmbito das relações entre história, na sua acepção canónica, e histórias e memórias desqualificadas, a ecologia dos saberes exige, de facto, que estas últimas sejam reconhecidas como campos epistemológicos. A multitemporalidade, enquanto diálogo de saberes diferentemente situados, possuídos, vividos e exercidos, depende, assim, do exercício da hermenêutica diatópica, o qual, superando a auto-referencialidade epistemológica, se transfigura num exercício de inter-historicidade, isto é, uma modalidade específica de dupla ecologia das temporalidades e dos saberes, aplicada às relações entre história e memória. Inscrições e dilemas pós-coloniais

As análises pós-coloniais têm sido desenroladas, predominantemente, em torno de duas perspectivas dominantes (v.g., Hall, 1996 ; Santos, 2006). Por um lado, a que identifica o pós-colonial como período histórico iniciado com a independência das colónias e que tem sustentado grande parte dos estudos sobre processos de construção e institucionalização do Estado e sua inserção no sistema mundo. Uma segunda perspectiva, desenvolvida, sobretudo, no campo dos estudos culturais e literários, procura desconstruir as narrativas coloniais e dar lugar privilegiado às narrativas produzidas pelo sujeito colonizado. Santos identifica, neste âmbito, várias orientações temáticas. A primeira refere-se não só à superação da distinção entre crítica e política, como também às implicações epistemológicas que tal superação carrega consigo. Na realidade, a crítica ao discurso e à relação colonial deve assumir-se como espaço fundador de novos discursos e novas relações, o que corresponde à abertura política engendrada pela crítica. Ou seja, a função da crítica pós-colonial é eminentemente política. Mas a efectiva fecundidade da articulação entre crítica e política exige que os elementos disjuntivos visibilizados pela crítica sejam colocados em relação de tradução. A segunda orientação temática diz respeito aos processos de hibridação dos regimes e registos identitários encontrados no âmbito da relação colonial. Estando exposta a vacuidade da distinção absoluta entre a identidade do colonizador e a identidade do colonizado, a terceira orientação temática centra-se no processo de construção da identidade pós-colonial, o qual, desenrolando-se numa zona de fronteira, onde as margens são trazidas para o centro e onde o espaço de negociação e expressão da diferença cultural é maior do que a visão de um certo tipo de multiculturalismo conservador, reaccionário e folclórico que, preservando o centro hegemónico, define as regras de expressão e afirmação limitada e domesticada da diferença cultural. A terceira orientação temática identificada por Santos centra-se na questão do nacionalismo. Evocando o trabalho de Chatterjee (cf. 1993), Mudimbe (1988), entre outros, o autor destaca a resistência colonial como a dimensão de relevo maior, não deixando de salientar as ambivalências e contradições decorrentes do facto de « o discurso nacionalista, ao mesmo tempo que desafia a dominação colonial, aceita as premissas intelectuais da modernidade em que a dominação colonial se funda » (2006 : 221). Uma última orientação salientada, associada à identidade pós-colonial, concerne a experiência diaspórica e o seu potencial de criação de subjectividades desestabilizadoras duplamente capacitadas para a descanonização e para a transformação emancipatória. Do ponto de vista do pós-modernismo de oposição, estas duas perspectivas padecem de uma série de limites. Por um lado, como argumenta Santos, a relação colonial não é a única relação de poder desigual, devendo ela ser articulada (e a sua crítica expandida) com outras relações de poder, como classe, sexismo, racismo, idosismo, etc. Por outro lado, a ênfase da cultura e do discurso, como a que é patente na segunda perspectiva, na qual assentam parte significativa das análises sobre a temática da colonialidade, não dispensa a análise da economia política (muito especialmente no que diz respeito ao capitalismo). Esta ausência é, de facto, séria, na medida em que tende a menorizar o papel da articulação entre, por um lado, a crítica e, por outro, a acção, isentando a primeira da sua função política de transformação social e contribuindo, subsequentemente, para a invisibilização de modos contemporâneas de poder e dominação (como os que se encontram, por exemplo, em situações de neocolonialismo), e tem sido apontada por diversos autores. Assim, no que se refere à crítica à formulação conceptual de pós-colonialismo, Stuart Hall refere, por exemplo, o risco de veicular com o conceito de pós-colonialismo a ideia de ruptura em detrimento da ideia de continuidade e seus efeitos despolitizantes. Assim, argumentando que o termo « re-reads ‘colonisation’ as part of an essentially transnational and transcultural ‘global’ process », Hall contra-argumenta, enfatizando o seu poder crítico : « This re-narrativisation displaces the ‘story’ of capitalist modernity from its European centering to its dispersed ‘peripheries’ ; from peaceful evolution to imposed violence ; from the transition from feudalism to capitalism (…). It is the retrospective re-phrasing of modernity within the framework of ‘globalisation’ in all its various ruptural forms and moments (…) which is the really distinctive element in a ‘post-colonial’ periodization » (1996 : 247/250). O terceiro limite das análises pós-coloniais identificado por Santos poderá ser sumariado da seguinte maneira : ao basearem-se predominantemente no colonialismo hegemónico (sobretudo britânico, mas também francês), estas análises acabam por reproduzir uma certa homogeneização universalizante das experiências coloniais e realidades pós-coloniais. É neste sentido que, advogando uma perspectiva histórica e comparada, Santos apela a um pós-colonialismo situado, sem o qual « o pós-colonialismo será mais uma forma de imperialismo cultural, e uma forma particularmente insidiosa porque credivelmente anti-imperialista » (Santos, 2006 : 231). Os argumentos críticos sistematizados até este momento incidem sobre o que se poderia designar uma ‘observação de primeira ordem’, isto é, trata-se de uma análise que criticamente ajuíza sobre as abordagens pós-coloniais à empiria a partir de quadros e grelhas teóricos relativamente estabilizados e, nessa medida, objectos de global aceitação. Uma ‘observação de segunda ordem’, por seu turno, focará de modo mais incisivo não só as abordagens à empiria, mas também os pressupostos epistemológicos de tais quadros e grelhas. Nesta óptica, um necessário esforço de revisão crítica do processo de estabilização conceptual que sustenta tais quadros teóricos impõe-se. Por fim, através dessa mesma revisão crítica, iluminar-se-ão as positivas filiações e inscrições conceptuais e teóricas, ultrapassando, assim, os efeitos redutores de uma excessiva estereotipização conceptual, ainda que politica e eticamente orientada. Vejamos. Como mencionado, no âmbito das análises que se designam como pós-coloniais decorre uma significativa multiplicidade de análises. Estas, partindo de diversas interrogações, buscam explorar as especificidades que resultam de trajectórias históricas marcadas pelas distintas dominações coloniais numa pletora de tempos e espaços. Desde análises que decorrem, como referido, de abordagens literárias e/ou culturalistas a perspectivas que procuram focar os processos históricos e políticos, ancorando-os em explicações que necessariamente deveriam dialogar com a economia política , as interpretações construídas em torno daquilo que se assume ser uma situação pós-colonial tendem a ser guiadas por uma evidente preocupação para com questões de justiça histórica, as quais são pensadas como sendo indissociáveis da renovada afirmação de diferenças historicamente desqualificadas e objecto de conversões múltiplas. Neste sentido, a ‘politics of difference and identity’ emerge como a força tectónica de tais análises (v.g., Masolo, 1997). Uma das manifestações mais fulgurantes dessa força motivacional reside no esforço conducente à instauração de uma análise fora do escopo da biblioteca colonial. Tal esforço é mormente retratado como o recuperar de vozes e epistemes silenciados, desqualificados e/ou deformados pelas representações normativas veiculadas pela biblioteca colonial. Pressupõe a ideia de um ‘out there’ que, em versões mais militantes e/ou romantizadas, poderá estar associada às perturbadoramente clássicas (ou também perturbadoramente transversais a distintos universos culturais) ideias-satélite de essência, autenticidade, pureza e à dicotomia identidade/diferença. A discussão deste esforço conduz, por sua vez, a um complexo debate epistemológico associado a uma discussão de cariz ontológico sobre as possibilidades de auto-nomeação. Na realidade, nos projectos de cariz pós-colonial assim inspirados e mobilizados (enunciar a identidade e a diferença fora do escopo da biblioteca colonial), a noção de ‘subalternidade’ tem sido empregue como central, bem como o conceito de ‘essencialismo estratégico’. Em ambos, é-se confrontado novamente com uma ‘politics of difference and identity’, suscitada por preocupações para com uma indispensável justiça histórica (v.g., Irele, 1996 ; Loomba, 1998). Importa, pois, sublinhar aquela que parece ser, do ponto de vista epistemológico, a principal preocupação dos estudos pós-coloniais : saber se há epistemologia que não seja de uma epistemologia de conquista, posse e conversão. Tal interrogação exige, por sua vez, uma formulação clara sobre o conceito de epistemologia : « Instead of using epistemology strictly in a technical sense (…), let us understand it as designating simply any savoir concerned with a functional knowledge system and its practicality. Such a definition corresponds to the popular usage of the word in the domain of postcolonial studies. It has another advantage, that of englobing the field of normative knowledges, as well as those of marginal and unscientific systems. In this sense, the concept applies to the savoirs and skills of any cultural system of yesterday and today » (Mudimbe, 2013 : 5). A admissão desta conceptualização permite realizar várias operações analíticas. Por um lado, implica claramente a possibilidade de se pensar em termos de diversidade epistemológica (v.g., Santos, 2006). Por outro lado, permite visibilizar o problema central da violência epistémica. A consideração segundo a qual a violência epistémica se produz necessariamente num contexto de diversidade de significações (ou num contexto de diversidade de anseios, interpretações e possibilidades dentro de uma mesma configuração epistémica) alerta para o facto de aquela ser um elemento central nos esforços de conversão da diferença, os quais, obrigando ao paradoxo e à perplexidade, são realizados em função do desejo por uma mesmidade normalizada ou por uma diferença domesticada. O exercício da violência epistémica tem sido profundamente associado à biblioteca colonial e à normatividade e enviesamento das suas práticas representacionais. De facto, « The Colonial Library is a transdisciplinary space that for centuries transcended axes of separation between natural and social sciences. Its huge capital was put to the service of absolute aberrations such as the slave trade. The Library justified the unjustifiable in deviant ethics, shaming human intelligence » (Mudimbe, 2013 : 19). É perante o bloqueio de possibilidades epistemológicas e humanas atribuído à biblioteca colonial que assoma a urgência do distanciamento e da re-presentificação do que foi por ela negado. Emerge, assim, uma ‘identity politics’ assente na ideia da diferença, da autenticidade e da originalidade. Uma das mais interessantes arenas para discutir a complexidade do esforço de auto-nomeação fora do ‘hábito possessivo’ das práticas enunciativas e representativas da epistemologia moderna colonial e das suas heranças, dirá provavelmente respeito ao debate sobre a existência, ou a possibilidade, de uma filosofia africana. Este já longo debate tem uma particularidade. É que encarna a geografia política e epistemológica dos conceitos como uma espécie de ‘guerra de posições’, numa evocação libertária da noção de Gramsci. Neste sentido, o debate é uma declinação de uma discussão mais vasta, pertencente à tradição clássica da filosofia europeia, e que tende a estruturar, ainda de maneira bastante influente e hierarquizante, distintos campos e agentes de produção de conhecimento. A este respeito, Sakai, discutindo a dicotomia ‘humanitas’ e ‘anthropos’ como campos diferenciados de produção de teoria e de narrativas etnográficas, respectivamente, que espelham relações de poder, argumenta de forma particularmente ilustrativa :

« Let us recall that when Husserl denied the status of philosophy to ‘Indian and Chinese philosophies’, he attributed ‘anthropological types’ to knowledge produced by Indian and Chinese philosophers. (…) The Asians may well produce certain wisdom, but their wisdom could never transcend their ethnic particularity and thus reach the domain of theoretical universality. What was lacking in Indian and Chinese philosophies was the practical commitment to theory, an attitude of theoretical universality which opened out beyond the institutional conditions of their life worlds » (2010 : 452-453).

Na realidade, o desenvolvimento da chamada etnociência e da etnofilosofia durante a década de 1960 constituiu, fundamentalmente, uma metamorfose do posicionamento descrito por Sakai. O ímpeto aparentemente re-qualificante da etnociência e da etno-filosofia desvelou, todavia, a sua inocuidade, na medida em que a conceptualização dos sistemas cognitivos como sistemas de crenças acabou por reproduzir a marca diferenciadora dos sistemas de conhecimento não ocidentais. E a esta primeira instância de reprodução outra foi adicionada : pese embora o reconhecimento dos sistemas cognitivos e filosóficos locais, estes deveriam ser explicitados de acordo com a grelha analítica elaborada pela tradição filosófica ocidental. A impossibilidade de auto-nomeação livre que aqui se apresenta constitui uma importante força motivacional para a crítica epistemológica e filosófica produzida em África e por autores na diáspora. A este respeito, Irele (1996) argumenta que o pensamento moderno africano tem sido guiado pela necessidade de definir uma identidade, afirmando a diferença face ao colonizador. O esforço consciente por esta diferenciação permitiu, por seu turno, o desenvolvimento de perspectivas historicamente importantes, tais como as que são elaboradas pela ideia de ‘personalidade africana’ e pelo movimento da negritude, as quais, contudo, ao re-interpretarem predominantemente o colonialismo como uma disrupção da autêntica historicidade africana, procuram sistematizar, a partir das recuperações do passado pré-colonial, o sentido e a essência irredutível de uma identidade africana. É, pois, evidente a atenção dada às condições de/para tematizar a diferença no contexto de preocupações e engajamentos pós-colonial (científicos, éticos e políticos) para com a reposição da justiça histórica. Todavia, marcadas pela ansiedade fundadora concernente à reposição da justiça histórica para com sujeitos subalternos, as análises pós-coloniais tendem a descurar vários processos. Em primeiro lugar, importa referir a sua potencial violência. Para Masolo : « But while the overarching political view of postcoloniality as an emancipatory movement is completely justified, a problem arises with regard to its two-pronged assumption, prevalent in the most influential postcolonial texts : first, that all formely colonized persons ought to have one view of the impact of colonialism behind which they ought to unite to overthrow it ; second, that the overthrow of colonialism be replaced with another, liberated and assumedly authentic identity. (…) For, so long as the monolithism of the above assumptions remains suspect, the efforts of postcoloniality remain only, and validly so, a search for something that remains constantly illusive » (1997 : 285-287). Um outro processo tendencialmente negligenciado refere-se às formas múltiplas pelas quais essa mesma biblioteca colonial pode ser mobilizada para diferentes fins, nomeadamente para subverter relações de dominação. Em terceiro lugar, provavelmente dado o peso e a influência das suas versões historicamente mais mobilizadas, a biblioteca tende a ser lida como produto exclusivo do olhar colonial sobre o colonizado. Esta espécie de autoria exclusivista é efeito de uma atribuição – atribuição essa que corre o risco de negligenciar os complexos processos de participação, subversão, desarticulação, hibridação, bem como a própria diversidade interna da biblioteca. Em quarto lugar, a ideia segundo a qual a superação da impossibilidade representada pela biblioteca colonial (nomeadamente em termos de auto-nomeação) apenas poderá ser realizada fora da esfera de influência daquela, por uma outra linguagem não contaminada, corre o risco de se constituir, fundamentalmente, como uma negação da possível comunalidade (enquanto comum-pertencer) dessa mesma biblioteca. Um exemplo rápido e que marcou os debates tidos, especialmente nos anos de 1990, no âmbito dos chamados ‘Estudos Africanos’ poderá esclarecer esta questão : se o conceito de sociedade civil for apenas descrito como produto da sociedade burguesa europeia dos séculos XVIII e XIX, será que o mesmo não tem nenhuma ressonância noutros contextos ? Em sentido similar, Mudimbe argumenta o seguinte : « There is, first of all, the question of instrumentarium. I mean, the question of conceptual means and grids that African intellectuals can use in order to describe and master a given situation, a given reality. That reality might be an African custom or a European problem or whatever. By these concepts, I am, in fact, referring to the dialectic between cognitive representations and empirical experiences or facts. The conceptual means are there. Why not use them ? You might say that they come from the scientific tradition of the West. Yes, so what ? They are just means. You can use them as tools in order to describe something which is specifically ‘African’ or which is specifically ‘Asian’ or ‘European’. That said, I think that the most important problem the African intellectual might face is a problem concerning the epistemological space from which he is speaking, and so far, yes, that’s right, we do speak from Western epistemological spaces. (…) What is important is the result we can produce and not the fact of being alienated. Your consciousness has an impact on what you are observing and on what you are saying, and indeed, on the way you will be manipulating the means. Secondly, you are speaking from a given space which might be an African space, a Caribbean one, or an American space. That means that there is an interaction between you and other people, your common cognitive representations and your lived experience, the reality you are observing and studying, and yourself. This second dimension should be linked to a third one, which is time. We are living now at the end of a century. (…) As a consequence, because of these three factors, whatever you write and whatever your alienation might be, the result of what you do or say will be completely different. It will be marked by what you are, by the fact that your voice or your perception stems from somewhere and a given time » (in Smith, 1991 : 979-980).

Entre a reminiscência e a suspeição : os dilemas da justiça e da identidade

Produto de uma re-orientação das ciências sociais durante os anos de 1980, os estudos pós-coloniais têm, de algum modo, procurado denunciar e superar os limites emancipatórios que a crítica pós-moderna e pós-estruturalista enfrentou sem sucesso e reproduziu com certa displicência. De modo muito sumário, a aparente concordância entre as duas abordagens « oculta uma relação complexa, ambígua e conflitual entre pós-modernismo e pós-colonialismo. De facto, embora seja evidente que as duas posições partilham a crítica ao universalismo que celebrou o Ocidente como centro do mundo, o pós-colonialismo recusa aquela que é a falácia central do primeiro. A saber : a celebração do fim das metanarrativas, assim como a celebração da fragmentação, da pluralidade e da diferença não deverão assentar no esquecimento das desiguais relações de poder, nem ficar alienada numa espécie de cepticismo ou resignação fatal ou de uma renovada neutralidade epistemológica face à transformação social, caso contrário ficará ‘sempre por saber se a declaração do fim das metanarrativas e das totalidades hierárquicas não é ela mesma uma metanarrativa cuja totalidade e hierarquia se insinua na celebração da fragmentação e da diferença’ (Santos, 2006 : 27-28) » (Gomes ; Meneses, 2011 : 1). Alicerçada na crítica a um « pós-modernismo celebratório » que « retira do diagnóstico da crise do paradigma da modernidade (…) a conclusão de que as aspirações de transformação social modernas (liberdade, igualdade, solidariedade, dignidade) devem deixar de ser um problema central das ciências sociais » (Santos, 2006 : 224), o recurso ao pós-colonialismo tem contribuído para uma nova politização do conhecimento. Esta re-orientação dá corpo à proposta do Santos sobre a formulação de um pós-modernismo que o autor qualifica como sendo de oposição, e cujas avenidas analíticas em muito se relacionam com as propostas pós-coloniais. Tais avenidas analíticas, retratadas por metáforas que pretendem designar utopias emancipatórias, incluem ideias, lugares e práticas de fronteira, de barroco e do Sul, as quais, articuladas em constelação, ao invés de isoladamente, fundam o potencial de subjectividades emancipatórias (Santos, 2002). Vejamos. A fronteira implica a deslocação do discurso e das práticas do centro para as margens e designa, neste sentido, a necessidade de elaborar uma fenomenologia da marginalidade, destinada a tornar presente a imensa riqueza criativa da experiência do mundo. O barroco, constituindo-se em dinâmica central da subjectividade desestabilizadora e emancipatória, prende-se com « ‘a criação de novas constelações de sentido que, à luz dos seus fragmentos constitutivos, são verdadeiramente irreconhecíveis e blasfemas’ » (Santos, 2006 : 335). Por fim, o sul metaforiza, simultaneamente, o carácter multifacetado da opressão contemporânea, assim como a capacidade de resistência e inovação. Em cada um destes topoi, torna-se evidente que, para o autor, a formulação deste pós-modernismo de oposição, possível mediante a superação da auto-referencialidade do pensamento moderno, depende da ancoragem do conhecimento no quadro epistemológico proposto pelas epistemologias do sul. É que estas permitirão a elaboração de uma ‘novíssima retórica’, na qual « os topoi têm de ser rebatidos com os topoi contrários, os factos com outros factos e as verdades com outras verdades. (…) Um topos contraposto a outro topos enquanto artifício argumentativo para inventar novos topoi, novos campos campos de conhecimento partilhado e, eventualmente, de novas batalhas » (Santos, 2002 : 99).

Todavia, as complexas inscrições e filiações disciplinares das abordagens pós-coloniais merecem um, ainda que sumário debate, sobretudo no que toca às influências percursoras do estruturalismo e do pós-estruturalismo. Num artigo publicado em 2004, Simon Gikandi analisa criticamente tais filiações.

Globalmente, a emergência em França do discurso estruturalista e pós-estruturalista pode ser conceptualizado como uma reacção contra a tradição europeia de humanismo. Representando uma primeira resistência crítica à tradição humanista, o projecto estruturalista era, essencialmente, guiado por um objectivo filosófico : a necessidade de transcender o humanismo europeu e o seu etnocentrismo. Para tal, a opção teórica e metodológica consistiu, sumariamente, em conceptualizar a linguagem como chave para a compreensão da vida social. Tal opção reflecte claramente a influência de Saussure (2006).

Habitando a atmosfera intelectual de Durkheim e Freud, Saussure estabelece uma abordagem inédita à questão da linguagem como produto social, independente do indivíduo e da sua consciência. Com esta conceptualização, procedeu-se, pois, ao isolamento da língua como sistema de significados e viável objecto de estudo. É precisamente a procura por esse sistema de significados subjacente que marca o desenvolvimento do estruturalismo e da semiologia. Todavia, importa desmistificar brevemente algumas das erróneas leituras que motivaram ulteriormente uma aversão e rejeição excessivas.

De facto, nessas leituras, o estruturalismo tende a ser equacionado com o postular de um sistema (ou estrutura) tudo englobante que ocuparia o lugar anteriormente adscrito à noção de essência. O que tais interpretações tendem a esquecer é que, como refere Culler, « you cannot hope to attain an absolute or Godlike view of things but must choose a perspective, and within this perspective objects are defined by their relations with one another, rather than by essences of some kind » (1986 : 17). Neste sentido, e para Saussure, o signo linguístico é, acima de tudo, uma relação estabelecida entre significado e significante, não detendo os elementos que compõem essa relação uma conexão natural entre si. Nesta óptica, a realidade emerge, pois, de relações e não de essências. Mais : as relações que produzem uma dada realidade não são necessárias ou naturais.

A grelha analítica desenvolvida por Saussure encontra um desenvolvimento especialmente importante no trabalho de Lévi-Strauss, onde o problema da linguagem é explicitamente tratada como um sistema de signos. O estudo das leis e dinâmicas da vida social é, assim, possibilitado pela decifração da ordem simbólica que aquele sistema carrega em si mesmo. Esse sistema não só é constituído historicamente, pelo que possui uma natureza, simultaneamente, sedimentar e processual, como também é operante no presente da vida colectiva e individual. Esta dupla característica é a razão fundamental para o advogar da relação de complementariedade entre história e antropologia, descritas, em termos lévi-straussianos, como as duas faces de Janus.

Na verdade, em Structural Anthropology (1963), Lévi-Strauss discute a complementariedade entre história e antropologia, retomando o argumento de Franz Boas :

« The whole question is to know wether, as Boas so profoundly observed, even the most penetrating analysis of a unique culture (…) can attain full significance without knowledge of the historical development underlying present patterns. (…) When, in adition, one completely limits the study to the present period in the life of a society, one becomes first of all the victim of an illusion : for everything is history. (…) The issue can thus be reduced to the relationship between history and ethnology in the strict sense. We propose to show that the fundamental difference between the two disciplines is not one of subject, of goal, or of method. They share the same subject, which is social life ; the same goal, which is a better understanding of man ; and, in fact, the same method, in which only the proportion of research techniques varies. They differ, principally, in their choice of complementary perspectives : history organizes its data in relation to conscious expressions of social life, while anthropology proceeds by examining its unconscious foundations » (1963 : 29/32/38).

O gesto emancipatório do estruturalismo e que ainda hoje se desvela como uma interpelação pertinente para as abordagens pós-coloniais, é, assim, uma reconceptualização não etnocêntrica da humanidade.

De modo similar, argumenta Gikandi (2004), se o pós-estruturalismo emergiu como crítica ao humanismo residual do estruturalismo, importa ter em conta o peso da sua influência no desenvolvimento dos discursos anti-coloniais. Tal influência é especialmente visível nos contributos oriundos da fenomenologia existencial de Sartre, pese embora a rejeição de Sartre pelos estruturalistas que nele viam a reprodução do etnocentrismo. Na realidade, « a central goal of Sartrean project was to overcome the gap between the European self and the colonial other by developing a theory of history – and an ethical practice – that would make the idea of a human culture after colonialism possible » (Gikandi, 2004 : 101).

A análise elaborada por Sartre é, pois, guiada pelo objectivo da transcendência. Tal objectivo é claramente explicitado em ‘Black Orpheus’, no qual Sartre realiza uma discussão sobre o movimento da negritude :

« In fact, négritude appears as the minor moment of a dialectical progression ; the theoretical and practical affirmation of white supremacy is the thesis ; the position of negritude as an antithetical value is the moment of negativity. But this negative moment is not sufficient in itself (…) it aims at preparing the synthesis or realization of the human in a raceless society. Thus negritude is for destroying itself, it is a passage and not an outcome, a means and not an ultimate end » (Sartre, 2001 : 137).

Ao descrever, simultaneamente, negritude como o triunfo e a morte de Narciso, Sartre indicia, desde logo, a importância da razão dialéctica para a acção revolucionária. Mudimbe explica a este respeito que « Immediately after this celebration, he warns that negritude can neither be sufficient nor must it live forever. It is made to be negated, to be exceeded. Among the ruins of the colonial era, its singers must again rework songs, reformulate their myths, and submit them to the service and to the need of the revolution of the proletariat ». E cita o próprio Sartre : « ‘The Negro’, states Sartre, ‘creates an anti-racist racism. He does not at all wish to dominate the world ; he wishes the abolition of racial privileges wherever they are found ; he affirms his solidarity with the oppressed of all colors. At a blow the subjective, existential, ethnic notion of Négritude passes as Hegel would say, into the objective, positive, exact notion of the proletariat (1976:59) » (1988 : 84-85). O humanismo radical de Sartre constituiu-se, nestas condições e através das suas proposições, como uma referência do discurso anti-colonial de Fanon, Césaire e Senghor, ao conectar directamente a experiência colonial com os limites da tradição europeia de humanismo. Três linhas principais de questionamento podem ser identificadas. Em primeiro lugar, face à afirmação do universalismo realizada pelo humanismo europeu, o humanismo radical de Sartre, bem como as críticas pós-estruturalistas e pós-coloniais elaboram uma profunda crítica às conceptualizações vigentes de história e à noção de historicismo. Por exemplo, em Sartre, a uma concepção não etnocêntrica da humanidade deverá corresponder uma filosofia da história específica, a qual deverá

« establish that there is one human history, with one truth and one intelligibility – not by considering the material content of this history, but by demonstrating that a practical multiplicity, whatever it may be, must unceasingly totalize itself through interiorising its multiplicity at all levels (Sartre, 1976 : 69) » (Gikandi, 2004 : 102).

Uma segunda linha de questionamento realça a centralidade da consciência do sujeito humano como força motriz de uma filosofia da história conducente à libertação. A este nível, é-se confrontado com uma evidente ruptura em relação às análises estruturalistas. Na verdade, para a fenomenologia, será a experiência vivida, no sentido de Erlebnis, conceptualizado por Dilthey, e não o facto objectivo e independente do sujeito, que possibilita um acto de consciência. Por outras palavras, a realidade é aquilo que aparece à consciência através da experiência vivida. Neste elo entre o exercício da consciência e a construção histórica, um terceiro elemento emerge. Trata-se do reconhecimento do outro. Neste âmbito, o outro é a condição da realização da consciência. Correlatamente, um acto de consciência é um gesto de transcendência.

O desenvolvimento da teoria pós-estruturalista foi profundamente marcado pela publicação, em 1967, de « Structure, Sign, and Play in the Discourse of the Human Sciences » de Derrida. O texto acusa o estruturalismo de postular um centro como ponto fixo de origem e, como tal, detendor de um poder de determinação absoluto, o que se aproxima da noção clássica de essência.

Assim, enquanto que Lévi-Strauss ambicionava o reconhecimento de um conceito de signo liberto das idiossincrasias individuais que pudesse fundar um universalismo sem etnocentrismo, ligando, através da antropologia, culturas no tempo e no espaço, Derrida chamava atenção para a forma como o próprio signo é inseparável da consciência individual, acusando a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss de reproduzir uma metafísica que sustentava a própria inscrição etnocêntrica da disciplina. Este cisma explica, pelo menos em parte, os dilemas enfrentados pelas abordagens pós-coloniais e poderá ser descrito nos seguintes termos :

« The logic of Lévi-Strauss speaks of is that of the myth. (…) For Derrida, to be aware of the mythic status of interpretation can only lead to a ‘concern with founding concepts and their deconstruction’ (…). For Derrida (…), the impossibility of objective, empirical truth is the impossibiliyu of any truth. (..) Though not empirically true, myth for Lévi-Strauss, (…) is a container of human meaning (…). Nor is his guilt and nostalgia an impotent regressive longing for the impossible return to the archaic part of natural innocence, but an evidence of the romantic historical sense, backward looking, yet projective, intented on (…) preserving the spirit of the past for future restauration. (…) As an alternative to this structuralist thematic of broken immediacy, this negative, saddened, nostalgic rosseauistic guilty humanism, Derrida recommends his own joyous, anti-scientific anto-humanism. (…) But behind this seemingly anti-tolitarian affirmation of life as a process, there lies paradoxically the most totalizing gesture of closure, a thoroughly repressive logic of the same. (…) If this leaves us wondering about the epistemological value of Derrida’s freeplay, we begin to see more clearly what change, psychologically and ethically speaking, it may imply : the amnesia it demands is reminiscent of the prohibition of the ‘backward glance’ by which the Greeks cut off their poet from his source of inspiration – the memory of completeness of being experienced in love. If ‘rememebering’ has derived from and preserved the latent meaning of ‘re-membering’, re-assembling the torn and scattered body parts, the verb ‘dismember’ may also have the reverse, symbolic meaning of ‘to make forget’, ‘to mentally fragmentize » (Petrovic, 2004 : 93-94).

A influência do pós-estruturalismo nos estudos pós-coloniais é especialmente eloquente através no recurso à ideia de desconstrução que, enquanto método, foi introduzida nesta área por G. Spivak com a publicação de « Of Grammatology ». Gikandi oferece um balanço global sobre as relações entre as abordagens pós-estruturalistas e pós-coloniais :

« The postcolonial project sought to go beyong poststructuralism by extending its theories and methods to the colonial space. After all, poststructuralism had come to posit itself as a critique of Eurocentrism in two main areas : in the tradition of humanism and its universalism, and in its theories of representation » (2004 : 117).

Ainda que breve, o exercício de traçar os momentos de filiação e os pontos de vinculação e desvinculação destas distintas correntes do pensamento crítico que marcaram o século XX, permite identificar a latência de um tema : como conceptualizar a ideia de humanidade fora do jugo de um etnocentrismo dominador ? Como conciliar realidades de diferença (percepcionada, atribuída ou reclamada) com princípios de pertença e de reconhecimento ? Por fortes que sejam, tais questões foram sendo sistematizadas analiticamente pelo conjunto de propostas que, por economia de texto, poder-se-iam apelidar de ‘pós-modernas’ e que enfatizariam, em nome da justiça, a diferença. O problema correlato passa a ser, então, a situação dilemática de construir a pertença a uma ideia não etnocêntrica de humanidade.

No campo das abordagens pós-coloniais, este problema poderá ser retratado da seguinte maneira : Como é que o princípio da diferença poderá ser defendido sem o recurso ao essencialismo estratégico, na medida em que este último, ao cristalizar um fraco momento dialéctico (Mudimbe, 2013), tende a conduzir ao solipsismo e à privação dialógica, ferindo gravemente dinâmicas de reciprocidade, identificação, ressonância, ambivalência, hibridação e criatividade ? Respondendo aos limites de reconhecimento com as consequências do radical, o essencialismo estratégico emerge como uma tentativa, ainda que politicamente orientada, de superação da subalternidade. Mesmo que imbuída por projectos emancipatórios, a reificação produzida tende a tornar praticamente impossível a relação empática entre diferenças (Grosfoguel, 2012), como se a solidariedade e a própria possibilidade de identificação dependessem da subscrição da mesmidade.

Na face dos verbos que nos enunciam sem nos anunciar

Na sua obra seminal, The location of culture, Bhabha (2004) problematiza o sistema de dominação colonial britânico na Índia, a partir da crítica a uma concepção e prática de história que qualifica de monumental. Tal concepção e tal prática são enformadas por pilares ideológicos eurocêntricos, os quais sustêm a autoridade colonial na produção dessa mesma história monumental e da biblioteca colonial que lhe está associada. Em ambas, é-se confrontado com redutores processos de essencialização que fixam a diferença em práticas representacionais que sustentam, por seu turno, sistemas de dominação e discriminação, e cuja vitalidade reside, de modo significativo, na prática da repetição da enunciação, da classificação e da atribuição da diferença como desigualdade. Para Bhabha, « the representation of colonial authority depends less on a universal symbol of English identity than on its productivity as a sign of difference. (…) The exercise of colonialist authority (…) requires the production of differentiations, individuations, identity effects through which discriminatory practices can map out subject populations that are tarred with the visible and transparent mark of power » (2004 : 154/ 158 ). Enquanto a enunciação obsessiva da diferença por parte dos poderes coloniais foi exigindo a renovação constante dos quadros epistemológicos e discursivos que a procuram captar e mapear, a episteme subjacente reproduziu o seu carácter colonial e moderno. No âmbito da antropologia, a percepção da diferença radical (Mudimbe, 1988) que África encarnava, ancorava-se claramente numa lógica de espelhos invertidos. Esta é especialmente visível nas primeiras abordagens realizadas aos temas do poder e do político neste continente. Na verdade, aquelas foram, inicialmente, influenciadas pela tradição humanista do Iluminismo e pela perspectiva evolucionista, e tiveram como consequência primeira re-direccionar a análise para a inventariação da diversidade das instituições que governam as sociedades humanas. Tal representou uma ruptura relativamente às correntes que, postulando e classificando realidades outras como ‘estados da natureza’, as universalizavam numa espécie de limbo, ao qual não se reconheciam formas de organização e regulação social. De facto, o desafio colocado pela antropologia política consistiu precisamente em procurar demonstrar que o contracto, longe de ser condição prévia e sine qua non do Estado, é o próprio corolário da existência deste (Jeudy, 1997). Uma vez afirmado o laço originário do político - sem a pretensão de identificar a sua forma universal -, e uma vez desqualificada a teoria dos dois estados, o pensamento antropológico debateu-se com uma forma de classificação do fenómeno político, a qual, profundamente influenciada pela corrente evolucionista, marcou os desenvolvimentos posteriores (Kuper, 1978). Trata-se da distinção entre ‘sociedades com Estado’ e ‘sociedades sem Estado’. A formulação desta dicotomia ilustra bem o cerne do debate, cuja motivação fulcral é a reconstituição dos ‘elos perdidos’ entre sociedades primitivas - sem Estado -, onde o político existiria por defeito, e as sociedades modernas, onde o político existiria por excesso. Desta forma, a ruptura inicialmente engrendrada (mal grado a sua inspiração fundadora) acabou por se consubstanciar na reprodução de um novo great divide, cujo poder explicativo derivaria da organização temporal e evolutiva da diversidade humana. As investigações posteriores reflectem o impacto que tal forma de pensamento teve. Destas destacam-se os trabalhos de africanistas, tais como Evans-Prichard e M. Fortes, os quais avançaram com uma tabela comparativa das formas de organização política. Nestes trabalhos, é-se confrontado com as noções de ‘sociedades estatais’ e ‘sociedades segmentárias’. Estas últimas referiam-se a sociedades, onde a regulação social não é assegurada por uma organização administrativa, jurídica ou militar bem demarcada, mas antes pelo conjunto de relações codificadas entre segmentos sociais definidos em termos de linhagem e localidade. Seguiram-se múltiplos trabalhos sobre as sociedades caracterizadas pela ausência de Estado, no sentido ocidental do termo, e nos quais foi sendo reproduzida a sedução evolucionista, cara a Maine e Morgan, da abissal diferença entre estes sistemas e as sociedades com Estado do Ocidente. A ‘compulsão’ classificatória e dicotómica que animou a antropologia política tem as suas raízes na filosofia política do Ocidente, onde se é confrontado com a obsessão ubíqua da figura do Estado moderno como parâmetro de avaliação e classificação das formas de organização social. De facto, embora o pensamento antropológico tenha sublinhado a imbricação entre o social e o político, na sua recusa pelo formalismo descarnado da teoria da representação e do lugar atribuído ao contrato social na formação do Estado, o certo é que a ambição por um conhecimento sobre origens da sociedade humana sobrepunha-se como objectivo primevo à produção de conhecimento efectivo sobre a mesma. Um dos resultados mais relevantes para aquilo que foi sendo a estereotipização histórica de África consistiu na invisibilidade a que a história do continente foi remetida, assim como a desvalorização e a demissão de formas complexas de organização político-social especificamente africanas. Os reinos medievais do Kongo, de Luba, Zimbabwe, Asante, Dahomé, para dar apenas escassos exemplos, e a sofisticação cosmopolita que os caracterizava – patente, por exemplo, nas suas formas de produção da actividade económica e nas rotas intercontinentais de comércio – foram, assim, mergulhados na neblina do esquecimento. Assim, no que se refere a África, a diversidade e a evolução de discursos produzidos pela autoridade colonial são qualificadas por Mudimbe como variações que testemunham a mesma episteme – uma episteme de domesticação e de conversão do continente que desvelam « intellectual procedures for reducing non-Western otherness to western sameness ; or, from a diachronic point of view, one of establishing their order of appearence » (1988 : 72) e que corresponde aos efeitos da prevalência da razão metonímica. Do ponto de vista das análises pós-coloniais, os reflexos de tal auto-referencialidade epistémica ao nível do trabalho histórico converteram a Europa no campo único da produção epistemológica de alcance universal, isto é, de theoria (Sakai, 2010). Chakrabarty formula esta questão da seguinte forma : « insofar as the academic discourse of history – that is ‘history’ as a discourse produced at the institutional site of the university – is concerned, ‘Europe’ remains the sovereign, theoretical subject of all histories, including the ones we call ‘Indian’, ‘Chinese’, ‘Kenyan’, and so on. There is a particular way in which all these other histories tend to become variations on a master narrative that could be called ‘the history of Europe’ » (2000 : 27). A partir desta crítica à ‘Europa’, enquanto referencial silencioso do conhecimento histórico, Chakrabarty discute os efeitos complexos da dominação colonial nas possibilidades de auto-enunciação, ou auto-nomeação, do sujeito colonizado. A discussão sobre tais possibilidades e respectivas condições encontra, por seu turno, em G. Spivak (cf., 1985 ; 1999), uma profundidade analítica que influenciou o desenvolvimento da abordagem pós-colonial de maneira significativa. De grande complexidade, o seu trabalho ilumina as modalidades da produção daquilo a que Santos denomina de ‘não existência’, sendo esta produzida « sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível » e sabendo-se que « o que une as diferentes lógicas de produção da não-existência é serem todas elas manifestações da mesma monocultura racional » (2006 : 95). Através de práticas críticas de desconstrução derridiana da hegemonia do logocentrismo eurocêntrico, G. Spivak elabora, provocadora e pragmaticamente, uma noção de ‘essencialismo estratégico’, pelo qual se invertem as estruturas binárias de dominação, típicas do logocentrismo eurocêntrico, visibilizando e ampliando, desse modo, a figura existencial do subalterno. Denunciando as resistências e as re-actualizações desse logocentrismo, G. Spivak critica, ainda, os limites e as insuficiências das abordagens pós-coloniais ao subalterno que o retratam pela voz mediada do observador numa representação colectiva e homogénea, argumentando que a (re)apresentação de uma ideia de colectividade subalterna consiste num desdobramento da noção de totalidade essencializada – noção esta que se configura, como observado, numa espécie de intratável da tradição intelectual dominante do Ocidente. No seu entender, tal acarreta importantes implicações para as possibilidades e práticas de representação, as quais apenas poderão ser revistas criticamente com a abertura de novos espaços discursivos. O problema da representação é, pois, pensado como um problema de conhecimento e, em ambos os níveis, subjaz um problema de relação. Este problema de relação pode ser pensado em termos da diferença entre ‘speak’ e ‘talk’, sendo que o primeiro é equacionado com um registo de relação específico, assente num espaço discursivo onde a figura do Outro se auto-enuncia, fala e é ouvido. A inexistência deste nível dialógico (‘talk’) transfigura o Outro na figura do subalterno que ‘does not speak’. Nesta perspectiva, a problemática da subalternidade encontra-se ancorada claramente num problema de relação. Ressoando em Gramsci – para quem « uma dimensão fundamental da desigualdade (…) é a incapacidade do povo subordinado de produzir relatos coerentes do mundo em que vive com o potencial para contestar de uma maneira eficaz os relatos hegemónicos vigentes » (Crehan, 2002 : 128) –, G. Spivak (1999) elabora, pois, uma conceptualização de subalternidade em que esta não é apenas um sinónimo de opressão, despossessão ou incapacidade, mas designa a diferença que não acede ao espaço dialógico para efectivamente ‘speak’ ; a diferença à qual se acede apenas na linguagem que a nega enquanto sujeito. Lazarus explicita esta conceptualização de subalternidade de modo bastante claro : « Spivak defines subalternity very strenuously in terms of a structured inarticulary at the elite levels of state and civil society – such that to be positioned as subaltern in any discoursive context is to be incapable of representing oneself within that context. The subaltern is object of discourse, never the subject » (2005 : 86). Diz-nos também a autora que « No perspective critical of imperialism can turn the Other into a self, because the project of imperialism has always already historically refracted what might have been the absolutely Other into a domesticated Other that consolidates the imperialist self » (2006 : 253). Neste sentido, a produção da subalternidade é germana de um processo histórico de violência, nomeadamente epistémica, exercida pelo projecto imperial e colonial, a qual materializa a impossibilidade de auto-enunciação ou auto-nomeação. De facto, para as perspectivas pós-coloniais, na relação colonial, o sujeito colonizado torna-se no Outro da autoridade colonial. E esse momento da constituição do sujeito colonizado é o preciso momento da sua desarticulação, enquanto sujeito, e da sua constituição enquanto subalterno. Vozes críticas alertam para as implicações políticas da teorização de G. Spivak, onde se é confrontado com uma espécie de dissociação irreparável e irreconciliável entre a condição de subalternidade, enquanto impossibilidade de se ser sujeito, e a própria noção de sujeito. Estas apontam, sobretudo, para a admissão implícita da impossibilidade de luta anti-colonial, pois « imperialism’s epistemic bellicosity decimated the old culture and left the colonized without the ground from which they could utter confrontational words » (Parry, 2006 : 49). Partilhando esta problematização, Santos reconceptualiza o subalterno como locus de resistência : « As identidades subalternas são sempre derivadas e correspondem a situações em que o poder de declarar a diferença se combina com o poder para resistir ao poder que a declara inferior. Na identidade subalterna, a declaração da diferença é sempre uma tentativa de apropriar uma diferença declarada inferior de modo a reduzir ou a eliminar a sua inferioridade. Sem resistência não há identidade subalterna, há apenas subalternidade » (2006 : 231-232). Articulada com a problemática da subalternidade e com as possibilidades de resistência, a discussão realizada por Chakrabarty demonstra, assim, como « Indians arrogated subjecthood to themselves precisely by mobilizing, within the context of modern institutions and sometimes on behalf of the modernizing project of nationalism, devices of collective memory that were both antihistorical and nonmodern. This is not to deny the capacity of Indians to act as subjects endowed with what we in the universities would recognize as ‘a sense’ of history (….) but to insist that there were also contrary trends, that in the multifarious struggles that took place in colonial India, antihistorical constructions of the past often provide very powerful forms of collective memory » (2000 : 40). Neste sentido, Chakrabarty fala-nos de um sujeito dividido entre a evocação do passado segundo as lentes do discurso moderno sobre o desenvolvimento histórico – assente nos referenciais do Estado-Nação, cidadania e liberalismo -, e pelo qual o sujeito se torna, no processo descrito por Bhabha (2004), como sendo mimético ; no sujeito da ‘Europa hiperreal’ , e, por outro lado, as histórias e memórias anti-históricas e anti-modernas que produz a partir dos discursos que consagram a radicalidade da diferença e originalidade cultural, desarticulando a autoridade do discurso normativo colonial. A questão é que as referências anti-históricas e anti-modernas (v.g., referências míticas a reinos pré-coloniais e/ou a figuras icónicas da resistência contra a autoridade colonial) integram a memória colectiva popular e tendem a ser subordinadas às regras modernas da evidência do conhecimento histórico. Nestas condições, « The antihistorical, antimodern subject, therefore, cannot speak as ‘theory’ within the knowledge procedures of the university even when these knowledge procedures acknowledge and ‘document’ its existence » (Chakrabarty, 2000 : 41). Situações dilemáticas emergem, pois, a partir de uma dupla impossibilidade : a impossibilidade de se ser enunciado por uma linguagem e por um tipo de conhecimento que nega o sujeito e a impossibilidade de se ser reconhecido em pé de igualdade, através de uma linguagem e de um conhecimento não hegemónicos. É perante esta dupla impossibilidade que Thiong’o propõe uma « quest for relevance », a qual « can only be understood and be meangingfully solved within the context of the general struggle against imperialism » (1986 : 88). Contudo, esta demanda por relevância enfrenta paradoxos de profunda ambivalência, produzidos historicamente pela dominação colonial. Centrando-se na discussão sobre as condições de representação fora do escopo de influência da biblioteca colonial (Lazarus, 2005), Mudimbe retrata este paradoxo a propósito da produção académica africana durante os anos 50-60, argumentando que, « it is easy to point out the paradox faced by these African scholars : on the one hand, for the sake of their own pride and identity they deny exoticism and its assumptions ; on the other hand, they are sincerely ready for the practice of a positive social science (…). This paradox may account for some tedious discussions that, in Africa, repeat ‘alternations of European social thought’ », defendendo ainda que « it cannot be inferred that Africans must endeavor to create from their otherness a radically new social science. (…) the Western tradition of science, as well as the trauma of slave trade and colonization, are part of Africa’s present-day heritage » (1988 : 79).

Forças de resistência e forças de teorização

A relevância das referências que o conhecimento histórico clássico classifica e desvaloriza como sendo mitológicas, tem sido explorada a partir de diferentes perspectivas. Uma delas é a já mencionada formulação de Assman sobre mnemohistória (1998). Assim, se para o positivismo histórico, a tarefa principal consiste em separar o factual do mitológico, para a mnemohistória trata-se de focar a atenção precisamente nestes elementos, cuja actualidade no presente é sinal de validade e vitalidade em duplo sentido : no sentido de, ao serem presentificadas, serem actuais e no sentido de, ao contribuírem para releituras históricas sobre a experiência colonial na perspectiva pós-colonial, serem vitais. Tais elementos pertencem ao domínio do que Assman conceptualiza como memória cultural, isto é, o património e/ou o arquivo de conhecimento que condensa a identidade e a sua singularidade numa dinâmica em que o contemporâneo impõe a sua reconstrução e re-actualização permanente (2006). Outra forma de explorar tais referências é proporcionada pelas epistemologias do sul. Encaradas a partir desta abordagem, tais referências e narrativas ‘anti-históricas’ e ‘anti-modernas’ desvelam duas importantes forças : a força da resistência e a força das teorizações alternativas. Enquanto força de resistência, elas integram a panóplia de estratégias que Bhabha (2004) identifica como sendo interpelações que os sujeitos colonizados colocam à autoridade colonial. Discutindo, v.g., a recepção da Bíblia em contexto colonial, Bhabha demonstra como o sujeito colonizado desarticula a autoridade colonial, lançando-a na espiral paranóica da incerteza permanente : « The native questions quite literally turn the origin of the book into an enigma. First : how can the word of God come from the flesh-eating mouths of the English ? (…) how can it be the European Book, when we believe that it is God’s gift to us ? (…). By taking their stand on the grounds of dietary law, the natives resist the miraculous equivalence of God and the English. (…) When they make these inter-cultural, hybrid demands, the natives are both challenging the boundaries of discourse and subtly changing its terms by setting up another colonial space of the negotiations of cultural authority. And they do this under the eye of the power, through the production of ‘partial’ knowledges (…). In their repetition, these disavowed knowledges return to make the presence of authority uncertain. They may take the form of multiple or contradictory belief, as in some forms of native knowledges : ‘we are willing to be baptized, but we will never take the Sacrament’. Or they may be forms of mythical explanations that refuse to acknowledge the agency of the Evangelicals : ‘An Angel from heaven gave it (the Bible) to us, at Hurdwar fair’ » (2004 : 166/168-169/ 171). Em segundo lugar, a abertura a tais referências pode operar como força de teorizações alternativas. Na realidade, o não reconhecimento do outro enquanto sujeito histórico, produtor de conhecimento (nomeadamente histórico) e de teoria é uma problemática abordada também por Sakai que refere, em concordância com Chakrabarty, que « That we do not normally expect theory of a person if he or she is from Asia is, in fact, a negative corollary of another statement : namely, theory is something that we normally expect of a person if he or she is from the West or Europe » (2010 : 442). Assim, para a construção do estatuto epistemológico da memória, o trabalho deverá assentar, primeiramente no reconhecimento da diversidade epistemológica e, de modo consequente, no reconhecimento da validade de outras formas de conhecimento. Da configuração epistemológica elaborada por Santos para responder a tais desafios, ressalte-se duas estratégias centrais. Em primeiro lugar, uma epistemologia dos conhecimentos ausentes – condição central para o exercício da sociologia das ausências, pois para « identificar o que falta e por que razão falta, temos de recorrer a uma forma de conhecimento que não reduza a realidade ao que existe » (2002 : 229). Daí a relevância da memória, abordada numa perspectiva pós-colonial, a qual está ausente do conhecimento histórico canónico e da memória oficial. Esta epistemologia dos conhecimentos ausentes centra-se nas práticas sociais, considerando-as como conhecimentos rivais e alternativos. É certo que, isoladamente, nem um nem os outros poderão gerar formas ampliadas de realismo, de solidariedade inclusiva e de democratização das bases criadoras de conhecimento. Estas últimas possibilidades residem, ao contrário, na formação de constelações de conhecimentos, nomeadamente entre história(s) e memória(s). Uma segunda estratégia passa pela epistemologia dos agentes ausentes. Nela, a prática da rebeldia detém uma centralidade significativa, sendo aqui valorizado o papel da subjectividade desestabilizadora do conformismo, do unanimismo e da resignação fatalista ao realismo trágico. Mas é também duplamente central, na medida em que é nos agentes ausentes que estas práticas (frequentemente micro e a partir de fontes não elitistas e/ou canónicas) se elaboram em função do cuidado a ter para com o futuro a partir do presente. Para além disso, tais estratégias forçam os limites da representação e da presentificação do real, elaborados pela ciência convencional. Nesta óptica, o presente é expandido pela memória e pela memória também o futuro é contraído como objecto de cuidado. Esta breve caracterização do que podem ser apelidados de principais pilares das epistemologias do sul evoca, desde logo, a preocupação para com a relação que se estabelece entre pressupostos epistemológicos e regimes cognitivos e ontológicos. Significa isto que o reconhecimento sobre a forma pela qual pressupostos epistemológicos determinam a leitura, a interpretação e o reconhecimento de dada realidade tem constituído uma preocupação latente, pese embora relativamente marginal, no pensamento crítico. Essa preocupação poderá sintetizada nas seguintes questões : como tornar uma ausência num sujeito ? Não será tal uma contradição insanável ? Destas tradições ‘heréticas’ que se rebelam contra a monoracionalidade do conhecimento positivo, há a destacar, por exemplo, Paul Feyerabend. Reagindo contra o totalitarismo conceptual da ciência moderna e criticando « the idea of a method that contains firm, unchanging, and absolutely binding principles of conducting the business of science », a qual « meets considerable dificulties when confronted with the results of historical research », Feyerabend (1978 ; 1993) avança com duas propostas centrais. Por um lado, a desmistificação dos discursos celebratórios sobre uma das figuras principais da tradição intelectual da modernidade ocidental : a Razão. De facto, Feyerabend demonstra como a aparente impossibilidade de imaginar e explicar racionalmente a diversidade face à ciência impede de reconhecer aquela como um pilar historicamente constitutivo da própria ciência. Essa impossibilidade, por seu turno, decorre não tanto da prática histórica da ciência, a qual « viewed as a free and unrestricted inquiry » não entra em conflito com a diversidade, mas sobretudo de « philosophies such as ‘rationalism’ or ‘scientific humanism’ and an agency, sometimes called Reason, that use a frozen and distorted image of science to get acceptance for their own antediluvian beliefs. But rationalism has no identifiable content and reason no recognizable agenda over and above the principles of the party that happens to have appropriated its name. It is time (…) to bid it farewell » (1987 : 13-14). Por outro lado, desta proposta, Feyerabend elabora o seu apelo por um pluralismo metodológico e científico, em que a noção de universalismo como disseminação de universais, assente numa concepção positiva de ciência, fosse substituída pela praxis de um universalismo capaz de disseminar universos em comunicação, ampliando, desse modo, os domínios do real e do possível. Em sentido similar, a prática da ecologia dos saberes, conceptualizada por Santos (2002 ; 2006), contraria esta monocultura do saber, germana do universalismo positivista. Assente, como referido, nos princípios de inter-reconhecimento e incompletude de cada sistema de saber e cada cultura, é a condição de um diálogo contra-hegemónico que, ao invés de conduzir ao descrédito da ciência, a reconcilia com a sua práxis histórica de diversidade e transgressão, como argumenta Feyerabend, e que, ao invés de cair no relativismo absoluto, constrói hierarquias de saberes ancorados em contextos concretos e em função de ensejos concretos (Santos, 2002). O que podem, pois, as memórias, as referências ‘anti-históricas’ e ‘anti-modernas’ e os conhecimentos rivais dizer à história ? Práticas e estratégias epistemológicas como estas como esta permitem « ver que a realidade social é um terreno mais ou menos sedimentado, um constructo geológico, constituindo diferentes camadas, todas elas em acção ao mesmo tempo, mas não uniformente, antes uma convergência momentânea de diferentes projecções temporais » (Santos, 2002 : 234). Re-encontra-se aqui o desafio da multitemporalidade. Para além dos diferentes sentidos de temporalidade, há que manter presente, de facto, que o tempo da memória, social e/ou colectiva, está longe de ser homogéneo e abstracto. De facto, não se trata do tempo do calendário que regista a passagem de unidades temporais idênticas na forma de dias e de anos. O tempo desta memória é, acima de tudo, « the ingathering of past time, relevant morally for the group and for its cohesion. (…) Memory time is, in part, a framework of seminal events and persons, an uneven topography of the past where ‘seminal’ does not mean necessarily as a historian would rank them but rather ordered according to their felt importance in the ongoing life of the group » (Booth, 2006 : 23). Logo, a memória não depende de nenhum tipo de trabalho cronológico e/ou historiográfico no sentido clássico ; ela ancora-se em eventos eleitos como significantes da memória e da identidade colectiva, assim como nas interpretações que deles se fazem. De modo concordante, na abordagem defendida por Lambeck e Antze, a memória deve ser sempre contextualizada e abordada a partir das relações sociais. Lambeck clarifica esta ideia, considerando que « Memory in this model is less a completely private yet potentially objective phenomenon stored within the mind and capable of remaining there than it is activated implicitly or explicitly between people (…). Memory here is more intersubjective and dialogical than exclusively individual, more act (remembering) than object, and more ongoing engagement than passive absorption and playback » (1996 : 239). Fentress e Wickham realçam também este aspecto. Na sua perspectiva, a memória social do passado dá ao grupo matéria de reflexão consciente, o que implica que « devemos situar os grupos em relação às suas próprias tradições, descobrindo como interpretam os seus próprios ‘fantasmas’ e como os utilizam para fonte de conhecimento » (1992 : 42). Por outro lado, a memória e a sua prática evocativa não são, como indiciado, moralmente neutras. Como o referem Antze e Lambeck, « Moreover, to say ‘I remember...’ is not to frame a mere description, but to signal a speech act. Memories are acts of commemoration, of testimony, of confession, of accusation. Memories do not merely describe the speaker’s relation to the past but place her quite specifically in reference to it. As assertions and performances, they carry moral entailments of various sort » (1996 : XXV). O ponto essencial a salientar neste momento é que as considerações predominantemente depreciativas acerca da qualidade, estatuto e poder heurístico das formas de conhecimento, das narrativas e das memórias para as quais Chakrabarty nos chama a atenção, são produtoras da sua subalternidade, na medida em que « can only be spoken for and spoken of by the transition narrative, which will always ultimately privilege the modern » (2000 : 41). É, pois, em face do duplo processo de produção da subalternidade, em que o momento da constituição do Outro se converte no momento preciso da sua desarticulação, que Chakrabarty ancora uma dupla tarefa. Por um lado, a tarefa de provincializar a Europa, sem que isso implique a subscrição do relativismo, do nacionalismo, do nativismo e sem que isso implique a rejeição total e cabal da Europa e da sua modernidade (Santos, 2009). Por outro lado, o enfoque nas histórias subalternas. Em ambas « the point is to ask how this seemingly imperious, all-pervasive code might be deployed on thought about so that we have at least a glimpse of its own finitude, a glimpse of what might constitute an outside to it. To hold history, the discipline, and other forms of memory together so that they can help in the interrogation of each other, to work out the ways these immiscible forms of recalling the past are juxtaposed » (Ckakrabarty, 2000 : 93-94).

Quando enunciar é anunciar : inter-historicidade

Com as memórias, as referências e as narrativas ‘anti-históricas’ e ‘anti-modernas’ de que fala Chakrabarty, é-se confrontado com temporalidades e narrativas em disjunção. Nessas narrativas articuladas em temporalidades disjuntivas , a cultura torna-se lugar de enunciação que re-inscreve outras histórias, outras experiências, outros olhares e outras interpretações. Bhabha (2004) discute esta dimensão enunciativa da cultura a par da sua dimensão epistemológica. A primeira dimensão está associada à possibilidade de significação ; a segunda concentra funções descritivas e reflexivas. O desafio colocado pelo autor, em linha com o seu enquadramento analítico pós-colonial, reside na transformação do sujeito da cultura : de uma função epistemológica a uma prática enunciativa. Significa isto explorar as condições pelas quais o sujeito, enquanto objecto descrito, passa a sujeito que se enuncia ou se nomeia. E aqui reside uma das principais rupturas da análise pós-colonial em relação às correntes pós-estruturalistas liberais do pensamento crítico liberal, as quais propõem o conceito de redescrição como forma de realizar a justiça para com identidades marginalizadas e/ou invisibilizadas (Bhabha, 2004). De facto, a ideia de redescrição pressupõe a manutenção do privilégio atribuído à concepção de cultura como objecto epistemológico que, descrevendo a partir de uma posição de exterioridade, mobiliza também a resdescrição. Por fim, no próprio conceito de redescrição aqui implícito está ausente a agencialidade do descrito e do redescrito. Nessa transformação da cultura como objecto epistemológico à cultura como lugar de enunciação/anunciação, a complexidade deixa de obedecer a coerências cabais de uma mesmidade epistémica auto-referencial hegemónica e passa a pautar-se pelas disjunções e descontinuidades que permitem novas formas de articulação e interpelação entre narrativas, temporalidades, referenciais, experiências e interpretações. No entanto, o potencial transformador dessas novas formas de articulação reside num passo posterior : depois da nova conceptualização de Bhabha, em que cultura passa a ser lugar de enunciação e não mais apenas objecto epistemológico de um observador externo privilegiado, há que reconhecer que essas mesmas enunciações são detentoras de valor epistemológico e heurístico. Sem o reconhecimento do valor epistemológico das narrativas, memórias, práticas, olhares, experiências e interpretações, permanecerá uma linha abissal entre cultura enquanto objecto de actividade epistemológica de conhecimento e cultura enquanto lugar de enunciação em risco de folcklorização. Um lugar de enunciação capaz de superar linhas abissais e as insuficiências da actividade epistemológica, determinadas como são pela incompletude dos olhares que a dirige, deverá constituir-se também como campo epistemológico, como força constituinte e constitutiva não apenas da enunciação do sujeito contextualmente situado, mas também dos sujeitos de outros lugares de enunciação.

A tradução inter-cultural : o momento fundador da inter-historicidade

Em face das situações dilemáticas descritas anteriormente, múltiplas respostas têm sido elaboradas. Para além da proposta relativa ao essencialismo estratégico, outras têm procurado afirmar-se como sendo ‘pós-abissais’ (Santos, 2002, 2006), isto é, como estratégias de superação de ‘great divides’ que instauram novas formas de essencialização, invisibilização e desqualificação. Tais respostas incluem, na sua diversidade, noções como ‘descolonização epistémica’, ‘crítica ao eurocentrismo e ao capitalismo’ e ‘tradução inter-cultural’, entre outras. Foque-se, por instantes, a atenção nesta última. A proposta de tradução inter-cultural foi elaborada por Santos no âmbito da sua ecologia dos saberes (2006). Partindo do reconhecimento da incompletude de cada sistema cultural e da impossibilidade de uma teoria geral, o conceito opera como conceito charneira e como prática situada de reciprocidade que impede práticas coloniais de canibalização, de neutralização e domesticação da diferença em prol da mesmidade epistémica. A tradução inter-cultural constrói-se, assim, numa zona de contacto, onde as culturas trazem aquilo que de seu consideram ser passíveis de tradução recíproca. Trata-se de uma zona de contacto de carácter cosmopolita na medida em que, por via do princípio da reciprocidade, há uma recusa consciente do multiculturalismo reacionário que mantém e sustenta a auto-referencialidade da modernidade ocidental como parâmetro, regra e limite do diálogo. A questão que se poderá colocar a este propósito é a de saber se a prática da tradução inter-cultural, enquanto estratégia de inteligibilidade mútua, poderá constituir-se também como uma propedêutica de um comum-pertencer que sustenta a comunalização do arquivo. Ou seja, constituirá a tradução inter-cultural um momento de transcendência, enquanto momento inaugural do novo (o que não significa ‘teoria geral’), de acordo com a conceptualização atrás discutida ? Partindo, como referido, do reconhecimento da incompletude de cada sistema cultural e da impossibilidade de uma teoria geral, o conceito de tradução inter-cultural opera, na perspectiva do autor, como conceito charneira e como prática situada de reciprocidade que impede práticas coloniais de canibalização, de neutralização e domesticação da diferença em prol da mesmidade epistémica. A tradução inter-cultural proposta por Santos constrói-se, assim, numa zona de contacto, onde as culturas trazem aquilo que de seu consideram ser passíveis de tradução recíproca. Trata-se de uma zona de contacto de carácter cosmopolita na medida em que, por via do princípio da reciprocidade, há uma recusa consciente do multiculturalismo reacionário que mantém e sustenta a auto-referencialidade da modernidade ocidental como parâmetro, regra e limite do diálogo. Mas este carácter cosmopolita da zona de contacto, onde se procede à tradução inter-cultural, ancora-se numa nova literacia da(s) temporalidades. Evocando a noção de multitemporalidade, o « objectivo é, tanto quanto possível, converter em contemporaneidade a simultaneidade », sem que o momento do contacto seja interpretado como o início da história de um dado saber (Santos, 2006 : 122). De facto, o meta-objectivo da própria tradução inter-cultural consiste em superar a auto-referencialidade do pensamento moderno eurocêntrico. Esta auto-referencialidade manifesta-se no frequente facto dos esforços de tradução serem formulados nos termos do modelo de cientificidade que os coloca. Tornam-se, por isso, irrespondíveis ou auto-referenciais, auto-confirmatórios. Subsiste, desse modo, a tarefa de desconstruir a modernidade como argumento intelectual, tecnocientífico e racionalista, sendo que o problema permanece na questão da universalidade que o argumento moderno coloca para si próprio. Esta capacidade de superação, por seu turno, exige a mudança das premissas de argumentação : « Toda a argumentação assenta em postulados, axiomas, regras, ideias que não são objecto de argumentação porque são aceites como evidentes por todos os que participam no círculo argumentativo. Designam-se, em geral, por topoi (…). O trabalho de tradução não dispõe à partida de topoi, porque os topoi que estão disponíveis são os que são próprios de um dado saber ou de uma dada cultura e, como tal, não são aceites como evidentes por outro saber ou outra cultura. Por outras palavras, os topoi que cada saber ou prática traz para a zona de contacto deixam de ser premissas de argumentação e transformam-se em argumentos. À medida que o trabalho de tradução avança, vai construindo os topoi que são adequados à zona de contacto e à situação de tradução » (Santos, 2006 : 123). Enquanto criação de inteligibilidades contextualmente situadas, por forma a obviarem os riscos de novas universalizações, a tradução inter-cultural procura neutralizar os efeitos da razão metonímica. A saber : por um lado, o efeito de transformar o ‘saber-outro’ em matéria-prima ou elemento atestatório da sua eficácia (o que corresponde a práticas de canibalização e epistemícidio). Por outro, neutraliza ou impede o conceber a diferença e, sobretudo, a diferença radicalizada em incomensurável, como incomunicabilidade intransponível (o que corresponderia a novas linhas abissais). Ao construir situadamente a comunicabilidade, a tradução inter-cultural não ocasiona a ampliação canónica da razão metonímica, constituindo-se, antes, como uma prática profiláctica que previne a auto-referencialidade. Ela estilhaça a razão metonínima, fazendo proliferar novas totalidades (Santos, 2002) e disseminando novos universos em comunicação (Feyerabend, 1993). As histórias e memórias subalternas exigem, assim, o estilhaçar da concepção canónica da história, partilhada por Collingwood e Car (apud Jenkins, 1995), dando azo a uma nova produtividade da história nos próprios limites da história canónica. A consideração destas histórias e memórias requer necessariamente a constituição de um espaço para o exercício da hermenêutica diatópica, para que a auto-referencialidade epistemológica seja obviada. No campo da história, este exercício hermenêutico, ancorado em práticas de tradução inter-cultural, transforma-se, assim, num exercício de inter-historicidade. Neste âmbito, a reabilitação da memória (Guha, 1996) – na dupla função de objecto de interrogação e fonte de uma epistemologia crítica que incide sobre as condições e os termos da produção do conhecimento histórico hegemonicamente validado – possui uma centralidade inegável. Do ponto de vista pós-colonial, Gomes e Meneses realçam a este propósito duas ideias centrais : « Por um lado, a necessidade de explorar o potencial da memória enquanto recurso que poderá constituir nova resposta à célebre questão de Spivak. Ou seja, poderá a memória constituir-se como espaço de auto-nomeação do subalterno ? A admissão de tal possibilidade implica pensar as práticas de memória como espaços discursivos, cuja efectividade em termos de auto-nomeação, alerta para as formas como a colonialidade se constitui não só como problema de conhecimento, mas também como problema de relação. Não se trata só do que ‘falam’ estas práticas de memória ; trata-se também da capacidade de as ouvir e de ser por elas interpelado. Para além disso, a (re)conquista do poder de narrar a própria história – e, portanto, de construir um espaço para práticas de auto-nomeação e de identidade – deverá passar por um diálogo crítico sobre as raízes das representações contemporâneas, sobre a sua ancoragem na biblioteca colonial, questionando as geografias associadas a conceitos marcados pela relação colonial. Quer para o sujeito colonizado, quer para o sujeito colonizador. Daqui decorre a segunda ideia : centrar o trabalho histórico nas desarticulações e descontinuidades em que a metanarrativa histórica é lançada por estas práticas de memória e, simultaneamente, explorar como nessas desarticulações são produzidos textos e sujeitos » (2011 : 7).

Da inter-historicidade à comunalidade

Considere-se agora a possibilidade de repensar a história enquanto questionamento recíproco. Poderá ser um arquivo de comunalidade da diversidade epistemológica o resultado desse questionamento recíproco ? E o que significa tal questionamento ? Assente na reciprocidade que funda interpelações mútuas, tal questionamento dependerá do estabelecimento de relações transescalares. Esta ideia de transescala tem sido aprofundada por Santos e « pressupõe uma certa desaprendizagem dos actuais critérios de determinação de relevância », convidando-nos « a perscrutar a realidade social através de diferentes mapas cognitivos a operar em diferentes escalas » (Santos, 2002 : 233). Não se trata aqui de negar a problemática envolvida na comparação de incomensuráveis, mas sim de reconhecer a existência de múltiplas participações no desenrolar de fenómenos e processos históricos, cuja compreensão depende precisamente da sua plurivocalidade. Como assumido anteriormente, um lugar de enunciação emancipatório, deverá constituir-se também como campo epistemológico, como força constituinte e constitutiva, não apenas da enunciação do sujeito contextualmente situado, mas também dos sujeitos de outros lugares de enunciação. Ou seja, deverá estar disponível. Trata-se, no fundo, do alargamento da base epistemológica de conhecimento e da actividade reflexiva indispensável à prática de uma ontologia crítica, conceptualizada por Foucault como : « The critical ontology of ourselves has to be considered not, certainly, as a theory, a doctrine, nor even as a permanent body of knowledge that is accumulating ; it has to be conceived as an attitude, an ethos, a philosophical life in which the critique of what we are is at one and the same time the historical analysis of the limits that are imposed on us and an experiment of going beyond them » (1984 : 10). As condições de construção desta possibilidade poderão, por seu turno, escalpelizadas a partir da hermenêutica gadameriana, especialmente no que toca duas noções fundacionais : a fusão de horizontes e a consciência histórica efectiva. A importância do processo de comunalização do arquivo reside no facto de facilitar a dialéctica e de ambos se basearem na hermêutica histórica. O esforço hermenêutico é, em si mesmo, um esforço dirigido à construção de um espaço inédito em regime de co-autoria e em possibilidade de co-pertença. Longe de implicar mesmidade ou, em alternativa, o solipsismo, tal espaço é retratado pela noção gadameriana de ‘fusão de horizontes’, a qual se ancora, por seu turno, numa indispensável ‘consciência histórica efectiva’ : « plena consciência da historicidade de todo o presente e da relatividade de todas as opiniões », e pela qual se estará pronto « a compreender a possibilidade de uma multiplicidade de pontos de vista relativos », através de « uma reflexão que se coloca, deliberadamente, na perspectiva do outro » (Gadamer, 1998 : 17-18). A fusão de horizontes poderá, assim, vir a encarnar um momento de transcendência, não como diluição dos particulares, eliminação de identidades ou obscurecimento das especificidades históricas, mas como momento inaugural do novo, enquanto expressão dupla de liberdade e libertação, que constitui a meta da ontologia crítica.

III. Instrução e educação colonial em Angola : a crítica da razão metonímica

De carácter profundamente problemático, a instrução e a educação colonial serão, neste capítulo, abordadas como um campo de exercício da razão metonímica, enquanto elemento e lógica estruturante da dominação colonial. Em contraposição aos efeitos invisibilizadores desta razão metonímica, procurar-se-á salientar como as narrativas de memória dos sujeitos colonizados se podem constituir como contra-campo epistemológico da história. Procurar-se-á, pois, problematizar a temática da instrução e educação colonial em Angola. Trata-se, fundamentalmente, de uma tarefa de contextualização histórica que pretende dar visibilidade às formas de violência epistémica exercidas pela autoridade colonial, de instrumentalização das políticas de instrução e de educação em prol da defesa do domínio colonial, dando-se particular realce às resistências que foram sendo localmente elaboradas. Focar-se-ão, igualmente, os desfasamentos entre os desígnios formais do projecto colonial, patentes na sua produção legislativa e em algumas iniciativas materiais, e as realidades experienciadas, bem como as múltiplas interpelações que os sujeitos colonizados foram colocando a esses desígnios e práticas e que os sujeitos pós-coloniais recuperam e re-utilizam, através das suas memórias, no contexto das suas práticas reflexivas sobre a experiência social do colonialismo português. Trata-se também de um exercício que apresenta algum grau de dificuldade, pois, como demonstra Pinto, « os actuais conhecimentos históricos sobre o tema são insatisfatórios, não só pela inexistência de trabalhos (…), mas também porque os que existem necessitam, regra geral, de uma avaliação crítica que tenha em conta os pressupostos que lhes estão subjacentes ». De facto, « a análise dos fenómenos educativos limita-se, praticamente até à década de 1970, a ser um mero repositório de leis e de intenções, ambas passíveis de comprovar o mérito da ‘acção colonizadora, evangelizadora e civilizadora dos portugueses nos trópicos’ » (1996 : 113/ 115). Sublinhe-se a centralidade da temática da instrução e da colonização. Para D. Gabriel de Sousa, por exemplo, responsável pela missão católica no Moxico entre 1948 e 1966, dos vários tipos de ocupação (ocupação científica apelidada também de exploração territorial ; ocupação militar e ser gradualmente transformada em ocupação administrativa, e a ocupação colonial definida pela fixação do comércio e pela implantação da agricultura e da indústria), é a chamada ‘ocupação espiritual’, com base na fundação de missões e escolas, que representa o culminar de um projecto em que colonização significaria ‘portugalização’ (1967).

A construção colonial de Angola através da instrução

Datam dos séculos XVI e XVII, as primeiras iniciativas de ensino escolar europeu em Angola, por mão de padres católicos, na corte da capital do reino do Kongo, M’Banza Kongo, as quais se estenderam a outras províncias do reino, nomeadamente Nsundi, Mbamba, Mbata e Mpango (Zau, s/d). Ralph Delgado (1946) dá-nos conta das primeiras missões enviadas ao Kongo logo no início do século XVI. Em 1504, por exemplo, o rei português, D. Manuel, enviou uma missão « fundada por homens letrados, por mestres de ler e escrever e por professores de cantochão e órgão ; e trazia muitos livros, vestimentas de brocado e seda, cruzes, cálices, turíbulos e outros apetrechos para o culto » (1946 : 99). Quatro anos depois é chegada ao reino do Kongo outra missão de treze frades. Delgado relata que « ao ter notícia da sua chegada, o rei mandou recebê-la ao caminho (….) e, por outro lado, ordenou a construção de duas vedações, uma das quais destinada a 400 moços, submetidos à aprendizagem das primeiras letras, e outra a quintal dos missionários » (1946 : 99). Em 1514, já alguns naturais do reino exerciam o magistério. Estes núcleos destinavam-se, não só, às tarefas de evangelização, mas também à difusão da língua portuguesa, incluindo, ainda, o ensino elementar de matemática. Ainda na primeira metade do século XVI, o rei convertido do Kongo, D. Afonso I apela ao rei português D. João III o reforço do investimento no ensino e na evangelização. Em carta de 25 de Agosto de 1526, refere : « ‘Temos muita necessidade de três ou quatro bons mestres de gramática, para acabarem de confirmar nossa gente, aqueles que já nisso são principiados. (….) porque para ensinar a ler e escrever muitos temos cá, vossos naturais e nossos que o sabem e fazem, mas para lhes mostrar e declarar as coisas da santa fé e servir os casos duvidosos, que os outros homens geralmente não sabem, o que é muito necessário’ ». O rei português acede, enviando quatro mestres-escola e aconselha D. Afonso I, em carta de finais de 1929, a « encarregar a rainha de olhar pela educação das donzelas, em escolas privativas, para ‘que nenhum inconveniente possam aprender’. Também alvitrou que a frequência escolar do território fosse reduzida, em todas as escolas, para assegurar o aproveitamento dos alunos, ao mesmo tempo que se dispôs a receber e a mandar educar as crianças ‘que quiserdes mandar’ » (Delgado, 1946 : 174). É neste sentido que Pestana (2002) salienta os longos processos de contacto e de ‘ocidentalização’ das estruturas de organização social e política existentes nos territórios que vieram a dar corpo a Angola e que ocorreram a partir dos séculos XV e XVI. Indo ao encontro de Santos (2006), para quem, ao contrário das experiências coloniais francesa e inglesa, o colonialismo português se insere numa dinâmica de longa duração, Pestana considera que tal processo de ‘ocidentalização’ não deve, assim, ser equacionado meramente com o marco histórico da sistematização e da extensão da presença portuguesa, as quais são realmente tardias. Veja-se uma instância deste processo. Com a introdução do cristianismo, outra força de mudança de peso estrutural foi introduzida : o poder começa também a ser organizado em redor e em função da escrita. Castro Henriques refere, igualmente, a integração e a utilização da escrita que se disseminou « no espaço amplo dos chefes africanos : operação iniciada já no século XVI, na corte congolesa, tendo sido o movimento retomado no século XVII na região da Ambaca e continuado ou até alargado na região dos Dembos » (2003 : 19). A escrita permitiu a integração do Kongo no espaço ideológico e político da Europa, isto é, impulsionou a internacionalização e o reconhecimento formal do reino que chega a estabelecer relações diplomáticas em Portugal, no Vaticano e na Holanda. A apropriação da escrita extravasa as fronteiras do Kongo e, juntamente com o comércio e a religião, expande-se em várias direcções. Isabel Castro Henriques descreve, por exemplo, o processo de difusão da escrita entre as populações de Ambaca « que deram origem aos famosos ‘Ambaquistas’, esses africanos que quiseram apoderar-se de todas as técnicas portuguesas », referindo, ainda, como a « escrita permitiu o estabelecimento de relações contínuas com as autoridades políticas e as empresas comerciais da costa » (1997 : 640). E, de facto, a questão discutida por Pestana é que o processo de ocidentalização progressiva não é redutível à instauração formal do sistema de dominação colonial. Como claramente expõe também Conceição Neto : « Na história de Angola, ‘ocidentalização’ e ‘cristianização’ nem sempre foram sinónimos de ‘portugalização’, como pode ser constatado em variadas situações » (1997 : 335). Esse processo terá incluído, assim, dimensões de socialização cultural que não são imediatamente correlatas de uma dominação colonial no sentido moderno. Na realidade, a longa duração histórica do ciclo colonial português, englobando experiências tão diversas, como as que foram marcando o período do Império portátil pré-Conferência de Berlim (Santos, 2006) e as que se originaram na sequência desta última, e que antecedeu e persistiu após o colonialismo hegemónico, produziu uma profunda impregnação das sociabilidades e identidades do colonizador e do colonizado. Com a ocupação progressiva dos territórios, assiste-se à disseminação de uma acção missionária, católica e protestante, que, durante o século XIX, vai aliando a evangelização à escolarização elementar. Tal é sintomático de um crescente interesse pelas possessões africanas, o qual foi aguçado pela conjuntura interna do país. De facto, a crise económico-financeira de que Portugal padecia, no último quartel do século XIX, assim como a acção das potências coloniais rivais, conduziram a que os mercados africanos passassem a ser encarados como a via por excelência de uma nova etapa de desenvolvimento da nação. E, assim, de facto : « O primeiro momento de Próspero ocorre no período pós-Conferência de Berlim, em que a ocupação efectiva dos territórios sob domínio colonial se torna condição desse domínio. Feita a partilha de África, os países industrializados dão à empresa colonial uma feição imperial que vincula estreitamente as colónias ao desenvolvimento capitalista. (…) Para garantir a sua presença em África, Portugal vê-se obrigado a agir como as restantes potências imperiais, como se o desenvolvimento interno do capitalismo português fizesse exigências comparáveis, o que não era o caso. (…) É verdadeiramente nesse momento que surge o indígena primitivo e, em contraponto, o português colonizador, representante ou metáfora do Estado colonial. (…) O império portátil que os portugueses a partir de agora transportam não é um auto-império, sujeito às fraquezas e às forças de quem o transporta, é antes a emanação de uma força transcendente, o Estado colonial » (Santos, 2006 : 247-248). O renovado interesse por África foi acompanhado e sustentado por uma ideologia colonial pragmática, influenciada pelas correntes do darwinismo social, as quais lhe conferiam uma legitimidade ideológica. Esta ideologia veio a ser efectivada numa ‘política de ocupação efectiva’ dos territórios, a qual seria, por seu turno, prosseguida de forma mais sistemática após a implementação da I República, em 1910. O pragmatismo da orientação colonial adoptada pela I República defendia, na realidade, um modelo de actuação que, a partir das especificidades de cada possessão, procurava rentabilizar e viabilizar a presença portuguesa nas diferentes realidades coloniais. Enquadrada simbólica, ideológica e discursivamente desta maneira, a política de ocupação efectiva dos territórios encetada pela I República ganha a forma das chamadas campanhas militares de pacificação, através das quais se produziria a ocupação dos territórios. Tal afigurava-se crucial, pois, no que diz respeito a Angola, até 1914, a administração colonial dispunha apenas de presença regular nas cidades litorais de Luanda e Benguela. No interior, diz-nos Gonçalves, « a sua acção reduziu-se, geralmente, a uma política nominal, dependendo de alianças frágeis e ambíguas com os chefes locais » (2003 : 25), enfrentando, ainda, o poder colonial resistência a sul, a norte, entre os Bakongo, e a leste nas terras Tchokwe que só foram ocupadas nos anos 20 do século passado.

Fonte : Pélissier, 1986a : 344. Todavia, as dificuldades em construir e disseminar o domínio português estão longe de ser inéditas. Como refere Pélissier, « de modo nenhum, a Angola Portuguesa daquela época correspondia às pretensões de Lisboa ». O autor cita ainda o Governador-Geral, Caetano Alexandre de Almeida e Albuquerque, que, em 1877, escreve ao Ministro das Colónias o seguinte : « Diria a Vossa Excelência que a extensão da província para o interior é um mal sem proveito… pois os principais estabelecimentos parecem ilhas perdidas num oceano indígena sem limites… é preciso, portanto, confessar tristemente que o nosso império no interior é imaginário ». A gravidade da situação para o domínio colonial é denunciada também por Lobo da Costa, Capitão de Infantaria, no primeiro decénio do século XX : « Direitos de soberania platonicamente baseados em leis e regulamentos a que, na maioria dos casos, se não pôde dar cumprimento (….) para impor ao gentio a sua execução, são coisas de que elle se ri, visto que só reconhece o direito do mais forte. Os meios brandos e suasórios tomal-os-há, quasi sempre, á conta da fraqueza do branco e, quando muito, consentirá que nos estabeleçamos nas suas terras, sem fazer caso do que lhe dissermos, sem pagar os tributos que lhe exigirmos, tentando ainda que nos sujeitarmos aos vexames que lhe aprouver infligir-nos » (1911 : 9-10, itálico do autor). São fragilidades como estas aqui descritas que permitem conceptualizar a subalternidade e o carácter semi-periférico do colonialismo português. A política de ocupação efectiva foi sendo traduzida, até aos anos 20 do século XX, na consolidação do processo de colonização : foram construídas infra-estruturas que permitiam o acesso ao interior de Angola e Moçambique, assim como o escoamento de produtos ; desenvolveu-se, pela mão de grandes companhias estrangeiras e algumas nacionais, a exploração de matérias-primas e de produtos agrícolas para exportação via metrópole, e escoavam-se produtos metropolitanos excedentários para as colónias que se convertem, então, em mercados reservados. E com o crescente peso das colónias para o dinamismo económico de Portugal, a colonização portuguesa intensificou-se significativamente. A intensificação da colonização sob a égide de Norton de Matos, um dos ‘cirurgiões de aço’ que desferiu sérios golpes às resistências africanas, suscitou o agravamento da aversão para com a presença portuguesa. O próprio Norton de Matos, denunciando os abusos de colonos e funcionários, considera que « ‘o que será mais difícil de fazer desaparecer é a noção e a convicção íntima que o preto tem, de resto tão justificadas, que nós viemos à África simplesmente para o roubar, para o espoliar, para o vexar e humilhar, para o considerar como um animal a dominar, como um ente desprezível indigno de qualquer liberdade, de qualquer consideração, de qualquer respeito’ » (cit in Pélissier, 1986 : 234). Já num momento pós-Berlim, e correspondendo às exigências relativas à ocupação efectiva dos territórios, foram envidados esforços no sentido de reforçar o povoamento europeu, especialmente no que dizia respeito à colonização agrícola no planalto dos Ovimbundos. Apesar disso, Angola não era um destino de emigração livre e sim de deportados. Na realidade, o carácter de colónia penal acentua-se, segundo Américo Boavida, a partir de 1928, pelo que, nos primeiros anos do salazarismo, « a população europeia era composta de condenados de delito comum e outros ‘vestidos de sarja azul escura com a inscrição D.D.A. , a branco no peito e nas costas » (1981 : 64). Já no cargo de Alto-Comissário, Norton de Matos prossegue esta política de desenvolvimento da colonização branca, transformando Angola « num sorvedouro onde iam lançar-se de cambolhada desempregados, aventureiros, colonos necessitados e assistidos pelo Estado, funcionários menores, etc. » (Pélissier, 1986 : 238). Uma das suas iniciativas consistiu em criar uma espécie de colonato em Porto Alexandre com 60 pescadores ‘poveiros’ para fomentar a criação de uma indústria de pesca. Este seria o primeiro passo de um plano para o estabelecimento na costa de Angola, num prazo de dez anos, de vinte povoações de pescadores da metrópole (Oliveira, 2009). Em Angola, a presença portuguesa terá quase que duplicado num espaço de cerca de 40 anos, totalizando 13000 colonos em 1918, e atingindo mais de 58000 em 1930. Todavia, nesta altura, não chegava a representar 2% da população total (Rosas, 1994). No âmbito deste esforço, é criada, em 1921, a Agência Geral de Angola cujo objectivo seria o de auxiliar a migração para a colónia. À política de colonização branca, alia-se uma política de domesticação e conversão dos territórios e populações. No intuito de orientar estes esforços, foi fundada, em 1906, a Escola Colonial. Em 1927, esta foi transformada na Escola Superior Colonial que, tal como a primeira, ficou sob tutela da Sociedade de Geografia de Lisboa. Mais tarde, veio a dar lugar ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Isabel Castro Henriques salienta, neste âmbito, o projecto ‘Plano de Política Colonial em Angola’, de autoria de Ferreira Diniz. O projecto foi apresentado em 1926 à Assembleia Geral da Sociedade de Geografia de Lisboa e nele estão as orientações fundamentais para a organização do território angolano. Nesse mesmo ano, Ferreira Diniz publica também « A missão civilizadora do Estado em Angola », onde « dá conta da necessidade de reforçar a convergência entre política e missão sem a qual não haveria colonização eficaz » (2003 : 7). Trabalhos como este tiveram uma importância seminal na produção da etnicização dos territórios angolanos, no seu enquadramento administrativo, assim como na produção da dominação colonial. A utilização do conceito de etnia era, de facto, útil na medida em que permitia operacionalizar o enquadramento administrativo das populações de uma forma que as isolava em definições culturais unívocas e em territórios delimitados e desejavelmente vigiados. No que diz respeito a Angola, este processo de ‘etnicização’ conheceu, na realidade, um avanço com os trabalhos cartográficos de Ferreira Diniz, nos quais « os homens Outros são acima de tudo considerados em função dos caracteres somáticos, acaso reforçados pelas marcas corporais, pelos sistemas culturais ‘primitivos’, mas sobretudo pelas línguas. Tal foi a tarefa da ‘etnograficação’ cartográfica de Angola : a criação de ‘povos’ apresentados como unidades culturais autónomas, delimitação dos seus territórios, representação dos espaços linguísticos. (...) Se os mapas instilam rigidez conceptual e pragmática falsa, permitem fixar o território colonial moderno (...) criando as condições para levar a cabo os projectos e as políticas de exploração de Angola » (Castro Henriques, 2003 : 13).

Mapa etnográfico de Angola, segundo os trabalhos de Ferreira Diniz.

Durante o século XIX, não se encontra nenhum pensamento estruturante que dê corpo a uma política unificada de educação colonial. Na verdade, as posições oscilavam entre a que defendia a acção educativa dirigida às populações africanas como forma de as elevar civilizacionalmente (como foi o caso dos pedagogos Adolfo Coelho (1847 – 1919) e Simões Raposo (1840 – 1900)) e os partidários da ideia, segundo a qual tal seria absurdo. Destes últimos, saliente-se António Ennes (1848 – 1901) que chegou a ocupar o cargo de Ministro da Marinha e do Ultramar entre 1890 e 1891, bem como o político e historiador Oliveira Martins (1845 – 1894). Assim, no que se refere à instrução e ao ensino colonial, há a destacar a implantação, em 1845, do ensino oficial em Angola, com a criação das escolas de ler, escrever e contar (as chamadas ‘escolas principais de instrução primária’) em Luanda e Benguela, por Decreto assinado por Joaquim José Falcão. Retirando a instrução e o ensino da tutela das missões religiosas (quer na metrópole, quer nas colónias), este momento marca a re-organização do ensino, tornando-o laico e integrando-o como ramo da administração pública. A instrução pública primária passa a ser estruturada em nível elementar e nível complementar, sendo dirigida às populações ‘evoluídas’. Para além destas escolas, coagitava-se, ainda, sobre a instauração das Escolas Rudimentares, destinadas, desta feita, às populações indígenas. Neste âmbito, Martins dos Santos destaca um relatório do Governador-Geral Sebastião Lopes de Calheiros e Meneses, datado de Janeiro de 1862, no qual eram re-afirmadas as vantagens de uma política educativa com o objectivo de aculturação das autoridades tradicionais : « ‘se é conveniente aceitar e aproveitar a instituição e autoridade dos sobas, é preciso também educá-los e aos seus macotas ; é indispensável aportuguesá-los e, como meio poderoso de o conseguir, devemos ensinar-lhes a ler, escrever e contar, em Português. Saibam Português, quanto possível os grandes de um sobado, que os pequenos o irão aprendendo. Se Portugal não pode (…) criar aqui uma nação da sua raça, como criou do outro lado do Atlântico, ao menos que eduque um povo que fale a sua língua e tenha mais ou menos a sua Religião e os seus costumes, a fim de lançar mais cimento da causa da civilização do mundo e de tirar depois mais partido das suas relações e esforços humanitários. Dêmos, pois, aos pretos boas autoridades na pessoa dos chefes, bons mestres e directores nas pessoas dos padres, não imponhamos aos sobas senão a obrigação de dar soldados para a força militar e de ensinar a ler, escrever e contar a seus filhos e aos seus parentes e macotas, e deixemos que o tempo, a Religião e a instrução façam o seu dever’ » (1970 : s/p). De facto, estas intenções estratégicas são inicialmente formuladas quando, em 1856, a metrópole dá instruções ao Governador-Geral, José Rodrigues Coelho de Amaral, para que os filhos dos régulos que se destacassem pelas suas capacidades fossem aprender, em Luanda, a língua portuguesa, a doutrina cristã, ler, escrever e contar. Aos estudantes seria dado sustento e vestimenta ‘à europeia’. Esta iniciativa não teve continuidade, sendo apenas (e brevemente) retomada, tanto em Angola, como em Moçambique, por Teófilo Duarte que institui, entre 1947 e 1950, as escolas das autoridades gentílicas (Azevedo, 1964). Refira-se, por fim, que, para coordenar a reforma do ensino, foi instituído, em 1870, o Conselho Superior de Instrução Pública. Já num segundo momento, nas primeiras décadas do século XX, foi sendo estabelecido um rudimentar sistema de ensino (Marques, 1996). Este englobava, para além das escolas missionárias, escolas básicas do Estado em ambientes urbanizados (incluindo os liceus de Salvador Correia em Luanda, fundado em 1919, e o liceu Diogo Cão em Sá da Bandeira, Lubango, em 1929), bem como, a partir de 1927, as chamadas Escolas Infantis, destinadas a crianças dos 4 aos 6 anos, mas sem presença de relevo. Saliente-se que, para suportar este investimento no ensino primário e do qual usufruíam sobretudo crianças de origem europeia, o chamado imposto de cubata conheceu um aumento de 30%. Na realidade, com a proclamação da República, e estando assente a exclusão dos indígenas, apenas a população de origem europeia e alguns descendentes dos velhos assimilados, ligados ao funcionalismo público, usufruíam destas incipientes políticas de educação. Em 1921 foi criada a Repartição Superior dos Negócios Indígenas, ficando esta, a partir de 1923, a cargo do ensino, instrução e educação dos indígenas não civilizados. Impunha-se assim um sistema de ensino à parte que só terminaria em 1965 (Neto, 1997). Pese embora a divergência de opiniões no que diz respeito às modalidades e objectivos a adscrever à instrução e educação dos indígenas, observada até à primeira metade do século XX (Pinto, 1996 ; Noré e Adão, 2003), a centralidade da instrução e educação colonial associada à formação de um reservatório de mão-de-obra nas colónias merecia consenso. Assim, no âmbito da reformulação da política colonial no início dos anos de 1920, Norton de Matos advoga um certo assimilacionismo cauteloso, gradual e tendencial, preconizando as instituições de instrução mais no sentido de oficinas do que escolas. Nas palavras de Norton de Matos : « ‘Muitas vezes tenho dito que não sou apologista da educação intensa literária, porque opto pelo princípio de que em vez de literatos se formem homens de acção e de trabalho’ » (1946, cit in Noré ; Adão, 2003 : 110). É de sublinhar que, no seu modelo de instrução, os 6 ou 8 anos de formação nas escolas oficinas não tinham equivalência a qualquer outro ramo do ensino primário geral. As então chamadas ‘missões de ensino e propaganda religiosa’ passam, por ordem sua, a serem fiscalizadas através do Decreto 77 de 9 de Dezembro de 1921, o qual realçava o programa civilizador das missões religiosas e proibia o uso das línguas nativas (Carvalho, 1995). Também Brito Camacho, Alto-Comissário de Moçambique entre 1921 e 1923, é partidário da educação do indígena como estratégia de constituição de uma reserva mão-de-obra, indispensável para o desenvolvimento capitalista das colónias. No seu opúsculo ‘Política Colonial’, defende a necessidade de educar e instruir o indígena por ser ele a mão-de-obra possível e disponível para a exploração dos territórios. Associando claramente os desígnios da instrução à exploração capitalista das colónias, descreve a instrução como um processo de branquização e dominação, com o qual qual se poderia, inclusivamente, promover a adesão das populações nativas ao domínio colonial português. Nas suas elucidativas palavras : « nas Colónias tropicais o preto não é apenas um auxiliar poderoso, mas trabalhador indispensável. Nestas latitudes, o branco não pode ser um rural, isto é, um homem que trabalhe a terra de sol a sol, sob pena de arruinar em pouco tempo a saúde, obrigado a fugir de África para lá não deixar os ossos (…). Mas se colonizar (…) não é hoje explorar a terra como se fosse uma mina, também não é (…) utilizar o indígena como simples animal de trabalho. Há que instrui-lo e educa-lo dando-lhe toda a instrução que êle possa adquirir. (…) É geralmente sabido que o preto é imitador no último grau (…). Fácil teria sido levar os pretos (…) a vestirem-se como brancos, a alimentarem-se como os brancos, se um vão preconceito de raça (…) não tivesse imposto uma política colonial de exploração. (…) Pode dizer-se (…) que civilizar é criar necessidades, mas em relação aos pretos a única necessidade que se lhe tem criado, com intuitos civilizatórios, é a de pagar impostos. (…) Sabendo-se que na população da Metrópole a percentagem de analfabetos é de setenta por cento, chega a causar pasmo que nas Colónias haja, entre os indígenas, quem saiba ler e escrever. A verdade é que o preto não tem a mínima repugnância pela escola, e aprende com facilidade as primeiras letras » (1939 : 25-26). Todavia, na verdade, o investimento na educação foi vestigial, sendo o cerne das preocupações do domínio colonial a questão do controlo e da reprodução da mão-de-obra nativa. Entretanto, a instauração da ditadura militar em Portugal, em 1926, e a subida de Salazar ao poder correspondeu ao desenvolvimento de um Estado autoritário, anti-parlamentar e corporativista. A orientação da política colonial deste período é formulada por João Belo, ministro das Colónias, que elabora o primeiro código do Indigenato - Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas. O texto que serve de preâmbulo à lei constitui um documento a vários títulos esclarecedor. Nele lê-se : « A governação ultramarina de Portugal obedeceu historicamente à norma cristã, humanitária e patriótica de manter e civilizar as populações indígenas (...) e de as incorporar fraternalmente no organismo político, social e económico da Nação portuguesa. Sob a influência honrosa dêste ideal progressivo, julgou-se que se deveria fazer bem cedo a equiparação geral do indígena ultramarino ao europeu, nos direitos e obrigações fundamentais de ordem pública e privada. (...) Agora o Govêrno, indo mais além na compreensão positiva dessa necessidade essencialmente reconhecida pelas Nações, deseja estabelecer o estatuto político, civil e penal dos indígenas de Angola e Moçambique (...) O novo diploma está orientado por duas ideias dominantes. Uma delas é assegurar não só os direitos naturais e incondicionais do indígena, (...) mas também o cumprimento progressivo dos seus deveres morais e legais de trabalho, de educação e de aperfeiçoamento, com todas as garantias da justiça e da liberdade. O outro (...) é o dos levar a todos os adiantamentos desejáveis dentro dos próprios quadros da sua civilização rudimentar, de forma que se faça gradualmente e com suavidade a transformação dos seus usos e costumes ». Com o Código, passou-se a considerar legalmente como indígenas (não civilizados) todos os indivíduos « de raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, não se distingam do comum daquela raça ». Este é o fundamento que dá azo, entre 1926 e 1958, à continuação de uma política educativa baseada na distinção racial. Em 1927, dá-se uma nova re-organização do ensino primário, dirigida pelo Alto-Comissário Vicente Ferreira (1926-1928). Adepto teórico do ideal de ‘Educação Nova’ que despontava na Europa e também na metrópole, o qual, ao invés de assentar na divisão classicista entre ensino académico e ensino profissional, pugnava por um modelo educativo que integrasse ambas as dimensões, Vicente Ferreira é um crítico da visão de Norton de Matos sobre a instrução indígena. Nas suas palavras : « ‘o resultado mais claro e positivo da famosa educação pelo trabalho, tal como é praticada nas escolas-oficinas, é a formação de um proletariado indígena, mais facilmente explorável pelas empresas capitalistas (…) com a agravante de que os sentimentos de revolta são agravados pelos inevitáveis ódios de raças’ » (cit in Noré ; Adão, 2003 : 115).

Mas da filiação ideológica ao ideal da ‘Educação Nova’ à sua implantação efectiva, a distância é abissal e Vicente Ferreira acaba por reproduzir a dinâmica institucionalizada de diferenciação racial através das escolas de indígenas, centradas em práticas manuais, e do ensino de cariz mais académico para brancos e assimilados. Em concordância, é decretado, em 1927, pelo Diploma legislativo n.º 518 de 16 de Abril, o plano geral de remodelação do ensino primário :

« Pretendendo satisfazer às necessidades mentais de dois grupos étnicos, naturalmente tão distanciados, como o europeu e o africano, esta reorganização procura estabelecer (…) dois ramos assimétricos (…) o ensino para os europeus e assimilados e o ensino para os indígenas ».

Esta re-organização do sistema escolar e de instrução ocasiona ainda, em 1930, pelo Diploma legislativo n.º 238 de 17 de Maio, a institucionalização da separa¬ção dos objectivos de cada tipo de ensino. O ensino indígena tem por fim « ele¬var gradualmente da vida selvagem à vida civilizada dos povos cultos a popula¬ção autóctone das províncias ultramarinas ». Já o ensino pri¬mário elementar para os « não-indígenas » visava a « dar à criança os instrumen¬tos fundamentais de todo o saber e as bases de uma cultura geral, preparando-a para a vida social ». De acordo com estes princípios, o sistema de ensino indígena passou a organizar-se em ‘Ensino Primário Rudimentar’, com três classes, pre¬visto para sete, oito e nove anos de idade no ingresso, e em ‘Ensino Profissional Indígena’. Este seria subdividido em ‘Escola de Artes e Ofícios’, com quatro classes, destinada a rapazes e ‘Escolas Profissionais Femininas’, com duas classes.

A primeira fase da política colonial do Estado Novo (1928 – 1958) , é caracterizada, assim, por uma política de separação racial, definindo-se escolas estatais (mas também privadas e religiosas) para os ‘civilizados’ (brancos, mestiços e uma ínfima minoria de negros assimilados) e escolas para indígenas que, na maior parte dos casos, se restringiam à 2ª classe. Mário Malheiros, Director da Instrução Pública, considerava, em 1931, que

« ‘Tendo em conta que os povos primitivos não podem ser civilizados senão pouco a pouco, que a população das colônias se compõe de elementos, uns civilizados, outros primitivos, foram instituídos (…) dois gêneros de ensino primário : um para europeus, outro para primitivos’ » (Malheiros, 1980 : 21).

Com a revisão constitucional de 1933, procede-se a nova reorganização do ensino primário. E através o Decreto n.º 27 294 de 30 de Novembro de 1936, é criado o ensino rural indígena, centrado na aprendizagem de práticas agro-pecuárias e no ensino rudimentar de leitura, escrita e contagem. A frequência neste tipo de ensino, para além de tentar promover a aculturação do indígena, impedia o seu ingresso no ensino primário geral e liceal (Noré e Adão, 2003). Veja-se. Segundo Marques (1996), em 1929/30, o nº de alunos do ensino primário ascendia a cerca de 4 000 alunos, tendo aumentado exponencialmente para 35 000 no ano de 1958/60. Deste último total, refere a autora, cerca de metade dos alunos são brancos, sendo a restante população escolar mestiça e negra. De 1926 a 1941, o ensino para os indígenas teve, no entanto, pouca expressão, havendo, em 1929/30, cerca de 200 alunos, distribuídos por escolas-oficinas e escolas rurais. De acordo com Neto (2005), em 1954, a taxa de analfabetismo em Angola ascendia a 95% ao nível da população negra e a 25% ao nível da população de origem portuguesa. No início da década de 1940, são de assinalar dois importantes desenvolvimentos : o Acordo Missionário (Maio de 1940) e o Estatuto do Missionário (1941). Ambos, simultaneamente, comungam e testemunham o pressuposto da lei natural acerca da ‘terra nullius’ como fundamento da acção colonizadora e evangelizadora. O acordo entre o Estado Novo e a Igreja ficou conhecido como ‘Aliança de Cruz e Espada’. Segundo Carvalho, « o governo político fascista de Oliveira Salazar celebra com a Santa Sé a Concordata e o Acordo Missionário, no Vaticano, a 7 de Maio de 1940, dando assim satisfação aos protestos veementes e colectivos do episcopado português e do Papa Pio X, na sua encíclica ‘Jandundum in Lusitania’, contra as medidas restritivas contidas na Lei da Separação do Estado e das Igrejas de 1911. Esses dois documentos passaram a regular as relações entre o Estado e a Igreja portugueses. Tal ‘conspiração’ (…) facilitou o esforço missionário das Missões católicas, reconsagrando-as nas colónias como ‘instrumentos de civilização e de influência nacional’, as únicas reconhecidas como instrumentos de nacionalização e e assimilação (…). Foi o Decreto-Lei n.º 30665, de 22 de Agosto de 1940, que criou nos estabelecimentos de ensino técnico, médio e elementar, a disciplina de educação moral e cívica, na qual se abrangeu o ensino da religião e da moral católica, durante uma hora por semana » (1995 : 27-29). Com o Acordo Missionário, as missões passam a ser consideradas « corporações missionárias » ou « religiosas » (artigos 1°, 5°, 9°, 18° e 19°) e, como tal, instâncias económicas de « moralização dos indíge¬nas », isto é, de « preparação de futuros trabalhadores rurais e artífices que produ¬zem » (art. 68°). Regulamentando esse acordo, foi assinado o Estatuto Missionário a 5 de Abril de 1941. Este, por seu turno, estabelecia que as mis¬sões católicas portuguesas passariam a ser consideradas « instituições de utilidade imperial e sentido eminentemente civilizador » (art. 2°). Com ambos os acordos, é, pois, entregue à Igreja Católica a responsabilidade pelo ensino dos indígenas. A associação entre a educação e o projecto de desenvolvimento capitalista está também aqui claramente presente. Na realidade, o Estatuto Missionário consagrou no artigo 68° este espírito discri¬minatório e comprometeu-se com a transformação do indígena em força de trabalho do sistema colonial : « O ensino indígena obedecerá à orientação doutrinária estabelecida pela Constituição Política (...). Aqueles planos e programas terão em vista a per¬feita nacionalização e moralização dos indígenas e a aquisição de hábitos e aptidões de trabalho, de harmonia com os sexos, condições e conveniências das economias regionais, compreendendo na moralização o abandono da ociosidade e a preparação de futuros trabalhadores rurais e artífices que produzam o suficiente para as suas necessidades e encargos sociais ». O mesmo artigo 68° restringia o ensino indígena ao « saber ler, escrever, con¬tar e falar a língua portuguesa », isto é, a um ensino « essencialmente nacionalista, prático e conducente ao indígena poder auferir meios para o seu sustento e de sua famí¬lia », tendo em conta « o estado social e a psicologia das populações a que se des¬tina » (cit in Mazula, 1995 : s/p). Ambos os documentos obrigavam, pois, que toda a actuação de evangelização e ensino da Igreja fosse realizada em língua portuguesa. A importância desta obrigação para o domínio colonial está espelhada na análise de Lobo da Costa quando explica as razões pelas quais apenas uma insignificante percentagem dos nativos conhecerem a língua portuguesa na Huíla : a maior parte dos missionários eram estrangeiros e não dominavam o português e as prédicas religiosas eram realizadas na « língua do gentio ». Advogava, por isso, o ensino da língua portuguesa, à semelhança do que sucede nas colónias inglesas, alemãs e francesas, como o principal elemento de « nacionalização do gentio » (1911 : 22). Tal representa, de facto, uma ruptura em relação a práticas anteriores. Relembre-se, a este propósito, que, no período da monarquia liberal, era aconselhado, no que diz respeito às possessões africanas, o respeito pelas línguas africanas e o bilinguismo para assegurar o estabelecimento de relações de cooperação com os poderes africanos. Neto refere a este propósito o seguinte :

« A Igreja católica, reforçada com a Concordata de 1940 e o Acordo missionário de 1941, pôs as instituições de formação de que dispunha (seminários, escolas de professores primários) ao serviço da ‘portugalização’ , de forma expressa : ‘O curso de professores da Escola Teófilo Duarte é essencialmente católico, nacionalista e prático. Queremos (…) um católico convicto, um português consciente e um mestre que resulte’ (Costa 1970, pp. 266-267) » (1997 : 336). De acordo com a periodização de Marques (1996), de 1958 a 1974, assiste-se, pois, ao desenvolvimento de uma rede escolar do ensino primário e a uma abertura gradual do acesso à escolarização das crianças africanas – pelo menos no plano formal -, com a mudança do ensino rudimentar para o ensino de adaptação em 1957.

Durante as décadas de 40 e 50 do século XX, a progressão do ensino escolar foi, todavia, lenta e continuava a ser orientada de acordo com uma política de diferenciação racial, a qual foi novamente sistematizada, em 1954, com o Estatuto dos Indígenas das Províncias de Guiné, Angola e Moçambique. Embora introduzindo algumas alterações à legislação anterior, nomeadamente a do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas, por considerar que existiriam « situações especiais em que ele [o indígena] pode encontrar-se no caminho da civilização, para que o Estado tem o dever de o impelir », o Estatuto continuava a basear-se nessa mesma diferenciação fundadora. E assim, « Consideram-se indígenas das referidas províncias os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração ou os hábitos individuais e sociais pressupostos para a aplicação integral do direito político e privado dos cidadãos portugueses ». Como se sabe, previa-se apenas a passagem ao regime de cidadania sob certas e restritas condições – passagem essa que era certificada pelas autoridades coloniais, mediante a realização de provas discricionariamente controladas por aquelas. As condições para a passagem do estatuto de indígena ao estatuto de cidadão só seriam acessíveis aos indivíduos maiores de 18 anos, que falassem correctamente o português, que possuíssem profissão, arte ou ofício capaz de assegurar o sustento do indivíduo e seu agregado, que tivessem boa conduta, que não fossem refractários ou desertores do serviço militar e que apresentassem um significativo grau de aculturação. Verifica-se, assim, que o sistema de educação vigiava as fronteiras do regime de diferenciação colonial entre cidadão e indígena, sancionando formalmente a categoria de assimilado, não enquanto mecanismo de integração, mas sim como « barreira jurídica e cultural à ascensão social da maioria da população negra, já que os brancos eram automaticamente considerados ‘civilizados’ » - pese embora o facto, segundo o qual, em 1950, cerca de 44% da população branca ser analfabeta. A sua qualificação automática de ‘civilizado’ advinha claramente do critério racial (Neto, 1997 : 348). Obviamente, a representatividade destes ‘assimilados’ era ínfima. Mateus apresenta-nos os dados : « o número de assimilados negros, em Angola, teria passado de 24 000 em 1940 para 30 000 em 1950 e para 38 000 em 1960 (...). Em 1960, negros e mestiços civilizados representavam cerca de 1/3 do total dos civilizados (cerca de 270 000 pessoas). Eram, na sua maioria, gente das cidades e, sobretudo, da capital : 25% dos mestiços e 35% dos negros assimilados habitavam Luanda » (1999 : 23). E, além de exígua, a representatividade restringia-se aos escalões mais baixos da sociedade. Arlindo Barbeitos especifica que esta política de assimilacionismo portuguesa era « graduelle ou mieux ‘tendancielle’ d’après le jargon du Professeur Silva Cunha, futuro Ministre d’outre-mer (1965-1973) », e, qualificando-a de ilusão retórica que o regime colonial convoca para sua legitimação, questiona frontalmente : « Comment croire à l’honnêté d’un projet assimilateur, même ‘tendanciel’, quand, sur une population d’environ 4 millions d’habitants, on ne trouvait que le chiffre modeste de 30 000 ‘assimilados’ recensés en 1950 (…) ? En plus, comment accepter la validité de cette assimilation moderne, tellement maigre, lorsqu’on sait que le racisme immanent aux structures du pouvoir et, en particulier, la persistance de la discrimination dans le quotidien, la rendaient problématique, sinon purement illusoire ? » (2008 : 400-401). Evidentes eram os reflexos deste cenário na esfera do ensino. Segundo Silva (1996), no ano lectivo de 1951-52, os alunos inscritos no ensino primário totalizavam 13.586 crianças. Deste total, 6.510 eram crianças brancas, 4.190 mestiças e 1.881 negras. Já no ano lectivo de 1959-60, e ao nível do total de alunos matriculados no ensino secundário, 80% dos estudantes eram brancos, 17% mestiços e 3% negros. Embora tenha vigorado até 1961, esta política de ‘assimilação selectiva’ teve importantes medidas percursoras. A partir de 1875, por exemplo, com o afluxo da imigração branca, acentuou-se a competição por empregos na administração colonial entre brancos e assimilados. As tensões que daqui emergiram resultaram na restrição do acesso ao emprego, através do aumento do nível de habilitações literárias exigidas aos assimilados. Todavia, esta restrição era mais do que uma restrição ; era a institucionalização de uma impossibilidade, pois « à luz de uma nova lei aprovada em 1901, os angolanos que pretendessem candidatar-se ao lugar de telegrafista tinham de possuir certificados de habilitação em geografia e latim – duas disciplinas que nem sequer eram leccionadas a esse nível nas escolas angolanas » (Wheeler e Pélissier, 2009 : 152). Dez anos depois, em 1911, foram exigidas novas qualificações académicas (cinco anos de estudos secundários) para o ingresso nos escalões inferiores da administração colonial, quando, apenas em 1919, foi inaugurado o primeiro liceu. Mais dez anos passaram, quando, em 1921, Norton de Matos divide a administração colonial num ramo europeu e noutro africano, designado por ‘Quadro Auxiliar’. Com esta reforma, a promoção de assimilados parava na ascensão ao posto de primeiro escriturário, tendo ainda sido criada uma escala salarial diferenciada. Wheeler e Pélissier consideram esta reforma como sendo percursora da institucionalização do estatuto de indígena (2009). O ascendente desta comunidade de velhos assimilados foi-se perdendo no início do período colonial moderno, sofrendo a mesma uma forte secundarização pelo novo impulso dado ao projecto colonial entre os finais do século XIX e início do século XX. De facto, no primeiro quartel do século XX, Norton de Matos ascende a Alto-Comissário e opõe-se frontalmente ao processo de miscigenação que deu origem a estes velhos assimilados. Com as suas políticas (v.g., encerramento de jornais africanos ; maior fluxo de famílias de colonos brancos, etc.), o estatuto social e económico da elite crioula entra em declínio, sendo esta renegada pelas autoridades coloniais ao estatuto de ‘meros adjuntos’ (Chabal, 2002 : 109). Birmingham afirma a este respeito que, ressentidos, « the creoles probably saw themselves as both the true children of Africa, loyal to its traditions, and the law-abiding subjects of European kings. They were deeply dismayed at the racism which affected the new style of colonial immigrant and bureaucrat that was reaching Africa at the end of nineteenth century. The old assimilados of Angola feared that they were being submerged by a tide of racism which denied their equal humanity and their high status » (1992 : 12). Apesar do declínio do seu estatuto, a identidade desta comunidade foi sendo preservada e re-construída, muitas vezes contra o africano das terras do interior que não tinha incorporado na sua identidade elementos com que se produziu a miscenização cultural que esteve na base dos crioulos. Assim, « deve-se sobretudo considerar a violência da oposição entre a cidade e o mato – não o campo –, mas antes o mato. A violência do colonialismo aparece de maneira crua na adopção, por uma parte da própria população africana, de juízos negativos utilizados para designar, os africanos ainda não urbanizados » (Castro Henriques, 2003 : 17). A política de instrução do Estado Novo reforça os regimes de diferenciação social postos em marcha pelo domínio colonial, dando, pois, origem a uma nova forma de diferenciação social : os novos assimilados. Com uma ascendência predominantemente negra e não descendendo da burguesia colonial, este segmento social conheceu, de facto, um processo de assimilação tardio, iniciado no século XX. Estes ‘novos assimilados’ enfrentavam, porém, a resistência dos velhos assimilados, atrás referenciados, que, afirmando-se identitariamente como a elite histórica de Angola, obstavam à sua promoção social. A diferenciação entre velhos e novos assimilados foi sendo, então, elaborada pelo domínio colonial. E perante a superioridade reclamada pelos velhos assimilados, os novos assimilados foram-se definindo a si próprios por referência à sua negritude e à sua experiência de africanidade. Explica Messiant : « ils perçoivent leur différence d’avec ces descendants de l’ancienne bourgeoisie où les métis sont dominants en termes à la fois raciaux[[ et sociaux. Et face à la ‘superiorité’, au ‘capital’ social et culturel de ces métis et Noirs qui se pensent souvent comme une ‘aristocracie’ qu’ils peuvent difficilment prendre comme modèles – on ne devient pas ‘ancien assimilado’ -, ils tendent à valoriser leur propre supériorité, résultant du lien maintenu avec les indígenas, de leur africanité (culturelle) et de leur couleur » (1994 : 164). De qualquer modo, pese embora a propaganda assimilacionista, agrava-se, durante os anos de 1950, « a dificuldade de obtenção da cidadania e do bilhete de identidade por parte de negros e mestiços, independentemente do seu nível de assimilação da cultura europeia, como confirmam todos os testemunhos da época e a exiguidade relativa dos ‘alvarás de cidadania’, obtidos através de burocráticos ‘processos de averiguação administrativa’ e humilhantes vistorias às residências dos candidatos » (Neto, 1997 : 346). O início da luta armada contra o domínio colonial português foi acompanhado por um esforço acrescido de investimento em Angola nos mais diversos domínios. Refira-se que o aumento do investimento vem no seguimento da política colonial da década de 1950, assente no já então institucionalizado pressuposto integrador da Nação pluri-continental. De facto, na revisão constitucional de 1951, o Acto Colonial é revogado e transformado num novo título constitucional. As mudanças introduzidas dizem respeito, sobretudo, à terminologia : os vocábulos ‘império colonial’ e ‘colónia’ são substituídos pelos termos ‘ultramar português’ e ‘província ultramarina’, o que expressava o reforço da visão integracionista e centralizadora introduzida em 1930 e, em 1933, pela Carta Orgânica do Império Colonial Português e pela Reforma Administrativa Ultramarina. Tais medidas vieram moldar novamente as relações entre colónias e metrópole. No plano jurídico, a mudança da terminologia que passa a designar as colónias de ‘províncias ultramarinas’ tenta objectivar a re-orientação introduzida. Em termos de conteúdo, as questões associadas ao regime de trabalho indígena e ao estatuto do indígena assumem especial relevância : por um lado, pôs-se cobro ao trabalho compulsivo, por outro, procurou-se institucionalizar o estatuto de cidadão assimilado. Todavia, como já assinalado pela análise de Barbeitos (2008) e Santos (2006), a política de assimilação assentava em práticas de classificação e diferenciação social, segundo a raça, pese embora o discurso que enfatiza a portugalidade multi-racial.

A educação colonial no período tardio

O Decreto-Lei n.º 43 893 de 10 de Setembro de 1964 marca uma nova reforma do ensino primário elementar sob os desígnios de uma rápida cobertura escolar nas províncias. Justino Mendes de Almeida, Director Geral do Ensino do Ultramar, reitera o discurso ideológico do Estado Novo no que diz respeito à Nação pluri-continental e pluri-racial no campo da educação : « uma só orientação domina o legislador : a preocupação de unidade educativa no espaço português. (…) Unidade educativa, um só ensino para todos os Portugueses, as mesmas escolas, os mesmos programas, enfim, ensino à nossa medida de Portugal » (Ultramar, 5/2, 4º trimestre de 1964, cit in Pinto, 1996 : 107). Como observado, esta mitologia da unicidade esconde, na realidade, os regimes instalados de diferenciação social. No plano da educação, tal traduziu-se, por um lado, nas instituições para a formação das futuras elites do funcionalismo colonial, e, por outro, nos territórios ultramarinos, na educação dos indígenas para sua elevação civilizacional, através da colaboração entre missões e administração colonial, e nas escolas, primárias e secundárias, destinadas à população europeia, seus descendentes e uma parca percentagem de assimilados. Neste sentido, Pinto conclui que, embora promova a ideologia da unicidade, « o projecto de ‘rápida e intensiva escolarização’ (…) contém portanto vários aspectos contraditórios, geradores de divergências na produção discursiva e na esfera das práticas educativas. Desde logo porque não resolve em definitivo o velho problema da necessidade de se forjar ou não um currículo específico para as colónias. Depois porque não consagra em absoluto um modelo de escolarização, hesitando (…) entre a aplicação do esquema metropolitano dos anos 30/40 (e.g., postos e regentes escolares), ou dos processos ensaiados em Portugal e em alguns países africanos (telescola, campanhas de alfabetização, universidades, etc.). Finalmente porque o projecto conserva a imagem ambígua dos efeitos que uma educação para as massas poderia desencadear, sendo visível que a (…) crença na escolarização como meio privilegiado de modernização (…) não exclui as frequentes alusões aos ‘efeitos perversos’ da educação, efeitos capazes de gerar o crescente número de ‘desenraízados’ adeptos de soluções pró-independência » (1996 : 109-110). O investimento na acção educativa que se pretendia expandir pelo território angolano detinha, assumidamente, um carácter político, o qual deveria « contribuir para a paz social e coesão da pátria », assim como para « um futuro promissor da Angola Portuguesa, verdadeiramente cristã » (Pinheiro da Silva, 2010 : 9/12). Dê-se, como exemplo, o programa ‘Levar a Escola à Sanzala’, o qual decorreu entre 1961 e 1962 (Dilolwa, 1978). Ainda neste âmbito, Belchior informa sobre a estatização do ensino indígena, anteriormente ministrado, sobretudo, por protestantes, e, igualmente, sobre a re-introdução do ensino em línguas nativas em 1963, desde que aquelas fossem concebidas como « instrumento de ensino da língua portuguesa ». O protagonismo dado à questão educativa em Angola tinha óbvios propósitos propagandísticos, chegando a ser objecto de uma extensa reportagem no Diário de Luanda, em 1967, tendo a mesma ficado conhecida como « A Batalha do Ensino ». A educação era encarada, simultaneamente, como instrumento de luta contra a ‘insurreição terrorista’ que se espalhava por Angola , e como um instrumento de promoção da adesão das comunidades à portugalidade, tornando-as imunes à ‘rebelião’. O Programa do Ensino Primário Ultramarino de 1964, e que será analisado com maior pormenor adiante, é bastante esclarecedor a este último nível. Considera o texto o seguinte : « Como o meio influi poderosamente nas acções praticadas pelos indivíduos, já que, normalmente, estes tendem a conduzir-se conforme lhes consente o ambiente que os rodeia, há necessidade, por conseguinte, de a escola e o mestre exercerem acção profunda e imediata sobre ele e aqueles que nele vivem. Para isso, em primeiro lugar, cumpre ao professor velar por manter o ambiente escolar dentro de uma moralidade elevada e pura. Depois, compete-lhe vigiar e controlar, com tacto e cuidadosamente, as acções dos seus alunos, a fim de poder empregar todos os seus recursos no combate aos vícios e aos maus hábitos que porventura neles descubra. A pouco e pouco, a acção da escola e do professor irá produzindo frutos. E assim se processará a transformação do ambiente social por influxo da educação » (Programa do Ensino Primário, 1964). Será, pois, um ideal instrumental de portugalidade e os propósitos de afrontamento e neutralização das ideologias nacionalistas, que irão orientar a acção educativa colonial. Esse ideal de portugalidade servirá ao fortalecimento dos propósitos ‘integracionistas’ e ‘assimilacionistas’, na medida em que « todos quantos pensam, sentem e agem à luz dos valores morais, espirituais e religiosos da Casa Lusitana são portugueses. Em rigor, a integração é, entre nós, uma mentalidade. Define um estilo de vida » (Pinheiro da Silva, 2010 : 16). A educação constituía-se, assim, como um veículo privilegiado do processo que Isabel Castro Henriques denuncia como sendo de ‘branquização’ – processo que designa não só o afluxo de colonos brancos, mas também « a ‘branquização’ do quotidano dos africanos retirando-lhes qualquer forma de autonomia : comer, vestir, falar, rezar, trabalhar, organizar a casa segundo os modelos europeus » (2003 : 14). Este assimilacionismo participa, claramente, num leque vasto de estratégias classificadas por Santos e Meneses (2011) como epistemicídio. Fundamentalmente, almejam uma desarticulação e uma negação do colonizado como sujeito autónomo e eram legitimadas pelos propósitos da missão civilizadora portuguesa. Neste âmbito, uma das preocupações mais caricatas da administração provincial durante os anos de 1960 foi a de substituir o regime alimentar local e nativo, vigente em muitas escolas, pela gastronomia nacional metropolitana, por se considerar que aquele seria « contrário ao interesse nacional ». A alimentação era assim vista como « elemento indispensável a uma séria política de plena integração » (Pinheiro da Silva, 2010 : 12). Esta recusa de práticas e saberes indígenas não é, de modo algum, novidade. Em 1911, Lobo da Costa constatava com desgosto o seguinte : « Em regra, as habitações espalhadas pelo matto, e destinadas ao pessoal europeu, tanto para funcionários militares como civis, são construídas pelo processo das dos indígenas, differindo apenas nas dimensões. É indispensavel acabar com este costume que, alem de outros inconvenientes, tem o de deprimir ou, pelo menos, não nos elevar aos olhos dos naturaes, com prejuízo grave para a disciplina e para o respeito que nos é devido. Essas construcções devem ser feitas á europeia, empregando-se para a cobertura a telha em vez do capim, as janelas devem ter vidros e o pavimento soalho ou tijolo » (1911 : 31-32). Obviamente que a prática de violência epistémica não é, pois, nova no contexto da relação colonial ; tão pouco é nova a sua apresentação como modo de elevação civilizacional, por via da educação, do sujeito colonizado. Lobo da Costa dá-nos outro exemplo : « [O gentio] Poderia também apreender (…) a extrair a borracha por processo menos bárbaro e mais limpo do que o actual, replantando mesmos os arbustos ou arvores productoras, condemnadas a desaparecer (…) se a exploração continuar pelos meios primitivos. (…) Esse aperfeiçoamento no processo de colheita traduzir-se-hia ainda n’um aumento considerável de receita (…) E esta obra de desenvolvimento económico da região e de civilização do gentio poderia ainda ser completada com a creação de aulas, junto dos postos militares e granjas do Estado, onde lhe fossem ministradas lições de leitura e escripta, e onde se lhes formasse o moral » (1911 : 52-53). Nesse sentido, defendia a criação de oficinas nas granjas do Estado para a « difusão, por intermedio dos indígenas educados (…), conhecimentos technicos de cuja existência eles nem sequer suspeitam » (1911 : 67). Como explicitamente expõe Pinheiro da Silva, director da Secretaria Provincial de Educação durante os anos de 1960, no prefácio de « A História do Ensino em Angola », de autoria de Martins dos Santos : « na movediça esfera da educação e ensino – que o mesmo é dizer no domínio onde se temperam as almas, onde se forja a Nação. Promover a difusão da língua portuguesa, radicar hábitos e atitudes, expandir a fé cristã, modificar processos de cultivo da terra, ensinar fórmulas de convivência entre as gentes, diversas na civilização e na etnia, etc…, constituíam e constituem pontos fundamentais da acção educativa nacional onde quer que se exercesse ou exerça » (2010 : 14). Por fim, a política de ensino contribuía para a legitimação da presença colonial portuguesa em África – objecto de repúdio pela comunidade internacional. Esta função legitimadora ancora-se no conceber a educação como pilar da civilização na « luta que trava contra o comunismo », pelo que « não há forma de fazê-lo que não seja o de defender a pequena Casa Lusitana, o pequeno grande Portugal que (…) está aqui nesta terra defendendo-se não tanto a si próprio, como à Civilização Ocidental » (Pinheiro da Silva, 2010 : 28). Em 1961, pouco antes de terminar o seu mandato como Ministro do Ultramar, o Governador-Geral de Angola (1943-47), Vasco Lopes Alves, publicou uma série de diplomas do foro educativo que tinha por objectivo « opôr a barreira cultural às aspirações de autonomia ». Das inúmeras medidas dedicadas especificamente ao sector do ensino primário, saliente-se o aumento dos lugares de professor, em número de cinquenta e a criação de subinspectores escolares, por se reconhecer « a urgência de começarem a fazer-se inspecções fiscalizadoras e orientadoras da actividade docente, sob os aspectos pedagógico e disciplinar » (Martins dos Santos, 1970 : s/p). E, de facto, esta política foi sendo prosseguida nos anos que se seguiram. No que diz respeito mais especificamente ao ensino ‘primário’, deu-se uma re-organização do sistema, com a redefinição dos distritos escolares, a unificação do sistema de ensino regular e do ensino de adaptação e com a institucionalização de uma classe pré-primária a que se seguiriam quatro anos regulares. Em 1964, o quadro para professores primários em Angola aumentou para 150 lugares, tendo sido ainda criados 200 lugares de professores de posto. Nos anos subsequentes, verificou-se um aumento constante do quadro docente, sobretudo no que diz respeito ao ensino primário. O imperativo de ampliar e reforçar a actividade de ensino conduziu também ao estabelecimento de formas de cooperação e parcerias entre os estabelecimentos de ensino público, estatal, e estabelecimento privados, de cariz missionário ou não. Tal foi institucionalizado pelo Despacho de 17 de Julho de 1970, no qual se reconhecia que estes estabelecimentos de ensino « prestavam relevantes serviços à educação e colaboravam com os poderes constituídos na difusão da cultura popular e divulgação da alfabetização », admitindo-se, ainda, que poderiam colher-se melhores frutos do que os até então produzidos se houvesse « mais perfeita colaboração com o sector oficial, cooperando harmoniosamente com os seus professores na consecução do objectivo comum » (Martins dos Santos, 1970 : s/p). E, a este nível, a Casa Pia detinha algum relevo. Sendo o seu papel educativo dirigido às populações nativas, a Casa Pia era dirigida pela Polícia. Pinheiro da Silva, dirigente da Secretaria de Educação Provincial, exaltava a acção levada a cabo pela instituição e pela « sensatez usada na direcção daquela casa de educação de crianças e adolescentes desvalidos luandenses » (2010 : 6). Elogiava, igualmente, o papel educativo da Companhia Angolana de Agricultura (C.A.D.A.), salientando o facto de ser ‘etnicamente integrada’, recusando as acusações de racismo e denunciando « os preconceitos contra o capitalismo, alimentados entre nós pelos membros da seita de todos nós conhecida – autêntica térmite que minava a Nação » (2010 : 7). Refira-se que, em Dezembro de 1963, o governo de Lisboa deu permissão aos governadores-gerais de Angola e Moçambique para criarem nos seus estabelecimentos prisionais e internatos de menores sob a tutela do Estado, quadros técnicos de ensino. As funções de controlo e disciplinarização social por via de uma intervenção educativa eram, pois, claramente reconhecidas pela autoridade colonial. A 1 de Janeiro de 1964, foi criada a Secretaria Provincial de Educação em Angola, sendo a mesma entregue a José Pinheiro da Silva (1964 – 1971), mestiço nascido em Cabinda, e salazarista convicto no Portugal pluri-continental e multi-racial. A criação da Secretaria constituiu um importante marco no ensino colonial em Angola e a sua actuação estava claramente orientada, como mencionado, para participar e contribuir para a consolidação de uma ‘Angola Portuguesa’ que resistisse e eliminasse as forças opositoras e independentistas. A expansão da educação portuguesa pelos territórios da Província, enquanto forma de assegurar a presença portuguesa, controlar as comunidades e de converter a potencial ‘subversão’ em adesão aos ideais da portugalidade, constituía-se como o meta-objectivo da administração colonial, obedecendo à filosofia que determinou a substituição do « ensino de adaptação » pelo « ensi¬no pré-primário », através do Decreto n° 45 908 de 1964. E em função dessa expansão, os esforços teriam sido de tal modo significativos que, de acordo com Marques (1996), em 1972/73, registavam-se 500 000 alunos no ensino primário e 75 000 do secundário. De um ponto de vista global, a evolução relativa ao sector do ensino primário poderá ser observada na seguinte tabela : Ano Professores Escolas Alunos 1955 2111 1283 66944 1966/67 6616 3563 288861 (adaptado a partir de Pinheiro da Silva, 2010). A acompanhar estes esforços, estaria uma máquina burocrático-administrativa que procurava garantir um acompanhamento dos resultados alcançados. Nesse mesmo ano, por exemplo, a 19 de Dezembro de 1964, era atribuída aos Serviços de Estatística Geral a obrigação de elaborar e manter actualizadas todas as informações relativas à estatística do ensino. Os respectivos dados seriam incluídos na publicação que aquele organismo costumava empreender, adoptando-se a designação genérica de Estatística da Educação. A Secretaria Provincial de Educação tinha sob sua tutela as seguintes entidades : o Gabinete do Secretário Provincial ; a Inspecção do Ensino ; a Direcção dos Serviços de Educação ; o Instituto de Investigação Científica de Angola ; a Mocidade Portuguesa ; a Mocidade Portuguesa Feminina, e, por fim, o Conselho Provincial de Educação Física. O papel da inspecção e da fiscalização da acção educativa assumia cada vez mais um relevo central, tendo sido, inclusivamente reforçado nos anos que se seguiram. E, de facto, em 1967, à Inspecção Provincial competiam funções que incluíam a nomeação para cargos directivos ; o contacto com os professores, em orientação pedagógica, fiscalização e apuramento de competência e dedicação profissional ; a organização de horários e turmas nos estabelecimentos de ensino, sobretudo nos que fossem regidos por agentes menos qualificados ; a realização de provas de passagem de classe e exames finais de ciclo, e a abertura de escolas e colégios que cumprissem as exigências de segurança, moralidade e competência pedagógica, entre outras. Em face da elevadíssima taxa de insucesso escolar (somente cerca de 10% dos alunos concluíam a 4ª classe) – atribuída ao facto da maioria dos agentes educativos não possuir uma formação adequada e se concentrar nas zonas urbanas -, vários esforços foram levados a cabo. Perante a escassez de recursos humanos capazes de garantir em todo o território da Província escolas ou postos escolares, deu-se início à formação de professores de posto em escolas de habilitação (masculinas, femininas ou mistas) que funcionavam em regime de internato e que ministravam cursos gratuitos com a duração de 4 anos. Tais escolas estavam vocacionadas para formar professores dos meios rurais. A preparação para o exercício do magistério em áreas rurais incluía disciplinas como : « Práticas de didáctica e noções pedagógicas-didáticas », « Legislação e escrituração escolares », « Higiene geral e rural, saúde pública e socorrismo » (para os alunos), « Higiene geral e rural, puericultura e socorrismo » (para as alunas), « Formação portuguesa », « Actividades sociais », « Trabalhos rurais » (para os alunos), « Formação feminina » (para as alunas), « Práticas de agricultura e pecuária » e, por fim, « Religião e moral ». Os conteúdos ministrados promoviam os objectivos de « branquização » das populações locais e a sua adesão à portugalidade. Os conhecimentos veiculados derivavam essencialmente do saber europeu, procedendo-se a uma desqualificação de conhecimentos e saberes locais, os quais eram apenas reconhecidos como objectos de mero interesse folclórico e de algum conhecimento incipiente, primário e até inocente e proveitoso, pese embora o seu carácter não científico e mitológico. Para além dos ‘professores de posto’, menção, ainda, para os ‘professores auxiliares’ (aqueles com alguma formação secundária) e os ‘monitores’ (aqueles que detinham apenas a 4ª classe). Heimer (1972) informa que, em 1970, nos meios rurais, menos de 10% eram professores de posto, sendo os restantes ‘professores auxiliares’ (cerca de 40%) e ‘monitores’. Saliente-se também que, aquando da elaboração do IV Plano de Fomento (1974-79), o qual apenas vigorou durante um ano, constatava-se que a maioria da população e a quase totalidade da rural limitava-se a frequentar os dois primeiros anos, abandonando a escola com uma muito elementar bagagem de conhecimentos (Mazula, 1995). Martins dos Santos considerava tal política de formação de agentes pedagógicos como : « uma modalidade acertada de se conseguir pessoal com preparação literária e pedagógica satisfatória que poderia contribuir muito para resolver o grave problema da escolaridade nos locais longínquos ; não se contava com número suficiente de professores formados nas escolas do magistério ; na falta de uns e outros, lançou-se mão do recurso de treinar intensivamente monitores escolares, que careciam de preparação de base e, consequentemente, também de conhecimentos e prática didáctico-pedagógica » (1970). Analisando os programas das diferentes disciplinas, verifica-se que em nenhuma delas estão considerados conhecimentos, práticas e saberes endógenos, os quais são, na sua maioria, desqualificadas como nocivos e inoperantes. Em 1964, a experiência das escolas de habilitação de professores de posto, iniciada em Angola, mereceu especial atenção por parte das autoridades coloniais que a pensaram como possível modelo de exportação para outras províncias. Na realidade, estas escolas afiguravam-se como uma frente de infiltração do Estado colonial em territórios parcamente controlados pela sua administração e tidos como sendo mais susceptíveis a influências ‘subversivas’.

Fonte : Didática das licões do 1º ano do ensino primário rural. Livro do Professor. Vol. 1. Portugal. Província de Angola. Direcção Provincial dos Serviços de Instrução. 1962. Pág. 3.

Fonte : Didática das licões do 1º ano do ensino primário rural. Livro do Professor. Vol. 1. Portugal. Província de Angola. Direcção Provincial dos Serviços de Instrução. 1962. Pág. 35.

Daí o interesse especial da Inspecção Provincial de Educação sobre a acção educativa nos meios rurais, promovendo, por isso, reuniões com as comunidades e com as autoridades tradicionais locais. No seu relatório de 1967, alertava para o seguinte : « A Inspecção julga que seria útil ao ensino que nenhum monitor fosse transferido do posto escolar em que exerce sem o seu parecer. Interessada como está, de modo muito particular, na acção escolar desenvolvida nos ambientes rurais, que considera alta preocupação do Governo, reconhece que há inconveniente em que as transferências se efectivem sem que os seus elementos se pronunciem, pois que elas podem alterar todo um plano de acção e até a consecução de interesses locais relacionados com a melhoria das próprias populações. (…) Mas é a qualidade desse ensino, melhor dizendo, a racional aprendizagem dos nossos alunos que vem valorizar o Homem de que a Pátria, porquanto o torna mais apto para verdadeiramente se afirmar e ser, na paz ou na guerra, um dos mais sólidos obreiros dos pequenos ou dos grandes empreendimentos nacionais » (cit in Pinheiro da Silva, 2010 : 252). Refira-se que, no contexto da emergência dos movimentos armados contra o domínio colonial, a doutrina de Contra-Subversão foi sistematizada no Guia « O Exército na Guerra Subversiva », cujo texto definitivo foi dado por terminado em 1966. Um dos elementos constitutivos da doutrina seria a « captação permanente das populações pelo desenvolvimento e acção pedagógica ». De facto, para além da estratégia militar que incluía várias frentes de acção como a definição de áreas atingidas pela subversão, a maior coordenação das acções de contra subversão e uma acção sobre melhor acessibilidade ao território, um Despacho Conjunto dos Ministros do Ultramar e da Defesa, a 7 de Outubro de 1967, atribui maior protagonismo à conquista da adesão das populações ao domínio colonial português. Tal traduziu-se na implantação de uma estrutura de Contra Subversão. A estrutura englobava o Conselho Provincial de Contra Subversão (CPCS, composto pelo Governador-Geral, Comandante Chefe, Secretário Geral, Secretários Provinciais, Comandantes dos três Ramos das Forças Armadas), o qual era apoiado por um Gabinete de Estudos e Coordenação da Contra Subversão (GECSV, chefiado pelo Chefe de Estado Maior do Comando Chefe). A nível dos distritos instituíram se os Conselhos Distritais de Contra Subversão (CDCS, Governador de Distrito, Comandante de Sector, Intendente, Chefe do Estado Maior do Sector) e nos concelhos, circunscrições administrativas, nas freguesias e nos postos administrativos organizaram se Comissões Locais de Contra Subversão (CLCS, Autoridade Administrativa e Comandante Militar). Na altura Chefe da Secção de Acção Psicológica/ Assuntos Civis do Estado-Maior do Comando da Zona Militar Leste de Angola, o General Espírito Santo informa que, a partir dos anos de 1970, o reforço da presença militar veio a permitir fortalecer os meios accionados de contra-subversão. Destes, realce-se a utilização dos monitores escolares :

« A malha administrativa (Sedes de Distrito, Concelho, Circunscrição e Posto Administrativo) contava 147 autoridades. Nas sedes dos Distritos havia algum desenvolvimento de serviços (Saúde, Educação, Obras Públicas, Administração), que decresciam progressivamente para as sedes dos Concelhos, Circunscrições e Postos Administrativos. A este nível, o chefe de posto, um enfermeiro, algumas vezes o monitor escolar e três cipaios constituíam o Estado » (2009 : 8).

No espírito da doutrina de contra-subversão, a dimensão relativa à acção psicológica para obter a adesão das populações passava pela Promoção socioeconómica expedita das populações. Reportando-se à Zona Militar de Leste, Espírito do Santo explica, ainda, que os instrumentos principais deste planeamento e coordenação eram a Directiva de Acção Psicológica do Comandante da Zona Militar Leste e o Plano Expedito de Desenvolvimento do Leste. De facto, estes elementos definiam as áreas prioritárias geográficas, populacionais e sociais. Estes últimos incluíam habitação, alimentação, água, saúde, segurança e escolaridade.

Fonte : http://coisasdomr.blogspot.pt/2008/...

Mapa de progressão das Escolas de Habilitação de Professores de Posto Escolar. Ano lectivo Estabelecimentos Professores Alunos Verbas atribuídas 1960/61 2 13 294 - 1961/62 2 14 188 - 1962/63 3 23 322 - 1963/64 6 38 470 - 1964/65 6 39 550 1 500 000$00 1965/66 7 47 705 455 000$00 1966/67 7 50 794 6 680 000$00 a) a) O aumento de verba justifica-se pela introdução do sistema europeu de alimentação. Fonte : Pinheiro da Silva, 2010 : 77. Pese embora a importância atribuída pelas autoridades coloniais à fiscalização e à inspecção do ensino, estas escolas foram fulcrais para a formação de professores/as negros que, antes de 1961, eram considerados indígenas. Estas estão, pois, na origem da emergência duma ‘elite’ relativamente escolarizada. No entanto, a fiscalização do ensino, a par da doutrinação sobre a portugalidade, « não impediu, evidentemente, o aparecimento de nacionalistas angolanos nas suas fileiras » (Neto, 1997 : 336). Uma outra medida de relevo é a que está contida no Decreto-Lei n.º 169/64, de 9 de Julho de 1964. Este estabelecia a ampliação do período de escolaridade obrigatória em dois anos (passando de 4 a 6 anos) na metrópole, mas foi aplicado aos territórios ultramarinos em Dezembro de 1967. Em Fevereiro de 1968, determinou-se que os conteúdos programáticos deste ciclo complementar, ministrados na metrópole, seriam também aplicados ao ultramar. As disciplinas nucleares eram Língua Portuguesa ; História de Portugal ; Ciências Geográfico-Naturais ; Matemática ; Desenho e Trabalhos Manuais Educativos, para além de actividades respeitantes à Educação Física, Religião e Moral e Educação Musical. O investimento no sector da educação traduziu-se também no aumento do número de liceus (de 1954 a 1967, foram criados 9 liceus), escolas do ensino técnico industrial e comercial (entre 1955 e 1967, foram criadas 17 escolas), estabelecimentos do ensino médio, industrial, comercial e agrícola, escolas do magistério primário, etc. , bem como na institucionalização de bolsas de estudo e da Comissão Provincial de Bolsas de Estudo, Passagens e Residências de Estudantes e de Intercâmbio Cultural (Decreto-Lei n.º 46 935 de 1 de Agosto de 1966). Em 1972, foi tornada extensiva ao ultramar português a disposição legal que instituía a gratuitidade relativa à escolaridade obrigatória a ministrar pelas escolas preparatórias públicas e postos oficiais da Telescola. Por fim, refira-se que os Estudos Gerais Universitários de Angola, instituição antecessora da Universidade de Angola, foram inaugurados em 1963 com a presença de Américo Tomás, Presidente da República. Uma outra questão central prende-se com os manuais escolares. Nas escolas dos territórios ultramarinos, os manuais referentes ao ciclo preparatório, ensino liceal e ensino técnico eram, na sua maioria, adoptados os livros previamente aprovados pelo Ministério da Educação Nacional, podendo estes ser objecto de pequenas adaptações. Martins dos Santos explica-nos que : « A aprovação dos livros a utilizar nas escolas movimentou sempre grandes influências, uma vez que desta atitude governativa dependiam elevados interesses materiais, dos quais provinham (…) lucros financeiros. Os estabelecimentos de ensino particular adoptavam também os que as autoridades escolhiam, quer porque se tratasse de compêndios de uso obrigatório, ‘livros únicos’ ou então ‘livros oficialmente aprovados’, quer porque os seus dirigentes viam vantagem em que os alunos seguissem os livros utilizados nas escolas oficiais, onde ou perante cujos professores prestariam provas de exame » (1970 : s/p). O autor informa também que, a partir de 1971, os livros classificados de técnicos, ou escolares, podiam ser comercializados nos territórios ultramarinos com preços 10% mais caros, sendo os restantes vendidos com um aumento de 25% dos preços praticados na metrópole, explicando ainda que esta regulamentação de preços destinava-se a combater os abusos especulativos verificados. Através da Portaria Ministerial de 19 de Fevereiro de 1964, foram introduzidas diversas alterações ao Decreto-Lei de 28 de Maio de 1960, adaptando-o às ‘condições’ dos territórios ultramarinos. Destas salientam-se : a) a criação da classe preparatória do ensino primário, com vista à divulgação e generalização prática, entre as crianças que se aproximavam da idade escolar, do uso corrente da língua portuguesa, nas relações sociais quotidianas ; b) o estabelecimento da frequência obrigatória da escola primária até à aprovação no exame final, da quarta classe, ou até perfazerem doze anos ; c) a obrigatoriedade de, em certas disciplinas, como Língua Portuguesa, Aritmética e Geometria, Ciências Geográfico-Naturais, História, etc., a nomenclatura ou terminologia a adoptar ser apenas a dos programas oficialmente aprovados, por despacho ministerial ; d) a obrigatoriedade de os livros de didácticos para uso dos professores, oficialmente editados em Angola, e em utilização no ensino rural, serem considerados ‘livros únicos’ para o ensino primário em todas as províncias ultramarinas portuguesas, sendo excluídos quaisquer outros.

O ensino da portugalidade

Analise-se o programa do ensino primário que foi anexado à Portaria de 19 de Fevereiro de 1964. Destacar-se-á apenas algumas das dimensões de maior relevância do leque de disciplinas que compõe o ensino primário. A disciplina de Ciências Geográficos-Naturais, para além de constituir um importante veículo de aprendizagem da língua portuguesa , afirma-se também como um meio, através do qual o mundo natural e envolvente passa a ser enunciado segundo a autoridade colonial. É dada assim prioridade, por exemplo, aos temas do corpo e vestuário (nome das partes do corpo ; prática da higiene do corpo ; peças do vestuário ; uso e higiene do vestuário ; acção da água e do sabão nas limpezas), aos tipos de habitação, às plantas de cultivo agrícola, a sistemas de adubação e rega, aos ofícios e profissões, aos fenómenos naturais, assim como à organização da Nação, por forma a incutir uma « Ideia elementar da vida regional e nacional com referência às respectivas autoridades » e a noção de « Portugal, nação pluricontinental », nos seus aspectos populacionais, demográficos, orográficos, administrativos, etc.

Fonte : « Iniciação à leitura. Caderno n.º 1. Portugal. Governo Geral de Angola. 1962. Pág. 13.

O objectivo fulcral será o de : « Ao ensinar a geografia de Portugal, o professor terá sempre presente a intenção de dar às crianças a consciência da unidade portuguesa, uma unidade intercontinental e interoceânica. O estudo paralelo da história pátria ajudará a compreender melhor o sentido real e profundo desta unidade » (Programa do Ensino Primário Ultramarino, 1964). O ensino da língua portuguesa ganha um protagonismo ímpar. Recorde-se que, de acordo com Conceição Neto, a questão da língua portuguesa como instrumento de ‘nacionalização’ e de ‘portugalidade’ só se colocou, de facto, no século XX. Em concordância com Barbeitos (2008), a autora refere que, embora fosse importante nas relações diplomáticas, enquanto veículo de diferenciação e afirmação social de grupos frequentemente bilingues, « não são poucas as queixas nos séculos dezoito e dezanove sobre o ‘mau hábito’ de, mesmo entre os portugueses da capital, se falar mais kimbundu do que português no universo doméstico, sendo ‘muito indecente, que as Famílias nobres, e brancas conservem nas suas casas, e na criação dos seus Filhos uma total ignorancia da referida Lingoa [portuguesa], privando-os na sua educação do aproveitamento que podia conduzir-lhes a Lição de bons Livros, para haverem de substitui-la com a Lingua Ambunda, só necessária no sertão’ » (Neto, 1997 : 338 [Documento de 9 de Janeiro de 1765, do governador Sousa Coutinho, in COUTO 1972, p. 65]). Recorde-se, igualmente, que o Kimbundu e o Umbundu desempenhavam o papel de língua franca no comércio. E refira-se que, em 1556, foi impresso para fins evangélicos um manual bilingue (em Kikongo e Português), da autoria do Frei Gaspar da Conceição. Foi significativo o leque de obras bilingues. Em 1624, é divulgada a Cartilha da Doutrina Cristã do Pe. Marcos Jorge, escrita em Kikongo. Em 1642 é impresso, em Luanda, o primeiro catecismo bilingue, em Português e Kimbundu ‘Gentio de Angola Suficientemente Instruído’. Em 1659, é editada em Roma uma gramática, com vocabulário da língua Kikongo, da autoria do Frei Jacinto Vetralha. Em 1697, é editada a primeira gramática em Kimbundu, ‘A arte da língua de Nagola’, da autoria do Pe. Pedro Dias. Já o ‘Ensaio de Diccionário Kinbundu-Portuguez’, preparado por Joaquim Dias Cordeiro da Matta, foi impresso publicado, em Lisboa, no ano de 1893. Na verdade, só a partir de 1921, com a proibição do ensino em línguas bantu , a disseminação e imposição da língua portuguesa se torna num estandarte da política colonial. Vejamos excertos desse texto. « Artº 1 ; ponto 3 : É obrigatório em qualquer missão o ensino da Língua Portuguesa ; ponto 4 : É vedado o ensino de qualquer língua estrangeira. Artº 2 : Não é permitido ensinar nas escolas de missões línguas indígenas. Artº 3 : O uso de língua indígena só é permitido em linguagem falada na catequese e, como auxiliar, no período do ensino elementar da Língua Portuguesa. Parágrafo 1º : É vedado na catequese das missões, nas escolas e em quaisquer relações com indígenas o emprego das línguas indígenas, por escrito ou falada de outras línguas que não seja o português, por meio dos folhetos, jornais, folhas avulsas e quaisquer manuscritos. Parágrafo 2º : Os livros de ensino religioso não são permitidos noutra língua que não seja o português, podendo ser acompanhado do texto de uma versão paralela em língua indígena. Parágrafo 3º : O emprego da língua falada a que se refere o corpo deste artigo e o da versão em língua indígena, nos termos do parágrafo anterior, só são permitidos transitoriamente e enquanto se não generalizar entre os indígenas o conhecimento da Língua Portuguesa, cabendo aos missionários substituir sucessivamente e o mais possível em todas as relações com os indígenas e na catequese as línguas indígenas pela Língua Portuguesa. Artº 4 : As disposições dos dois artigos antecedentes não impedem os trabalhos linguísticos ou quaisquer outros de investigações científicas, reservando-se porém ao governo o direito de proibir a sua circulação quando, mediante inquérito administrativo, se reconhecer que ela pode prejudicar a ordem pública e a liberdade ou a segurança dos ‘cidadãos’ e das populações indígenas ». Assim, ao exigir « o abandono da sua prática como condição prévia para obter o estatuto de ‘cidadão civilizado’, essas línguas foram marginalizadas no desenvolvimento social e marcadas com o selo da inferioridade. Isso explica a opção pelo português como primeira língua (e depois como única língua) em alguns grupos sociais urbanos. Mas não esqueçamos que até 1975, mais de 70% da população de Angola era rural e a ocupação portuguesa na maior parte das regiões tinha durado menos de cem anos » (Neto, 1997 : 338). No que diz, pois, respeito à disciplina de ‘Língua Nacional’, a aprendizagem do português era, ainda, servida por uma multiplicidade de técnicas de ensino que passavam pelo treino intensivo da oralidade quotidiana, pela correcção constante da pronúncia, por exercícios de ortografia e da caligrafia oficial, pelo aperfeiçoamento da expressão oral em língua portuguesa e por exercícios diários para a correcção de « vícios de construção gramatical » : « Já na 1.ª classe (2.º ano) o professor deve exercer cuidadosa vigilância aos erros de prosódia mais frequentes, para os corrigir. Chama-se especial atenção para a supressão de consoantes e supressão dos rr e ss finais (fazê por fazer ; mêmo por mesmo, etc.) troca do l pelo r ou pelo u (animar ou animau por animal) ; supressão do i dos ditongos ei e confusão entre o timbre do e tónico aberto e o e tónico fechado (dinhêro por dinheiro, sête por sete, fés por fez, etc.) ; erros de concordância (eu vi os macaco, o galinha morreu) ; erros de construção (ir na escola) (ir em casa) (o leão atacou-lhe, etc.) ; pronúncia errada do e mudo medial (minino por menino) ; errada pronúncia da soma dos dois aa, um terminal e outro inicial, ambos fechados num só a aberto e átono (iapanhar, em vez de iàpanhar), falta de abertura do a átono precedendo a sílaba tónica (translação em vez de translàção, etc) ; má pronúncia dos vários timbres do a e do o, etc. É muito importante que não se permita aos alunos a radicação destes erros, para que não entrem no hábito da língua corrente » (Programa do Ensino Primário Ultramarino, 1964). Era também recomendado que estas estratégias fossem implementadas através, por exemplo, da recitação de poesias de sentido patriótico ou pela « Narração, pelo professor, de histórias pequeninas, atraentes e instrutivas, seguidas da interpretação oral pelos alunos, versando, quanto possível, procedimentos e hábitos a incutir nos alunos, sobretudo de higiene, de trabalho e de amor à Pátria Portuguesa » e também por contos da tradição local, dando-se realce ao seu aproveitamento educativo. A presença das línguas africanas foi sendo, assim, combatida, pese embora, como referido as práticas bilingues dos séculos anteriores e pese embora as resistências que a disseminação e imposição do português suscitou. Um dos exemplos maiores a este respeito é o trabalho de Cordeiro da Matta. Nascido em 1857, Joaquim Dias Cordeiro da Matta foi autor das mais relevantes obras durante o período de liberalismo constitucional, tais como Ensaio de Dicionário de Kimbundo-Portuguez, Philosophia Popular em Provérbios Angolenses e a Cartilha Racional para se Aprender a Ler o Kimbundo. Publicada em 1892, esta última constituiu um apelo forte e explícito à aprendizagem do Kimbundu. No prefácio, considerado por Mário Pinto de Andrade como a magna carta do Kimbundu, Cordeiro da Matta propõe : « Rimatekenu. Akua’xi. O karivulu aka kosónêke mu kimbundu, pela ambundu (ana’ngola) kuijiia kutânga ni kosonêka mu rimi riia, ô mu kabâsa ka. O mutu pala kuijiia o kutânga ni kusôneka u binga a mu long’ela mu rimi riiê, ka mu long’ela mu rimi rieng’i, iene i ban’esa kiki o mutu anga mu lon’ela mu rimi rieng’i, kejiiê malusôlo, mukônda o maka moso ma mu longa ka mejiiê, ka mevuê. Üoso kana kejiiê o rimi riiê, o ri a makuâ anga a mu longo náriu kiambote, ka rijiiê uê kiambote. Ivenu, Ivenu, Akua’xi iami ! Se muandâla an’enu arimúka ni ejiiê o mikanda, ni akale atu, pala kizúa kuabanga mbote o ixi ietu, tuabing’i tualong’ela mu rimi rietu ; o rimi riazuelêle o jikúku jetu. Ndokuenu ! Tualong’ienu ! ejiiê ! akâle atu ! Mutu anga kana kejiê kima u rufangana pang’e a kiama : kikurisa o mutu o kuijiiia ; o kuijia kima kionêne ; uoso kejjiê kima a mutobêsa, a mubanga kixenênu. Rilong’ienu o Kutânga kiambote, ana’Ngola Kiluanji ki a Samba ! Tang’enu : tang’enu ! O karivúlu aka kosónêke ni muanhu uoso kua makua makua’xi ienu, u a mizola kiavúlu, ni henda ioso ia muxima uê kizua ki muijiia o kutânga ni kusonêka kiambote mu rimi rietu, kiene ki muijiia kuma mukua’xi ienu ki jiriliê kiavúlu, maji u a kalakalêle pala mbote ienu ». « Prefácio. Este livrinho é escrito em quimbundo, para os negros (filhos de Angola) aprenderem a ler e escrever na sua língua e no seu ambiente. A pessoa para saber ler e escrever precisa de ser ensinada na própria língua e não em língua estranha ; por isso é que aquele que é ensinado em língua estrangeira e não na própria língua não aprende rapidamente porque as falas que lhe ensinam não as conhece nem as ouve ; não as compreende. Aquele que desconhece a sua língua não consegue compreender a língua estranha, ainda que bem ensinada porque nada lhe diz. Escutai, escutai homens da minha terra ! Se quereis que vossos filhos se instruam e aprendam a ler, sejam gente para amanhã engrandecerem a nossa terra, há que lhes ensinar a nossa língua ; a língua dos nossos antepassados. Vamos ! Ensinemo-los ! Para que aprendam ! Para que sejam homens ! O indivíduo ignorante assemelha-se ao irracional ; o que engrandece o homem é o saber ; o Saber é um valor especial ; o Ignorante é facilmente ludibriado ; faz-se dele um autómato. Aprendei a ler correctamente filhos de Ngola Kiluanji ki a Samba ! Lêde ! Lêde ! Este livrinho é escrito com todo o amor do vosso compatriota, que vos estima do coração ; quando souberdes ler e escrever bem a nossa língua, entenderei que este vosso compatriota não era um sábio, mas trabalhou para o vosso bem » (cit in Zau, s/d : 149).

Veja-se agora com maior detalhe o programa da disciplina de História. Este apresenta uma selecção textos que deveriam ser incluídos no livro de leitura. Estes ilustravam os momentos canónicos da história oficial do Portugal europeu e do Portugal descobridor tais como « Viriato : Vida dos Lusitanos e suas lutas com os Romanos invasores », « Egas Moniz : O educador do rei ; serviços prestados ao rei e à Pátria ; o seu acto de lealdade », « O Castelo de Guimarães : Símbolo da fundação de Portugal », « Santo António de Lisboa : Breves notas sobre a sua vida e o seu culto », « Rainha Santa Isabel : Traços mais salientes da sua acção », « Nuno Álvares Pereira : Sentido patriótico da sua actuação ; sua vida de monge ; o culto tradicional oficializado », « Infante D. Henrique : Os Descobrimentos. Sagres », « Vasco da Gama : Importância da primeira viagem à Índia por mar, para Portugal e para o Mundo », « Pedro Álvares Cabral : O descobrimento do Brasil », « Afonso de Albuquerque : Acção na Índia ; prestígio de Portugal no Oriente », « 1.º de Dezembro de 1640 : A Restauração. A nova dinastia portuguesa », « O terramoto de 1755 : A reconstrução de Lisboa », « Portugal em África : As grandes viagens de exploração », « A unidade portuguesa no Mundo de hoje : D. Aleixo Corte Real ; Aniceto do Rosário (muitas raças - uma só nação) ». O peso da história metropolitana é absoluto. No ensino da quarta classe (ou quinto ano, contando com o primeiro ano preparatório), o programa da disciplina incide sobre a Lusitânia, a resistência face às invasões romanas, o papel de Viriato, a romanização e cristianização da Península Ibérica, as invasões de Suevos, Visigodos e Mouros, o Condado Portucalense, a fundação do reino e a conferência de Zamora, a Reconquista, a organização do reino, as dinastias, políticas de desenvolvimento do reino, a expansão além-mar , a obra evangelizadora, a literatura, arte e ciência , a Restauração, as invasões francesas, o « reino unido de Portugal e Brasil », o liberalismo, « Portugal em África », a República, a I Guerra Mundial, o 28 de Maio e o Estado Novo Corporativo, a organização política e administrativa da Nação, e, naturalmente, os símbolos da Pátria. De facto, a importância do ensino da história nas tentativas de conversão e domesticação dos sujeitos colonizados é fundamental : « O ensino da história na escola primária destina-se a consolidar o natural sentimento de patriotismo, dando-lhe forma consciente e esclarecida. O amor da Pátria não pode ser considerado como uma consequência lógica do conhecimento do passado (podemos admirar entre todos o povo romano, e nem por isso teremos um patriotismo romano), mas sim como uma relação natural do indivíduo ao meio a que pertence, muito mais semelhante ao amor dos filhos pelos pais do que à admiração do aluno pelo mestre ou do leitor pelo escritor preferido, e sobretudo extremamente distante da fria conclusão de um raciocínio. Mas o estudo da história aprofunda o conhecimento do presente e, nos nossos antepassados, mostra-nos quem somos. Não se trata de dizer aos alunos que a história de Portugal é uma série ininterrupta de acções gloriosas ; que tudo no passado português foi exemplar. Mas é perfeitamente lícito escolher, para objecto de um ensino eminentemente formativo (como é o ensino primário), alguns dos momentos mais belos e dignificantes da nossa história. Da abundância destes dá testemunho a dificuldade que tem de vencer quem se proponha organizar os programas da 3.ª e 4.ª classes. Na escola primária, portanto, a história será a ‘mestra do futuro’ e ajudará a definir as grandes linhas da presença portuguesa intercontinental e pluri-racial no mundo contemporâneo, e assim, sem nada perder do seu carácter de sentimento vivo, o patriotismo será uma consciência clara » (Programa do Ensino Primário Ultramarino, 1964).

Fonte : Livro de Leituras para a 4ª Classe, « Portugal no Mundo » Portugal. Província de Moçambique. 1966. Pág. 56.

Para além de ser evidentemente monumental, o ensino da história é conforme à conceptualização da ciência positiva que vigorava. Argumenta o programa : « Não se deve exigir de crianças da escola primária a memorização fatigante de inúmeras datas. Algumas são, no entanto, indispensáveis, quer pelo seu carácter bem vincado e significativo (14 de Agosto de 1385, 1 de Dezembro de 1640), quer pelo contributo que podem dar para a visão ordenada dos acontecimentos (1415, 1434, 1498 são datas que se atraem e suportam umas às outras). Tenha-se, no entanto, em conta, mesmo em relação a alguns destes casos, que é muito frequente a dificuldade psicológica de decorar datas. O que é absolutamente indispensável é a correlação cronológica dos principais factos e personagens (por exemplo : Viriato, Pelágio, Conde D. Henrique) ; em história a ordem das coisas no tempo não se pode considerar secundária. Cabe ao professor determinar em cada caso a melhor utilização das datas históricas para conseguir esse objectivo » (Programa do Ensino Primário Ultramarino, 1964). Muito especialmente no que diz respeito ao conhecimento produzido pelo colonialismo, Mwembu expressa o seguinte : « Colonial history is a history of whites in Africa insofar as it focuses on the deeds and activities of the colonizers and leaves in the shadows the contribution of those being colonized to the birth and development of the colonial enterprise » (2005 : 440). E, de facto, história e portugalidade constituíam, assim, entre si um elo fundamental. Definida a portugalidade como « sinónimo de civilizar, de elevar e dignificar o homem. Elevar os povos atrasados ao nível do ser humano ; e dignificá-los de seguida, conferindo-lhes a categoria de cidadãos livres no seio uma Pátria » (Pinheiro da Silva, 2010 : 86), a história, monumental e imperial, exercia um papel fundamental. O ensino da « História Pátria » implica, assim, o ensino dos « eventos principais que no dobrar dos séculos imprimiram a sua marca ao Povo Português, pretende-se, com a disciplina de Formação Portuguesa, transmitir a compreensão do papel que ele desempenha no Mundo e a sua contribuição para o progresso da civilização na qual se integra e na cultura de tipo universalista que vai plasmando, tanto de espírito humanista como científico. Inculcará ainda a ‘portugalidade’, o orgulho – que deverão por seu turno espalhar entre os discípulos – de fazerem parte de uma comunidade em constante elaboração e que tem por escopo fundamental imprimir nas diversas etnias que compõem a Nação, a universalidade do seu espírito. (…) Pretende-se ainda, e finalmente, que o professor apresente a realidade da existência de um só fio condutor, através dos tempos, na formação do destino para que tendem os Portugueses na sua caminhada para a região indeterminada do ideal primeiro, intuído ou enraizar na mescla de raças de que se formaram quando se amalgamaram os vários elementos num só metal, dotado de uma única e mesma mística, onde a violência não coube nem cabe por se ter transmutado em energia » (Programa da disciplina de Formação Portuguesa do currículo das Escolas de Habilitação de Posto Escolar, 1966/67, cit in Pinheiro da Silva : 86-87). Uma outra componente disciplinar que foi encarada pelas autoridades coloniais como sendo indispensável para a formação civilizatória do sujeito colonizado é a disciplina de Educação Social e Cívica. Esta tinha por magno objectivo « integrar os alunos na vida social, formação pela prática, de hábitos », nomeadamente de asseio, de ordem, de educação, de disciplina e obediência, de respeito às autoridades e à Pátria. Através desta, era dado a conhecer aos alunos a organização hierárquica das autoridades administrativas locais (na povoação, na regedoria, no posto e no concelho), noções sobre a organização nacional e a hierarquia das autoridades e era realizado o « combate insistente à superstição e ao feiticismo ». Por ela, procurava-se, igualmente, inculcar a ideia da existência de um « Estado protector » e o refrão de « Portugal, nação pluriracial e pluricontinental » (Programa do Ensino Primário Ultramarino, 1964). Germana da disciplina de Educação Social e Cívica, a disciplina de Moral e Religião centrava-se especificamente no desenhar de distinções insuperáveis entre o bem e o mal, a redenção e a danação a que se é condenado pela « gravidade da desobediência aos preceitos divinos », e entre o justo e o errado, através da narrativa bíblica e da encenação cuidada dos seus principais momentos (as orações, a Sagrada Família, o Natal, a Páscoa, etc). É dada especial atenção ao carácter cristão de Portugal, recomendando o programa o ensino sobre tópicos como « a conversão dos povos da Península ao cristianismo », « Portugal nasce cristão », « Santos portugueses mais notáveis », « Os nossos deveres de solidariedade cívica e cristã : deveres para com a Pátria e para com as autoridades » (Programa do Ensino Primário Ultramarino, 1964). Constroí-se, assim, uma essência mitologizada da identidade do colonizador. O uso ideológico da educação para a conversão à portugalidade vem, pois, perverter por completo o suposto rigor científico do ensino, nomeadamente histórico, recheando-o de referências a um nacionalismo celebratório e mitologizado. O ensino colonial recorre, então, duplamente ao ahistoricismo, atribuindo, por um lado, uma qualidade ahistórica ao colonizado e constituindo-se, por outro, como uma espécie de história monumental (Bhabha, 2004 ; Nietzsche, 2004) para se descrever a si próprio. Em harmonia com o ministrado em Educação Social e Cívica, a disciplina de Moral e Religião almejava também o seguinte : « No 2.º ano deverá o professor começar a lutar, serena, firme e constantemente, não apenas contra os vícios e defeitos mais comuns e graves, como a preguiça, a mentira, o roubo e o alcoolismo, mas sobretudo, ainda, contra a superstição e o feiticismo, filhos da ignorância, que causam tanta ruína física e moral às populações dos nossos meios rurais. À escola e ao professor compete um lugar de destaque neste combate ao obscurantismo, que conduz o homem à mais baixa condição animal. O ensino de todas as disciplinas deve prestar-se a esta obra de moralização » (Programa do Ensino Primário Ultramarino, 1964). Por esta via, o ensino colonial transforma-se em tecnologia de epistemicídio na terminologia de Santos. Superstição e feiticismo são, então, as classificações dadas a práticas e saberes que se encontram do outro lado da linha abissal. A mesma crítica era veiculada pelo MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola : « A análise dos planos de estudo, dos programas e dos manuais de ensino mostra que estes pouco ou nada transmitiam sobre a realidade angolana ou africana, mas sim, quase que exclusivamente, sobre Portugal e a Europa. Nas missões católicas e protestantes só o catecismo era ensinado nas línguas africanas de Angola. A escola apresentava uma dimensão totalmente estrangeira para a grande maioria dos angolanos e como instrumento de identidade serviu, essencialmente, os interesses coloniais » (MPLA, 1978 : 41). Segundo Mazula : « a política educativa do Governo Colonial Português e a sua posição, frente à cultura do colonizado, reflectiam todas essas teorias, para justificar a sua presença na colónia. Então, as ‘sociedades tradicionais’, de ‘raças inferiores’, tinham apenas ‘usos e costumes’ situados no presente, sem memória do passado nem perspectiva de futuro, porque sociedades ágrafas. Negava-se-lhes qualquer dimensão histórica dos seus valores, das suas culturas ; e o próprio ‘indígena’ foi considerado ‘a-histórico’ (…). A dimensão cultural do ensino passava pela desnaturalização do indígena, negando-lhe os seus próprios valores culturais, o seu saber, e cerceando, pela raiz, o desenvolvimento natural do seu saber-fazer, considerados ‘selvagens’. Silva Rego, missionário português, antropólogo e consultor do Governo Por¬tuguês Central, ao analisar a ‘falência’ das práticas educativas das massas indí¬genas por parte das estruturas ‘mais directamente coloniais’, propunha, nos anos 60/70, que a revitalização da acção civilizadora portuguesa não poderia limitar-se a ‘imposições de carácter ético e jurídico’, mas devia ser de carácter epistemológico. (…) A finalidade era provo¬car o abandono do conceito tradicional de comunidade, substituindo-o pelo con¬ceito de comunidade portuguesa, no qual o africano devia sentir-se integrado (GALLO, 1988 : 78), o que correspondia a retirá-lo do seu universo cultural e do mundo da vida - este o significado de ‘destribalizar -, para o integrar no espaço português » (1995 : s/pag). Globalmente, a disciplina pretendia : « procurar que as crianças ganhem consciência dos seus deveres cívicos. Todos os dias deve fazer-se a saudação à bandeira portuguesa e cantar-se, com o máximo respeito, o hino nacional, em cerimónias simples, mas que convém sejam conduzidas de molde a despertarem o necessário estado emocional para que os alunos sintam o ‘acto’ com intensidade. A ideia da Pátria Portuguesa que a bandeira simboliza deve cimentar-se e crescer na mente das crianças das escolas normalmente, suavemente, sem quaisquer exageros artificiais e perniciosos. Temos uma bela história para lhes contar, a história de uma nação que descobriu novos mundos ao mundo, espalhando-se por todos os continentes e misturando-se com todas as raças sem quaisquer preconceitos e sem outros intuitos senão os de proteger, de dar as mãos e de caminhar com os seus irmãos em Cristo, arrancando-os do primitivismo do seu viver para a luz da Fé e da civilização » (Programa do Ensino Primário Ultramarino, 1964). É por demais evidente a conjugação harmoniosa pretendida entre o leque curricular do ensino colonial, onde os conteúdos programáticos determinados veiculam a noção de uma ‘portugalidade’ que, embora seja pluri-continental e pluri-racial, redunda numa monocultura (branca e metropolitana) que se reclama de universalidade. Ao leque curricular discutido, juntava-se, ainda, a disciplina de Educação Física, orientada pelo Manual de Ginástica Infantil e pelo Manual de Jogos, da Organização Nacional da Mocidade Portuguesa. Refira-se que a Mocidade Portuguesa, criada na metrópole em 1936, estabeleceu-se em Angola em 1939 e desempenhou um papel significativo na estratégia educativa colonial. A este nível, salientem-se os cursos de portugalidade, destinados a filiados com o 3º ciclo liceal ou habilitações equivalentes, assim como os chamados Centros Extra-Escolares destinados a jovens não escolares e « menos evoluídos ». Evoque-se também a experiência dos chamados cursos de lusotropicologia, analisados por Neto (1997). A Mocidade era também responsável pelos Centros de Milícia que, em Luanda, Sá da Bandeira, Nova Lisboa e Lobito. Estes facultavam preparação pré-militar aos filiados com mais de 18 anos, os quais, obtendo aproveitamento nos três ciclos de instrução, seriam dispensados do primeiro ano dos cursos de oficiais e sargentos milicianos. A acção da Mocidade Portuguesa em Angola foi fortemente apoiada pelo Estado, havendo de 1964 a 1967 um aumento constante da dotação do Orçamento de Estado. Destaque também para o movimento AFRIS – Movimento de Auxílio Familiar, Religioso e de Instrução Social, composto por leigos católicos que actuavam em prol da evangelização e progresso das populações nativas, nomeadamente através da introdução de alfaiatarias nas aldeias, na promoção da mulher por via do ensino da costura e da puericultura. Por fim, uma breve menção à disciplina de Educação Musical. Também com ela se pretendia inculcar noções de patriotismo e de história canónica, através, por exemplo, do ensino do hino nacional, tendo sido vivamente recomendadas « as canções de sentido patriótico », as quais « devem ser executados com perfeição, devendo o professor ter o cuidado de salientar o seu especial significado e de promover que entrem no entendimento e no coração dos alunos ».

Fonte : Livro de Leituras para a 4ª Classe, « Portugal no Mundo ». Portugal. Província de Moçambique. 1966. Pág. 162.

Nela também se reforçava a língua portuguesa, pois « Onde encontrar-se melhor oportunidade para corrigir erros fonéticos e gramaticais do que por ocasião das sessões de canto coral ? É que todos os sons e todas as sílabas têm de ser correctamente emitidos, se se deseja alcançar harmonia e sonoridade perfeitas ». E por esta via – numa evidente expressão de racismo : « No ultramar, o nativo é de uma sensibilidade extraordinária ao ritmo, que nasce com ele e nele exerce um fascínio enorme. Daí a necessidade de aproveitar estas qualidades não só para uma conveniente educação musical, como também para as usar na sua alfabetização e socialização » (Programa do Ensino Primário Ultramarino, 1964). Dez anos depois do início da ‘Batalha pelo ensino’, é feito o seguinte balanço das políticas coloniais de instrução e educação : « Impunha-se a ‘escolarização’ da Província, criando a rede de estabelecimentos de ensino capaz de dar satisfação ao problema da alfabetização das massas. (…) E os agentes do ensino… esses também se ‘fizeram’ em cursos intensivos, dando-se-lhes a designação de monitores escolares. E não se diga mal dessa ideia ‘redentora’…. E não se diga mal desses heróicos pioneiros ‘bandeirantes’ da alfabetização ; porque só eles (e mais ninguém !) estavam em condições de levar a escola à sanzala, penetrando e vivendo no interior do mato, a ensinar (…) as crianças que esperavam pela luz da instrução. Já decorreram 10 anos. (…) Mas, volvidos 10 anos… que diferença entre o ‘mato’ de antes, sem escolas, e o ‘mato’ de hoje ligado pela ‘nervura’ de uma rede escolar que, com todas as deficiências que apresenta, tem produzido os seus frutos, alguns dos quais se podem qualificar de maravilhosos !... E que dizer quanto ao ‘aportuguesamento’ das massas no que tange ao uso da Língua Portuguesa, condição ‘sine qua non’ para a consolidação de uma verdadeira consciência nacional ? Que se pronuncie quem andava, dantes, pelo ‘mato’ e o percorre hoje de lés-a-lés, ouvindo as crianças em idade escolar a falar português. Português ‘estropiado’ ? Sim, e nem admira. Mas ‘português’ que se compreende » (Morão Correia, « Monitores Escolares ». Artigo publicado no Jornal da Huíla a 1 de Março de 1973).

Desarticulações coloniais

Como observado, a temática da subalternidade, conceptualizada em G. Spivak (1985 ; 1999) como impossibilidade e negação de se ser um Outro para além do Outro do sujeito colonizador, o que, implicitamente, o condena à impossibilidade de exercer alguma forma de resistência efectiva e transformadora, é contrabalançada pelas análises de Bhabha (2004) e Santos (2006). Perfilhando as análises destes últimos, o enfoque nas desarticulações que a autoridade colonial foi sofrendo, constitui aqui uma estratégia de ampliação do real, pois nelas é-se confrontado com forças de resistência que se traduzem na desestabilização e na crítica ao poder colonial e à sua história imperial, e com forças alternativas de teorização que motivam o estabelecimento de uma relação epistemológica entre história e memória.

O domínio colonial português, caracterizado pelo seu carácter semi-periférico e subalterno, foi sendo, na realidade, objecto de múltiplas desarticulações. Em Entre Próspero e Caliban : colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade, Santos (2006), partindo do argumento central, segundo o qual o facto de Portugal ser um país semi-periférico no sistema mundial capitalista desde o século XVII foi sendo reproduzido com base no seu sistema colonial, demonstra a dupla condição que marca o colonialismo português : a semi-perifericidade e a subalternidade. A condição semiperiférica de Portugal é caracterizada, sumariamente, por um desenvolvimento económico intermédio, acompanhado pela posição de intermediação entre centro e periferia no seio da economia mundo (Santos, 1993). Ambos os factores condicionam um desenvolvimento específico do Estado, pelo qual este não assume as funções que os países centrais garantem. Esta dupla condição de semi-periferia e de subalternidade traduziu-se na edificação de um sistema colonial em que os evidentes défices de colonização (de acordo com os critérios dos países centrais) são acompanhados, a partir do século XVIII, por um excesso de colonização, pelo qual as colónias portuguesas eram indirectamente submetidas à colonização por parte dos países centrais de quem Portugal era dependente. A consciência destas fragilidades foi sendo denunciada quer pelos sujeitos coloniais, quer pelos próprios colonos (cf., Wheeler e Pélissier 2009). Em « Angola. Cinco Séculos de Exploração Portuguesa », editado nos anos de 1960, o angolano Américo Boavida (1981) classificava Portugal de potência colonial subdesenvolvida e dependente do capital internacional. Na sua óptica os perigos da colonização não advinham, por isso, de Portugal, mas do capitalismo internacional. De facto, para o autor, « Portugal, que não lançou ainda as bases de uma industrialização planificada, mantém as estruturas económicas de um país subdesenvolvido, cujo equilíbrio orçamental assenta no parasitismo colonial sui generis e completamente oposto àquele de uma economia imperialista » (1981 : 76), explicando ainda que « As contradições do sistema capitalista, ao colocar o território angolano no centro de uma controvérsia à escala do mundo ocidental, agravaram as relações colonialistas existentes entre a administração portuguesa e o anseio natural de independência económica-social do povo angolano. O governo português, obrigado a endurecer a opressão do seu sistema de exploração colonial em Angola, procura satisfazer o aptetite insaciável das potências imperialistas que partilham colectivamente das riquezas do subsolo angolano. E debate-se, impotente, ante as reivindicações de todas as classes oprimidas (…) que constituem o elemento sobre que assenta todo o sistema escravagista português, e toda a estrutura do neocolonialismo colectivo das potências imperialistas em Angola » (1981 : 53). Embora procurando a sua afirmação incontestável, a autoridade colonial nunca foi absoluta, sendo, antes pelo contrário, objecto constante de interpelações colocadas pelos sujeitos colonizados que, pela via do desafio, do confronto, do ridículo, do simulacro, da mimese, etc. (Bhabha, 2004), a desarticulavam e a lançavam na espiral paranoíde da incerteza, da ambivalência, da hesitação, o que, por seu turno, obrigava a uma actualização constante dos seus regimes de diferenciação, classificação e discriminação social no intuito de captar, através das suas práticas representacionais e políticas, sujeitos que escapavam a essas mesmas práticas. Mesmo antes do estabelecimento do domínio colonial sobre os territórios, a presença portuguesa não deixou de ser exposta ao ridículo pelas suas pretensões. Todavia esta ridicularização da presença portuguesa tende a ser marginal quando comparada com as descrições que pretendem atestar a aceitação inquestionada daquela. Assim, por exemplo, se a atenção se focar na descrição que Duarte Pacheco faz dos primeiros contactos dos portugueses com o rei do Kongo, a imagem veiculada é sobretudo uma imagem de gáudio : « ‘e vendo o Manicongo e os fidalgos e outra gente a missa e todo o outro oficio divino, foram muito contentes, e logo ele com seus fidalgos e outros homens principais se baptizaram e fizeram cristãos, e não quis que outrem o fosse, dizendo que tão santa coisa e tão boa não devia ser dada a nenhum vilão ; somente lhe foi grave deixar de ter muitas mulheres, como sempre tiveram, e disto os não poderam mudar’ » (apud Amaral, 1996 : 50). Do outro lado do espelho, a presença portuguesa conhece a ridicularização. Ilídio do Amaral narra o envio de emissários ao reino do Kongo, por volta de 1516, e a entrega ao Manicongo, D. Afonso I, das oferendas vindas de Portugal, contando-se entre elas os cinco livros das Ordenações do Reino : « o rei congolês ‘leu todos’, conforme Baltasar de Castro contaria a Damião de Góis depois do seu regresso a Lisboa. Perante a impossibilidade de as adoptar no seu reino, tantas eram as particularidades de cada lei, ordenação, artigo, cláusula, etc., e do seu modo de aplicação, D. Afonso I teria feito o seguinte comentário : ‘Castro, em Portugal que pena se dá a quem põe os pés no chão ?’ » (1996 : 76). Em A Província de Angola. Alvitres para o seu desenvolvimento económico, a já citada obra do capitão de infantaria Lobo da Costa, são vários os episódios narrados que ilustram estas formas de desarticulação da autoridade colonial. Talvez um dos mais significativos seja quando o autor interrogou um ‘gentio’ acerca da sua atitude displicente face à administração colonial : « Como exemplo, citaremos o facto de um gentio, vassalo do falecido soba Hongo, na Lunda, alcunhar, em certa ocasião, o governo portuguez de mulher, comparando-o ao vizinho governo belga, a quem chamava homem. E, perguntado sobre a razão por que assim nos classificava, respondeu nos seguintes termos, salvo o realismo da phrase, que não podemos reproduzir : - Porque elle dá pancada, e você não ! » (1911 : 10). Tais desarticulações foram povoando, de múltiplos modos, a relação colonial. A década de 1880, por exemplo, assistiu à proliferação de vários periódicos em Angola , muitos deles fruto da iniciativa de gente nascida em Angola e que, assim, expressava o seu desagrado perante os abusos da autoridade colonial. O nome de Cordeiro da Matta poderá ser evocado novamente a este propósito, assim como os de Assis Júnior (1887-1960) e José de Fontes Pereira (1823-1891). Advogado de formação, mas também jornalista e escritor, Assis Júnior constitui uma das referências maiores da consciência nacionalista angolana, tendo sido, inclusivamente acusado de ser um dos mentores do Movimento Nativista de 1917 . Assis Júnior ganhou protagonismo ao desempenhar o cargo de procurador judicial em Golungo Alto, onde representava proprietários negros que se opunham ao trabalho forçado e à confiscação das suas terras – oposição esta que ficou conhecida como a Revolta de Catete de 1921. Banido pelas autoridades coloniais para o interior de Angola, sob acusação de conspiração, Assis Júnior dedicou-se à escrita, com a qual « struggled to find the legitimacy of his African roots, while at the same time speaking to an incresingly white-dominated society. The myth of colonial benevolence was explicitly challenged, and the alleged barbarity of African custom was unravelled and explained in psychological terms. The importance of dreams, the symbolism of animals, the therapeutic role of funerals, the place of shrines and pilgrimages in a multi-cultural community, all were portrayed. Assis was a pioneer in leading the Angolan creoles back from a colonial identity to an African one » (Birmingham, 1992 : 13). Nos primeiros anos do século XX, surgem apelos para a organização de escolas nocturas e centros de formação para defesa dos direitos dos africanos. Embora tenham tido pouco sucesso, deles emerge, por exemplo, em 1909, a Associação de Beneficiência Pública para auxílio aos pobres, fornecimento de cuidados médicos, e, inclusivamente, para prestar apoio ao repatriamento de colonos indigentes. Em 1911, A. J. Miranda, funcionário público assimilado, afirma-se como um dos mais importantes promotores da educação africana, ao organizar uma marcha de protesto. Dos seus esforços, resultou a associação ‘Educação do Povo – Socorros Mútuos’. Os movimentos literários terão jogado também um papel de relevo ao enunciar e problematizar a identidade africana, associada ao desenvolvimento e afirmação de uma noção de consciência nacional. A este nível, a obra emblemática, datando de 1901, foi Voz de Angola Clamando no Deserto, Oferecida aos Amigos da Verdade pelos Naturais. Trata-se de uma colectânea de artigos publicados na imprensa luandense entre 1889 e 1901, a maior parte deles escritos por africanos mestiços. Da obra emerge de um profundo sentimento de injustiça da comunidade de velhos assimilados que, na época, começava a ser subjugada e secundarizada por Portugal. Constituindo um apelo à consciência africana contra a presença civilizadora de Portugal, a colectânea criticava fortemente a natureza da ‘civilização portuguesa’, desenvolvendo, em contrapartida, o conceito de ‘falso civilizador’ : a cultura e a economia portuguesas eram consideradas miseráveis e o governo colonial composto por iletrados e mal-educados (apesar das leis esclarecidas emanadas de Lisboa). Outra expressão relevante tomou a forma de um movimento associativo de cariz cívico e cultural, de onde se destaca, a título de exemplo paradimático, a Liga Nacional Africana. A Liga chegou a ser legalizada pelas autoridades coloniais em 1930 no intuito de exercer um controlo mais eficaz da associação e dos seus representantes. Os seus estatutos foram aprovados por Alvará do Governo-Geral n.º 4 de 14 de Julho de 1930 e foram publicados no Boletim Oficial da segunda série n.º 39 de 19 de Julho de 1930. Sendo um dos seus objectivos, a criação de escolas e bibliotecas para instrução literária, moral e profissional de sócios e filhos (art.º 2, al. 1), a Liga ministrava cursos vários. Entre 1966 e 1976, ministrou cursos de instrução primária, diurnos e nocturnos, de admissão aos liceus, de explicação das disciplinas liceais, de dactilografia, de puericultura e enfermagem e de corte, costura e lavores. Apesar da sua actuação ser, nesta altura, bastante limitada e de as autoridades coloniais imporem uma « ‘política de bom comportamento’ », os seus membros buscavam o magno objectivo de « adquirir a cultura e a consciência nacional, armas para futuras lutas » (Rocha, 2003 : 71). Gonçalves (2003) salienta, igualmente, o papel dos movimentos nativistas e messiânicos que, com uma forte implantação em meio rural, exerceram uma profunda influência na oposição ao regime colonial e um relevante papel na formação da consciência nacionalista. De facto, integrando a filosofia do movimento de Kimpa Vita (chefe tradicional da província de Soyo, no noroeste de Angola, do princípio do século XVIII e que deu origem a um movimento proto-nacionalista), desenvolveram-se, durante a primeira metade do século XX, vários movimentos de contestação social e política, como foi o caso do Kimbanguismo, fortemente reprimido pela administração colonial do início dos anos de 1920, como foi também o caso dos matsouanismos e do Mayangi/ Nlevo, nos anos de 19 30, e, por fim, do Tokoísmo, cuja difusão se fez sentir mais tarde, sobretudo a partir dos anos de 1950 (Birmingham, 1992 ; Gonçalves, 2003). Refira-se que, mesmo após o seu desmantelamento no século XIX, a memória do reino do Kongo subsistiu com especial força e, entre as décadas de 1950 e 1960, a mesma foi recuperada e revitalizada como fonte de legitimação e objectivo de várias reivindicações nacionalistas, de cariz messiânico ou não.

Uma outra fonte de desarticulação da autoridade colonial foi criada, em Luanda, em 1950, por um grupo de intelectuais. Trata-se do movimento Vamos Descobrir Angola ! . O movimento inseria-se na corrente cultural que entretanto despontava – ‘Novos Intelectuais de Angola’ – corrente esta que emergia das actividades culturais desenvolvidas pela ANANGOLA – Associação dos Naturais de Angola . Todavia, nem a ANANGOLA, nem a Liga Nacional Africana se apresentavam aos olhos das novas gerações de angolanos como os nichos ideais para o desenvolvimento de aspirações que iam ganhando contornos mais revolucionários : por um lado, a ANANGOLA prosseguia uma política de compromisso para com o poder colonial, e, por outro, a Liga ia assumindo um carácter algo elitista, sendo eminentemente frequentada por aquilo a que Rocha denomina de « aristocracia africana », descendente dos velhos assimilados (2003 : 73). Mário Pinto de Andrade discute criticamente a filosofia prevalecente na Liga Nacional Africana. Ao reportar-se a uma entrevista a José Magalhães, presidente da organização, onde este terá explicitado tal filosofia, Pinto de Andrade concluí que « essa defesa de uma política de ‘cultura e cooperação’ (...) acompanha-se da ilusão sobre o carácter perfectível da administração portuguesa » (1996 : 122). No excerto da entrevista, transcrita por Pinto de Andrade, o presidente da Liga considerava que a « missão que presentemente compete ao povo português é o que faltou fazer a seguir às conquistas : converter os domínios ultramarinos de simples possessões que eles têm sido até agora em verdadeiros prolongamentos da Pátria no sentido espiritual, no sentido da cultura ; de tal forma que Portugal e colónias, em vez de serem um proprietário e as suas terras – que ele explora – constituam um grande ser colectivo, autónomo, política e economicamente, uma pátria maior, onde circula a mesma vida espiritual e a mesma vida económica. Numa palavra, é colonizar, na acepção de civilizar não somente no sentido material, mas no sentido de cultura » (cit in 1996 : 122). Em contraposição, o movimento Vamos descobrir Angola ! recusava a aceitação da cultura portuguesa e, redescobrindo os textos do nacionalismo angolano de 1870 a 1930, esforçava-se por definir o futuro de Angola a partir das suas raízes africanas. Destas tendências contestatárias em rápida gestação, não ficou alheia a polícia secreta portuguesa que, entretanto, fora introduzida nas colónias, tornando-se numa poderosa arma da dominação colonial. A consciência da ameaça ao poder colonial, trazida pela multiplicidade destas formações e iniciativas, está bem patente nas palavras de Silva Cunha, que viria a ocupar o cargo de Ministro do Ultramar e da Defesa. No discurso proferido na Semana do Ultramar, em 1959, considerou que a política colonial « sofre perigosas limitações e pode ser gravemente atingida. (....) Não é pessimismo exagerado prever a possibilidade de os movimentos de emancipação, pacíficos ou violentos, (...) influenciarem a imaginação (...) das gentes africanas e fazerem surgir entre elas quem queira chefiar movimentos semelhantes. As condições gerais (...) não permitem que tais movimentos surjam sob a forma de organizações políticas activas (...). Podem, porém, manifestar-se revestindo a forma de movimentos clandestinos que encobertamente procurem preparar as massas para, num momento dado, se lançarem na desordem e agitação » (Mateus, 1999 : 92). Tais interpelações, que se foram intensificando, demonstravam com clareza a vacuidade dos ideais de portugalidade e das proclamações de Portugal pluri-continental e pluri-racial. A construção ideológica, pós-1961, sobre o fim dos regimes de diferenciação e discriminação social/racial, acompanhada pelo corolário lusotropicalista da ausência de racismo, não resiste às desmontagens que os sujeitos colonizados colocam : « Dizia um dia um pastor preto que lhe tinham deixado a praia para pasto e o mar para dessedentar as reses… O que aconteceu com os pastores passou-se em mais larga escala com a posse da terra agrícola. Nos arredores de Nova Lisboa vi uma onaca (várzea drenada) cuidadosamente cuidada por um funcionário preto. Perguntei-lhe se tinha título de propriedade, respondeu-me que a terra lhe era deixada enquanto nenhum branco a quisesse » (Ribeiro, 1981 : 202). A autoridade colonial, pela voz de algumas das suas figuras, vê-se inclusivamente coagida a inverter os termos do confronto. Rafael Ávila de Azevedo, por exemplo, director dos Serviços de Instrução Pública de Angola entre 1947-1957, isentando de responsabilidades a presença portuguesa, considera que « o racismo negro é um dos elementos motores das reivindicações africanas » (Azevedo, 1964ª : 46) Também o surto escolar, verificado em Angola, durante os anos de 1960, parecia fugir ao controlo das autoridades. No que diz respeito à educação, Pinto bem alerta para a complexidade dos posicionamentos dos sujeitos colonizados face aos projectos educativos que lhe eram impostos. Esta complexidade constitui uma ausência gritante e uma evidente manifestação da : « a miopia europocêntrica (…) também presente na imagem totalizante da exportação dos modelos europeus de educação escolar para as colónias. Herdadas das ideologias legitimadoras do colonialismo, a imagem prolonga-se, mudando os tons que não os contornos, nos discursos sobre a aculturação, a persistência da ‘educação tradicional’ e a resistência ao processo de colonização escolar (…) Todas estas visões se legitimam contudo num pressuposto que carece de fundamentação histórica : o de que o homem colonizado é o sujeito passivo e unidimensional da história (…). Assim, reconhece-se-lhe, na melhor das hipóteses, capacidade para responder ao colonizador pela resistência passiva, ao não se integrar nos modelos económicos, sociais, políticos, culturais e educativos que lhe são impostos. (…) esta imagem se deve tão só ao silenciamento histórico dos dominados, imposto pelas ideologias, pelas opções teóricas e pelas ‘regras de método’ usadas pela historiografia » (1996 : 118). Mas, na realidade, para além de se ter verificado que a doutrinação sobre os ideais de portugalidade, atrás demonstrada, não impediu o surgimento de posturas nacionalistas e de crítica ao regime colonial, tendo contribuído a formação de professores africanos para a constituição de uma elite mais escolarizada, são vivas ainda as memórias sobre as escolas clandestinas que proliferavam em Luanda. Martins dos Santos fornece-nos uma descrição : « Quanto ao período de que estamos tratando, o terceiro quartel do século [XX], era certo que muitas crianças aprendiam em escolas clandestinas ; eram mantidas, em regra, por indivíduos com pouca preparação ; eram facilmente localizadas, havendo-as na própria capital do país, apontadas por tabuletas sinalizadoras, reconhecíveis pelo ruído característico de qualquer classe ; as próprias autoridades, inclusive os inspectores, que percorriam a cidade, não deixavam de ver o que todos viam e o que os interessados queriam que fosse visto ; se não tomavam medidas adequadas, deixavam de cumprir os seus deveres. Até as crianças matriculadas em escolas oficiais se aproveitavam delas como ‘salas de estudo’ para preparação das lições. Um pormenor deve ser salientado : — em regra, estes alunos faziam letra melhor desenhada do que os que eram ensinados nas escolas públicas » (1970 : s/p). Para além da necessidade de se visibilizarem os agentes ausentes (Santos, 2006), o que permitiria pluralizar a arena educativa para além do Estado e da Igreja, mostrando como ela é povoada por crianças, adultos, mulheres, indígenas, assimilados, mestiços, etc. (Madeira, 2008), seria de maior relevo presentificar a experiência social destes agentes ausentes, assim como as formas pelas quais a acção colonial foi sendo apropriada, subvertida e desarticulada. Assim, para além de todas as instâncias já enunciadas, face à insistência obsessiva das autoridades educativas relativamente à boa pronúncia do português, os sujeitos podem responder com a ridicularização. Recordando esses tempos, as memórias vivas retratam este esforço, nas expressões populares, lúdicas e sarcásticas, como um esforço de afinação : « Estás a afinar ! ». Estas desarticulações alertam directamente para os limites da representação do real pela razão metonímica, ao accionarem os mecanismos da trans-escala e da perspectiva curiosa e lúdica, pelos quais os critérios de relevância são questionados, porque são interpelados a partir de outras escalas e de outros lugares de enunciação. Por fim, estas formas de desarticulação da autoridade colonial claramente apontam não só para a existência de importantes tráfegos culturais, como também demonstram, com particular evidência, os usos contra-hegemónicos quer da biblioteca colonial, quer das imposições ‘civilizatórias’ dos regimes coloniais. Os modos de apropriação, negociação e subversão não podem ser dissociados de dinâmicas de hibridez e mestiçagem. Nestes processos, questionam-se regimes exclusivistas de autoria e uso. Por outras palavras, estes tráfegos materializam histórica e sociologicamente partilhas multivocais e multi-situadas, em relações de tensão e desafio, as quais se desvelam paulatinamente como elementos que, sendo distintamente activados, integram patrimónios que a própria hibridez dinâmica torna disponível às partes em relação.

Poder ser : o papel da educação na luta pela libertação O cômputo global da política de instrução e educação colonial é exemplarmente denunciada Thiong’o : « The real aim of colonialism was to control the people’s wealth (…). Colonialism imposed its control of the social production of wealth through military conquest and subsequent political dictatorship. But its most important area of domination was the mental universe of the colonized, the control, through culture, of how people perceived themselves and their relationship to the world. Economic and political control can never be complete or effective without mental control. To control a people’s culture is to control their tools of self-definition in relationship to others » (1986 : 16). De modo concordante, os efeitos das políticas coloniais de instrução e educação foram enunciados por Amílcar Cabral do seguinte modo : « ‘Toda a educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre presentado como um ser superior e o africano como um ser inferior. Os conquistadores coloniais são descritos como santos e heróis. As crianças africanas adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem a temer o homem branco e a ter vergonha de serem africanos. A geografia, a história e a cultura de África não são mencionadas, ou são adulteradas, e a criança é obrigada a estudar geografia e a história portuguesas’ » (in Carvalho, 1995 : 44). Pese embora a sofisticação do enquadramento ideológico do ensino colonial e pese embora o investimento realizado, sobretudo durante os anos de 1960, a cobertura escolar da população nativa era lamentável, estimando-se que cerca de 85% da população, aquando da independência, fosse analfabeta no que diz respeito ao português (Zau, s/d). De modo similar, segundo os dados do Censo de 1970, registavam-se 89,7% de analfabetos. Por seu turno, aquando da independência, o MPLA (1977) estimava a taxa de analfabetismo do país como sendo superior a 90%. O testemunho de Kianda, ex-combatente da tropa negra do exército português, dá-nos conta do outro lado da moeda : « quando saíram daqui [os soldados da metrópole] pensavam que iam para uma terra para desbravar, não é assim ? Que eram indígenas que estavam ali no meio do mato. Disse não. Não. Nós tínhamos escolas e as pessoas eram obrigadas a sair da escola para ir trabalhar para as fazendas. Por ordem do administrador. (…) Muita gente tinha que fugir, tinha que se refugiar, trocavam de nome. (…) O filho foge. O Estado sabe e então a mãe tinha de ir sofrer no lugar do filho. Foi isso tudo…. Essas mágoas todas que provocou o início da guerra em 61. E essa guerra de 61 fez que muita gente daqui [Portugal] fosse para lá sem querer e morresse sem ter nada a ver (…). Eu perguntava : o que é que vocês vieram aqui [Angola] fazer ? Então eu expliquei. As pessoas de uma certa idade tinham de sair da escola para ir para as fazendas. O estudo era só até à quarta classe ». Para além disso, a suposta instauração universal da cidadania portuguesa, no início da década de 1960, esteve longe de se tornar uma realidade efectiva. Orlando Ribeiro (1911 – 1997), geógrafo, viajou pelo ultramar entre 1950 e 1965. A partir dessas viagens fornece uma descrição sobre as práticas de diferenciação e separação racial, que contrariavam em absoluto os ideais da sociedade multi-racional e da universalidade da cidadania portuguesa, nas cidades angolanas durante os anos de 1960 : « brancos em vários níveis sociais, exclusivos nas classes privilegiadas, em competição com mestiços e pretos nos ofícios humildes, tanto mais numerosos quanto maior é a povoação. Esta sociedade vive à parte do elemento local (…). No Lobito houve um urinol onde se separavam ‘indígenas’ e ‘europeus’ (…) ; há lojas de bebidas e comidas que não servem pretos (em Nova Lisboa) ; funcionários e comerciantes de Vila Roçadas mostravam aceitar a ideia, corrente na União da África do Sul, de que Deus criara diferentes brancos e pretos e estes eram ‘inferiores’. (…) O centro de Luanda dava a impressão de um novo bairro de Lisboa. Só brancos nas lojas, nos escritórios, nos hotéis, desde o recepcionista ao groom do elevador e à criadagem. Até os meninos pretos que vendiam jornais às primeiras horas dos dias foram substituídos por uma dezena de ‘ardinas’ brancos » (1981 : 159/179). Também do ponto de vista da educação, a proclamação legislativa da unificação dos sistemas escolares para indígenas e não indígenas coexistia com as realidades concretas do regime discriminatório. Vitor dá-nos conta da sua experiência nos primeiros anos de 1970, quando frequentava a escola primária : « Eu estudei na missão de Santa Filomena e esta questão da aculturação era muito vivida. Não brincávamos juntos…. Não existia aquela relação entre todos. O processo não era como o apartheid, mas havia sinais de como a cor e o facto de sermos nativos…. Não podíamos estar em contacto permanente com crianças brancas…. Tínhamos que estar devidamente identificadas, para que sempre que acontecesse alguma coisa, a polícia nos pudesse localizar ». Rememorando a experiência de seus irmãos mais velhos durante a década de 1950, André, mais velho que esteve envolvido na luta pela libertação nacional e que tem profundo conhecimento sobre a história do país, explicava o seguinte : « Esses meus irmãos, um era camionista e outro era mecânico. Isto eram as profissões típicas dos mestiços. Os meus pais não conseguiram que eles fossem mais adiante. O regime não permitia. (…) Não podiam entrar no exército, nem da administração pública, nem nada. Nem o branco nascido em Angola podia (entrar no exército). O negro indígena entrava, mas o assimilado não, porque havia o perigo…. ». No « Guia do alfabetizador ‘A vitória é certa : a luta continua’ », publicado, em 1980, pelo Ministério da Educação da então República Popular de Angola, lê-se : « Nos últimos anos do colonialismo, ele tentou enganar o Povo, mostrar que se preocupava muito em arranjar mais escolas para os filhos dos camponeses e operários, mas intenção era controlar o Povo, impedir as ideias da libertação de se espalharem, convencer todas as crianças e os seus pais de que eram portugueses e não angolanos, e de que a luta heróica da libertação eram simples actos de terrorismo » (1980 : 53). Para Guerra : « Nas escolas rudimentares da África portuguesa, as crianças africanas aprendiam os afluentes do rio Minho e os ramais da linha da Régua, as vantagens de ficção de uma ‘missão civilizadora’ de cinco séculos refinada por cinco décadas de salazarismo, os milagres de Fátima e outras curiosidades de Almanaque. Do mesmo modo, nas escolas do continente, as crianças portuguesas aprendiam pela cartilha do Matoso a ficção de uma história de heróis, conquistadores e santos, esforçados em perigos e guerras para dilatar a fé e o império » (1988 : 16). A independência efectiva pressupunha, de facto, a libertação e esta passaria pelo ensino. Mas o que significa e implica a libertação ? Descrevendo o nacionalismo como libertação, Eduardo Mondlane explica o seguinte : « Por nacionalismo entendo ‘uma tomada de consciência por parte de indivíduos ou grupos de indivíduos numa nação ou de um desejo de desenvolver a força, a liberdade ou a prosperidade dessa nação’. Esta definição aplica-se ao nacionalismo (…) de qualquer povo. (…) Dadas as recentes circunstâncias histórias que afectaram as vidas dos vários povos no continente africano, é necessário acrescentar que o nacionalismo africano também se caracteriza pelo desenvolvimento de atitudes, actividades e programas mais ou menos estruturados com vista à mobilização de forças para conseguir a auto-determinação e a independência. (…) Em relação ao nacionalismo africano em geral é necessário frisar quatro pontos suplementares : 1) Que é uma reacção contra o controlo político imposto por europeus aos povos africanos ; 2) Que é uma reacção contra a exploração económica estrangeira, em especial a ocidental, dos recursos naturais e humanos africanos ; (…) 3) Simultaneamente com o desenvolvimento do nacionalismo africano desenvolveu-se um outro tipo de nacionalismo – o nacionalismo cultural – epitomizado pelo aparecimento de inúmeras teorias de toda a espécie sobre o homem africano, apelidado de ‘personalidade africana’ pelos anglófilos e de ‘Négritude’ ou ‘Africanité’ pelos francófilos » (declaração de Eduardo Mondlane, presidente da FRELIMO, em Dar es Salaam a 3 de dezembro de 1964. Publicada em Présence Africaine, LIII, 1º trimestre, 1965 in Bragança e Wallerstein, 1982b : 33-35).

Nesta óptica, a problemática da educação, ideologicamente enquadrada, estava já presente no Programa Mínimo do MPLA, lançado em 1956. Durante a guerra de libertação nacional, nas chamadas ‘zonas libertas’, foi implementado um sistema de educação. Para além de combater o analfabetismo e de promover a unidade dos militantes, tal sistema tinha como desígnio a libertação das mentes e a formação em prol da construção de uma futura sociedade socialista. Carlos Rocha Dilolwa elaborou, neste âmbito, o Manual de Alfabetização do MPLA. Nele lê-se :

« Só o materialismo filosófico de Marx indicou ao proletariado a saída da escravidão espiritual em que vegetaram até hoje todas as classes oprimidas. Só a teoria econômica de Marx explicou a situação real do proletariado no conjunto do regime capitalista » (MPLA, 1977 : 1).

A este se adicionariam cartilhas de alfabetização em línguas nacionais.

Fonte : Manual de Alfabetização « A vitória é certa : a luta continua ». República Popular de Angola. Ministério de Educação. 1980. Pág. 28.

Fonte : Manual de Alfabetização « A vitória é certa : a luta continua ». República Popular de Angola. Ministério de Educação. 1980. Pág. 71.

Neto fornece a seguinte descrição do sistema de educação implementado pelo MPLA no contexto da guerra de libertação nacional : « Como se pode perceber, para o desenvolvimento da educação nessas condições, não foi possível construir infra-estruturas definitivas para apoiar o processo da educação, mas foram construídas em algumas zonas, cabanas ou barracas para que as crianças e adolescentes que não estivessem diretamente engajados na guerra de guerrilhas pudessem estudar em tempos de relativa calmaria dos ataques furibundos do exército colonial português aos acampamentos dos guerrilheiros. Quando as condições assim não o permitiam, eram apenas utilizadas as copas das árvores, improvisando assentos de madeira, e o pé da árvore servia de sustentação do quadro verde ou negro (ardósia) para o exercício pedagógico. Ali os alunos aprendiam as primeiras letras em meio ao fogo cruzado das metralhadoras dos portugueses e compreendiam a grandeza da sua luta pela liberdade com a experiência e o risco permanente de perder a própria vida. Paralelamente ao processo de ensino no interior das florestas, introduziu-se o rádio como meio de propagação da luta e da ampliação do ensino à distância. Fundou-se o programa Angola Combatente, que possuía emissões em Português e nas demais línguas e dialetos nacionais. Com o uso das línguas e dos dialetos nacionais, a comunicação e o alastramento da luta através da adesão popular fizeram com que o processo caminhasse relativamente mais depressa » (2005 : 87). Outro instrumento a realçar consistia nos ‘Centros de Instrução Revolucionária’. Neles eram leccionadas as primeiras classes de ensino, bem como a formação guerrilheira e revolucionária. Segundo Neto (2005), a primeira estrutura foi criada, em 1965, em Cabinda. No ano seguinte, implementou-se outro centro na Segunda Região Político-Militar. Estas iniciativas eram enquadradas pelo Departamento de Quadros do MPLA, órgão responsável pela organização do primeiro Sistema de Directrizes e Bases da Educação, documento precursor da reforma educativa aquando da independência. A acção educativa levada a cabo nestes centros era ideologicamente orientada em função do ideal de ‘Homem Novo’, proposto pelo marxismo-leninismo. Novamente, o autor dá-nos a seguinte descrição : « A disciplina de atividades produtivas tinha também por objetivo desencorajar (...) atitudes reacionárias de elitismo de uma minoria “esclarecida” de estudantes. Neste sentido, o trabalho tornava-se, ele próprio, uma categoria epistemológica fundamental na concepção de educação nos Centros de Instrução. O conhecimento objetivo da realidade social e o critério de avaliação do verdadeiro engajamento do indivíduo na revolução constituíam-se pela mediação do trabalho. O trabalho dava conteúdo à práxis revolucionária, tornava possível o conhecimento objetivo do próprio homem, ligando o homem à natureza e aos outros homens. Em suma, ia-se formando a consciência de que o trabalho dá conhecimento ao homem e dimensão de historicidade à ação humana. (….) Dado o contexto de guerra, este princípio de educação pelo trabalho manual, como forma de integrar o aluno na sociedade de produtores, estendia-se à participação na própria luta armada, quando fosse necessário. O professor devia criar nos estudantes um espírito de integração na ação armada ; o estudante devia ver, no guerrilheiro, um irmão mais velho, devendo existir laços estreitos entre estudantes e guerrilheiros. O aluno devia desenvolver um espírito guerrilheiro, participando em várias tarefas ao lado do guerrilheiro. Na prática, segundo Nyasengo (1986:19), o tempo do aluno estava distribuído em 6 aulas diárias de 45 minutos cada uma, ou seja, mais ou menos 4 horas de estudo, produção agrícola e artesanal (2 horas), atividades esportivas (1 hora). Os alunos mais crescidos participavam também na construção de abrigos e da alfabetização de adultos, praticando-se, assim, a ligação escola/comunidade, escola/produção, dando à escola um caráter politécnico. Os professores eram recrutados sob o princípio segundo o qual aquele que tinha estudado devia ensinar o que sabia àqueles que não sabiam ou sabiam menos. Visava-se resolver, em parte, o problema da falta de professores para o elevado e crescente número de alunos e a conseqüente superlotação das classes, que atingia a relação de 80 a 100 alunos por professor (Angola Hoje, 2005:7). Como esses professores possuíam um nível baixo de conhecimento, era realizada todos os meses uma reunião de professores, para a preparação conjunta das lições para as três semanas seguintes (Idem : 7), seminários de aperfeiçoamento pedagógico, “onde se discutiam todos os problemas do ensino e se faziam planos e programas para o ano seguinte” (NYASENGO, 1986 : 16 e 23). A formação marxista por intermédio do sistema educacional é, sem dúvida, o paroxismo do trabalho pedagógico levado a termo pelo Centro de Instrução Revolucionária – CIR – sem o qual o revolucionário seria apenas um simples e inconseqüente ativista, um revoltado e não um rebelde, com vento a favor e sem saber a e porto se dirigir » (Neto, 2005 : 88-90).

Segundo Zau (s/d), aquando da independência, foi estabelecido o princípio da gratuitidade do ensino. Dada a carência de infra-estruturas e de recursos humanos, o sector educativo teve, obviamente, muitas dificuldades para administrar e gerir da melhor forma os dois primeiros anos do pós-independência. Diz-nos o autor : « De um total de 512.942 alunos, em 1973, passou a haver 1.026.291 crianças matriculadas na pré-primária e nos 4 primeiros anos de escolaridade, assimetricamente distribuídos por 15 províncias. Para mais de um milhão de alunos matriculados no ensino primário, havia perto de 25 mil professores heterogeneamente distribuídos pelo país, o que, em condições normais, correspondia a uma média de um professor para cada 41 alunos. Porém, só 7% dos docentes ligados ao ensino primário tinha habilitações mínimas para o exercício do magistério » (Zau, s/d : 76). Em 1976, deu-se início a uma campanha nacional de alfabetização, ministrada através dos Centros Provinciais de Alfabetização. Segundo Neto (2005), entre 1974 e 1978, foram alfabetizados mais de um milhão e meio de pessoas. Destaque-se, igualmente, o papel dos ‘Centros de Instrução Política’, destinados à formação de membros do MPLA. Em 1974, existiam já centros em 13 das 18 províncias do país. Tal estrutura foi, posteriormente, sofisticada, em 1984/85 com a criação, no contexto do pós-crise nitista, de um curso para aspirantes a membros do partido. Por fim, realce-se os chamados ‘Círculos de Estudo’ para a educação política e ideológica, como também as Brigadas de Jovens Alfabetizadores, as Brigadas Juvenis de Trabalho Voluntário e dos Destacamentos Juvenis de Produção (Neto, 2005). Em 1977, foi adoptado um novo Sistema de Educação e Ensino (SEE), o qual foi implementado apenas a partir de 1978. No início da década de 1980, a esmagadora demanda educativa, manifestada, por exemplo, nas iniciativas populares de abertura de escolas (Neto, 2005) gerou o estrangulamento do sistema de ensino. De acordo com Zau, em 1980, « o número de angolanos matriculados em instituições educativas do país era já superior a 1,6 milhões ». Apesar disso, « Em 1981/82, estimava-se que a média nacional da taxa de escolarização das crianças dos 6 aos 9 anos de idade, rondasse apenas os 50% » (s/d). Por outro lado, nesta época, as políticas de educação, informação e propaganda eram claramente dirigidas a um outro ‘inimigo’ denunciado pelos discursos político-ideológicos : a mentalidade pequeno-burguesa, atribuída aos persistentes remanescentes da experiência colonial. E era também contrabalançada com pronunciamentos ideológicos de cariz celebratório, sobre o ‘Homem Novo’. Na verdade, em face dos obstáculos decorrentes, por um lado, do tribalismo e da tradição, e, por outro, do ‘burguesismo’, profundamente perniciosos aos olhos revolucionários dos detentores do poder, haveria que construir, através da propaganda e da vigilância, um ‘Homem Novo’. O objectivo magno seria, então, a « progressiva implantação e desenvolvimento de novas formas de relações sociais, de novas normas de convivência e moral pública, como base no princípio de que ‘o homem para o homem deve ser um amigo e um camarada’. Isto exige um enorme e constante trabalho de educação e consciencialização com vista à formação de um homem novo, um homem com alta responsabilidade cívica, de firmes princípios ideológicos e de comportamento nobre » (MPLA-PT, 1980 : 102). Neste ponto, a ‘educação política’, subordinada ao projecto socialista, constituiu um dos instrumentos mais relevantes na prossecução do objectivo de unidade – ou, talvez melhor, de suposta uniformização nacional. É, aqui, de destacar o papel das organizações de massa do MPLA, como a UNTA – União Nacional dos Trabalhadores de Angola, a OMA – Organização da Mulher Angolana, e a JMPLA – juventude partidária, as quais eram supervisionadas pelo Departamento das Organizações de Massa. Estas estruturas eram, fundamentalmente, concebidas para difundir a doutrina do regime e mobilizar apoio popular. No âmbito das estratégias de disciplinarização político-ideológica, foi criado, no seguimento do I Congresso, o Sistema do Trabalho Ideológico, cujo objectivo máximo consistia na formação dos militantes, segundo uma visão ortodoxa da doutrina ideológica, e cuja implementação terá sido da responsabilidade da Esfera Ideológica no Aparelho Central. Tal sistema integrava escolas do Partido, círculos de estudo e um subsistema de informação interna, encarregado da emissão e divulgação de boletins, panfletos, etc. A título de exemplo, veja-se a transcrição do seguinte texto educativo :

VIVA A DISCIPLINA REVOLUCIONÁRIA, ABAIXO O LIBERALISMO !
- Camarada Josefa, tu é que estás nomeada para fazeres a limpeza do dia com mais dois camaradas.
- Os outros que façam, eu não faço ! Todos os dias limpeza, não estou de acordo. É essa a minha opinião.
- Tu afinal desobedeces às ordens e colocas as tuas opiniões acima de tudo...
- Camarada Marta – responsável -, eu precisava de uma saia nova. Já há muito tempo que pedi uma e ainda não recebi.
- Josefa, tu queres que a Organização se ocupe de ti, mas não respeitas a disciplina da Organização !
- Porque é que a Camarada diz isso ?
- Esta manhã não obedeceste às ordens do responsável do dia, dizendo que não farias a limpeza do dia porque não estás de acordo com tanta limpeza. Agora queres uma saia nova, queres que a Organização se ocupe de ti, mas não respeitas a disciplina da Organização. Este comportamento é liberalista. Está errado ! Somos liberalistas quando desobedecemos às ordens dos responsáveis e colocamos as nossas opiniões acima de tudo. Queremos que a Organização se ocupe de nós, mas não respeitamos a disciplina da Organização. ESTE É UM QUARTO COMPORTAMENTO LIBERALISTA. (MPLA-PT, 1977 : 109).

Após a independência observou-se um esforço significativo no sentido de uma reapropriação da história, procurado-se colocar no centro das novas narrativas históricas o passado angolano, claramente diferenciado da presença colonial portuguesa. Para Emílio Carvalho, Bispo da Igreja Metodista de Angola, hoje reformado : « Precisamos de desmistificar a arrogância colonial que sempre considerou esses territórios como ‘terras descobertas por católicos, governados por católicos e tradicionalmente habitadas por pagãos volúveis’, cujo grau de civilização era muito primitivo. (…) Há que derrubar ‘um dos mitos mais perniciosos do racismo’ (…) segundo o qual éramos ‘povos sem história digna de registo’ » (1995 : 35). Procedeu-se, nessa óptica, à re-elaboração dos manuais de história. A este respeito duas questões são de salientar : por um lado, o investimento na descrição da história pré-colonial e a enfâse na luta de libertação nacional. Por outro lado, as novas narrativas são possibilitadas/veiculadas pela adopção do ideário marxista-leninista que, em 1977, se converteu na ideologia oficial do partido de vanguarda do MPLA. A ilusória ironia reside no facto seguinte : a tentativa de auto-nomeação é feita através de uma linguagem e de um esquema cognitivo vindos de fora. Tal facto não nega a legitimidade da re-orientação dada às narrativas históricas, pois essa mesma linguagem e esse mesmo esquema cognitivo, para além de pertencerem ao corpus ideológico e epistemológico disponível, constituíam, no contexto pós-colonial e no contexto das relações geo-políticas da altura, as estratégias mais avisadas para a construção de Estados saídos do colonialismo. É nesta perspectiva que deverão ser lidas as leituras marxistas sobre a história angolana no pós-independência. Veja-se o seguinte excerto de um dos primeiros manuais escolares de Angola independente : « A história, como ciência, só avançou como conhecimento do passado quando Marx e Engels realçaram a importância da luta de classes para o desenvolvimento das sociedades e evidenciaram o papel decisivo das massas ao longo do processo histórico. (…) as classes dirigentes (…) opuseram-se com frequência à interpretação de acontecimentos onde o papel das massas era decisivo e fizeram valorizar a acção dos exploradores. Um exemplo desta atitude é a posição dos colonialistas em relação à nossa história. Eles negavam pura e simplesmente a sua existência, justificando a sua acção colonizadora por uma pretensa necessidade de levar a ‘civilização’ e, portanto, também a história a ‘povos atrasados’. Entretanto, acompanhando a luta anticolonial, alguns africanos conscientes e europeus progressistas foram desmascarando este mito apenas destinado a perpetuar a dominação estrangeira. Assim, passou a ser-nos revelado um passado fascinante, rico de acontecimentos memoráveis, do qual o opressor nos queria separar. Este conhecimento contribuiu para reforçar a determinação anti-colonial e anti-imperialista dos povos africanos. Estes factos demonstram-nos bem a necessidade e a importância da história. Foi ela que nos permitiu ver que o desenvolvimento de África, ao contrário do que proclamava a calúnia colonial, se inseria na história do mundo, do qual, como os outros, fazemos parte » (in Manual de História. Ensino base. 7ª Classe. Ministério da Educação da República Popular de Angola. 1979).

A mesma leitura é veiculada por Américo Boavida. Centrando a sua crítica no ‘pseudo-reformismo colonial português’ do início da década de 1960, o autor considera que

« Em nossos dias, e numa nova etapa, a política colonial portuguesa orienta-se pela via de um pretenso reformismo. Os colonialistas portugueses, com efeito, através de uma propaganda enganosa, esforçam-se em fazer aceitar que os novos projectos e as novas instituições postas em vigor nestes últimos anos – e que não são mais do que a consequência da sublevação armada do povo angolano – têm como objectivo fazer participar a população autóctone na vida administrativa, política, económica e social do país. (…) Todavia, os colonialistas portugueses persistem em recusar o Direito de Angolinidade aos povos e populações angolanas, e impuseram mesmo, por um novo estatuto, a cidadania portuguesa a todos os autóctones » (1981 : 48/46).

E porquê esta filiação ideológica ? Sendo evidentes as relações mutuamente constitutivas entre dominação colonial e exploração capitalista, tornar-se-ia óbvio que a luta pela libertação política não dispensava a luta pela libertação económica. No entanto, impunha-se, simultaneamente a luta pela definição de projetos nacionais africanos que não espelhassem, como se meras réplicas fossem, ortodoxias político-ideológicas estrangeiras. Os movimentos de libertação nacional africanos reclamavam-se como actores de direito próprio com agencialidade própria, pelo que a sua catalogação segundo a grelha da Guerra Fria era determinantemente recusada. Este posicionamento foi, de modo particularmente significativo, calado pelas análises geopolíticas dominantes. De facto, e de acordo com a perspetiva hegemónica, o mundo estaria organizado em dois blocos antagónicos : o I Mundo correspondente ao sistema capitalismo ocidental e o II Mundo encarnado pelo bloco socialista/comunista. Para além da problemática hierarquização aqui implícita, esta visão reduzia o chamado III Mundo a um palco predominantemente passivo e presa fácil de manipulações externas, onde os dois blocos se confrontavam no contexto da Guerra Fria, invisibilizando-se, por essa via, não só a agencialidade dos nacionalismos africanos, como os seus complexos alinhamentos políticos.

Partilhando as posições veiculadas na Conferência de Bandung, a qual, em 1955, dá a conhecer o movimento dos não-alinhados, a luta pela definição de projetos nacionais africanos não-alinhados irá marcar as posições dos movimentos nacionalistas. Amílcar Cabral é eloquente a este respeito, ao afirmar : « o não alinhamento é não nos comprometermos com blocos, não alinharmos com as decisões dos outros. Reservarmo-nos o direito de decidirmos por nós próprios e, se por acaso, as nossas opções, as nossas decisões, coincidirem com as de outros, a culpa não é nossa » (entrevista a Amílcar Cabral na II Conferência do CONCP, 3-8 de Outubro de 1965 in Bragança e Wallerstein, 1982b : 184). Dada, pois, a natureza capitalista do colonialismo, a libertação política implicaria necessariamente a rutura com formas de exploração capitalistas e a adopção urgente de estratégias de africanização da economia e de unidade nacional. A via para alcançar tais metas afigurava-se como sendo aquela que perfilhava objetivos e ideais de justiça social e de unidade nacional – o socialismo –, rejeitando-se, ainda assim, numa primeira fase, a catalogação de projetos nacionais africanos pela via socialista de acordo com ortodoxias do Norte. Novamente Amílcar Cabral é explícito : « O nosso desejo de desenvolver o nosso país com justiça social e com o poder nas mãos do povo é a nossa base ideológica. (…) se quiser chamar a isto marxismo, chame. A responsabilidade é sua. (…) os rótulos são problema vosso ; nós não gostamos desse tipo de rótulos. As pessoas daqui estão muito preocupadas com as perguntas : o senhor é marxista ? (…) Perguntem-me apenas se estamos (…) realmente a libertar o nosso povo » (resposta a uma pergunta feita a Amílcar Cabral em Londres após um discurso no Centro Hall a 26 de Outubro de 1971 in Bragança e Wallerstein, 1982b : 181). Em 1972, Agostinho Neto, presidente do MPLA, recusa identificar o seu movimento como sendo comunista, descrevendo-o como plural. Em entrevista ao Sunday News (Tanzânia), realizada nesse ano, a 20 a Agosto, Neto considerava o seguinte : « o povo angolano tem que possuir as riquezas do nosso país (…). Isto é aquilo a que normalmente se chama a via socialista. É socialista porque não tencionamos permitir que quer os angolanos quer os estrangeiros explorem outros no país. Esta é a nossa orientação, a nossa linha. Pensamos que ideologicamente seguimos não necessariamente a linha comunista ou marxista, mas que seguimos a linha socialista com justiça para todos » (in Bragança e Wallerstein, 1982b : 171). Na verdade, na turbulenta alvorada das independências, impunha-se uma tripla questão : a construção de novos Estados, de novos projetos de sociedade e da unidade nacional. A definição constitucional dos novos Estados partilhava, pois, duas premissas básicas. Em primeiro lugar, considerava-se que a construção do Estado-Nação e a transformação socioeconómica eram as duas faces de uma mesma moeda. Em segundo lugar, a modernização e a construção do aparelho do Estado constituíam tarefas centrais a serem prosseguidas no contexto da unidade nacional. E numa situação em que a descapitalização, em termos de recursos humanos, da administração pública, provocada pela descolonização, era uma agravante, e em que se viviam, entrecruzadas com guerras civis, ‘guerras de intervenção’ no combate a forças neocoloniais que buscavam a desestabilização regional das independências africanas, as premissas socialistas, mais tarde convertidas, em sistemas de unipartidarismo, ancoradas por importantes apoios internacionais, surgiam como aquelas que mais se adequavam às lutas do tempo. O conhecido depoimento de Nelson Mandela, aquando do julgamento de Rivonia, em junho de 1964, é esclarecedor : « A doutrina ideológica do CNA é, e tem sido sempre, a doutrina do nacionalismo africano (…) é o conceito de liberdade e de realização para o povo africano na sua própria terra. (…) a ‘Carta da Liberdade’ (…) não é de forma alguma um projecto para um Estado socialista. Defende a redistribuição, mas não a nacionalização da terra ; prevê a nacionalização das minas, dos bancos e da indústria monopolista porque os grandes monopólios são propriedade de apenas uma raça, e sem essa nacionalização a dominação racial seria perpetuada apesar do alargamento do poder político. (…) No que respeita ao Partido Comunista (…), ele representa a criação de um Estado baseado nos princípios do marxismo (…) considera a Carta da Liberdade como o início, e não o fim, do seu programa. (…) O seu principal objectivo (do CNA) era, e continua a ser, que o povo africano conquistasse a unidade e direitos políticos absolutos. O principal objectivo do Partido Comunista, por outro lado, era expulsar os capitalistas e substituí-los por um governo da classe operária. O Partido Comunista procura frisar as distinções de classe enquanto que o CNA tenta harmonizá-las. Esta é uma diferença vital. (…) a cooperação (entre os dois) é apenas uma prova dum objectivo comum – neste caso a abolição da supremacia branca – e não é uma prova de uma completa identificação de interesses (…). Hoje em dia sinto-me atraído pela ideia de uma sociedade sem classes (…). Todos nós aceitamos a necessidade de alguma forma de socialismo para possibilitar ao nosso povo alcançar os países avançados deste mundo e ultrapassar a sua herança de extrema pobreza. Mas isto não significa que sejamos todos marxistas. (…) Fui influenciado no meu pensamento quer pelo Ocidente, quer pelo Oriente. (…) Tenho que me sentir livre de ir buscar o melhor ao Ocidente e ao Oriente » (depoimento ‘Estou pronto para morrer’ de Nelson Mandela no Julgamento de Rivonia em Junho de 1964 in Bragança e Wallerstein, 1982b : 158-163).

IV. Os espelhos quebrados de Narciso : a crítica à razão metonímica e a crítica à razão proléptica.

Tratar a memória como elemento da justiça cognitiva implica reconhecer, no seguimento de Soyinka, que a memória não só se rebelda contra critérios de caducidade, bem como « is the very warp and weft of the tapestry of history that makes society » (2000 : 21). O reconhecimento da memória como objecto de interrogação pressupõe, e, simultaneamente, aprofunda, um engajamento crítico e reflexivo com a própria natureza da memória. Embora a sua complexidade possa ser explorada por forma a identificar as latências e as irrupções involuntárias do silenciado, esquecido ou reprimido , a atenção será focada, neste capítulo, nas enunciações voluntárias e nos usos do passado como modelo heurístico e interpretativo do passado e do presente. Tal exige um trabalho de desconstrução das narrativas históricas hegemónicas sobre o regime colonial e os seus efeitos excludentes e silenciadores, o que dependerá do reconhecimento da diversidade e da singularidade das experiências e narrativas, das versões históricas e da produção de significados e sentidos a partir de lugares distintos. Este exercício de amplificação do que se nomeia como questões históricas e como memórias válidas e pertinentes implica, por sua vez, um constante dialogar entre tais experiências, narrativas, significados e sentidos. Este empreendimento dialógico, por seu turno, ao invés de ser conduzido em função da construção de uma nova macro-narrativa ou de uma nova versão universalizante e totalitária da história, serve, fundamentalmente, a democratização das memórias, assim como o direito à história (Gomes ; Meneses, 2011).

Memórias anti-históricas

Apesar das narrativas de memória recolhidas recusarem, na sua maioria, atribuir à experiência colonial um protagonismo determinante nas suas identidades e nos seus sentidos de futuro (individual e colectivo) – sendo abundantes os casos em que o colonialismo é retratado como ‘coisa do passado’, como algo ‘que já passou’ -, são também manifestos os sinais das múltiplas « cultural and spiritual violations » que « have left indelible imprints on the collective psyche and sense of identity of the peoples, a process that was ensured with savage repressions of coherent traditions by successive waves of colonizing hordes » (Soyinka, 2000 : 27). Esta secundarização do colonialismo não deve, portanto, ser lida literalmente. Ela tende mais a constituir-se como uma prática emancipatória, pela qual os sujeitos procuram definir-se, enquanto sujeitos e colectivos, fora do colonialismo. Para Víctor, estudante de mestrado em Portugal : « A questão do colonialismo é mais importante para Portugal…. Tem mais memória positiva. Para nós, são quase todas memórias negativas. O angolano precisa esquecer. Portugal, se calhar, precisar preservar ». As manifestações da relevância do colonialismo são evidentes e vão desde o sentimento de desancoragem por se conhecer melhor a história do colonizador do que a própria, à noção de que a história de África, invisibilizada por ter sido julgada inexistente, num primeiro momento, e bucolizada na tentativa de restaurar a autenticidade pré-colonial, num segundo momento, lhes escapa. Numa conversa sobre os efeitos das políticas coloniais de instrução e educação, André, mais velho, considerava o seguinte : « Teve, em primeiro lugar, efeitos profundos. Desenraizou muitos indivíduos em Angola. Essas pessoas, depois da independência, foram todas viver para Portugal. Quase todas. Foi um êxodo de angolanos para Portugal que você não imagina. Consideravam-se portugueses. Pretos mesmo, africanos, consideravam-se portugueses. (…) Há muito angolano que está alienado. Muito angolano. Eu uso a palavra no sentido político : alienado da sua própria história. Há africanos, há angolanos que estão alienados da sua própria história. Isso tem efeitos negativos, não é ? Não conhecem a língua, não conhecem os usos, os costumes, não conhecem a cultura… Não sabe o que é a cultura angolana. Não sabem, estão alienados. Mesmo hoje em dia, altos funcionários do governo, dos bancos, das empresas, você fala de angolonidade e não sabem, não têm angolonidade. Isso é fruto da política colonial. Isso é problema de identidade. Pois. O colonialismo tirou-nos a identidade e ainda hoje não está recuperada. E tem efeitos. Do outro lado, há efeitos positivos, mas eu falo deste lado, do lado negativo, da maneira como o colonialismo influenciou as mentalidades. (…) Você vai ver. Para muita gente, colonialismo, isso é coisa do passado. Do passado. E isso é bom. É bom. Porque nós não queremos que as novas gerações vivam esse drama. Têm de conhecer o colonialismo apenas como história. Pelo menos como história. Para compreender o presente. Eu acho isso positivo. É uma forma de ganharmos de tempo. De avançarmos ». Na narrativa de Simão, jovem universitário, de 23 anos, há quatro anos em Portugal : « Queremos que os portugueses olhem para nós da mesma forma [em igualdade]… Falo da integração. Eles pensam assim : eles vêm de África e não têm capacidade intelectual, conhecimento…. Mas a nossa tendência é conhecer África, na nossa família, é conhecer o mundo. Na universidade, há colegas que já me perguntaram : ‘qual é a história de Angola ?’…. se existia uma história para nós contarmos antes do colonialismo, antes dos portugueses…. Eu conto que havia reinos, reis e eles ficam surpreendidos. Pensam que a história só começou com o colonialismo. Os PALOP têm mais conhecimento da história de Portugal do que os portugueses têm dela e da dos outros ». A narrativa de Mariano, operário fabril de 45 anos, em Portugal há oito anos, e envolvido na dinamização de grupos e associações da diáspora angolana em Portugal, espelhava a mesma problemática. Assim, embora no início da entrevista considerasse que : « Um momento foi a descoberta de Angola e a entrada dos portugueses em Angola. Foi um marco histórico : entraram pelo Uíge com Diogo Cão… a primeira igreja foi construída lá », rapidamente salientava a importância da juventude conhecer a história do país : « Eles [os jovens] têm que saber como é que foi Angola na era colonial. É assim. Vou dizer : se formos aprofundar, antes da entrada dos portugueses, Angola era comandada por três reinos : Kongo, Dongo, Kuanhama. E os reis : Mandume que era Kuanhama, Ikuimi I do Bié e a Rainha Ginga. Essas figuras receberam os portugueses. Os portugueses convenceram essas figuras ». Em várias narrativas de memória, esta densidade histórica que a dominação colonial invisibilizou presentifica-se por meio da evocação de referências icónicas que pretendem, simultaneamente, simbolizar a ‘autenticidade’ e originalidade africana e celebrar as resistências ao poder colonial português. Estas convocações da memória apresentam um carácter contra-hegemónico, pelo qual são desafiadas as narrativas históricas dominantes, interpretadas como actos de expropriação, assim como a própria centralidade da Europa como campo único de produção epistemológica (Chakrabarty, 2000 ; Meneses, 2011). Neste momento, são de destacar duas figuras que operam como um referencial de rebeldia e insubmissão nas narrativas de memória : a Rainha N’Gola Ginga Bandi e o Rei Kiluange. Tornada uma referência de relevo maior, a figura da Rainha N’Gola Ginga permanece central nas narrativas de memória. De nome cristão, D. Ana de Sousa, Rainha Ginga veio a suceder ao seu irmão (a quem terá envenenado) no trono do reino Matamba, e terá reinado entre 1624 e 1663. Maria Archer, romancista portuguesa que viveu em Angola nos anos de 1930, narra um dos episódios que mais terá contribuído para que a figura de Rainha N’Gola Ginga se constitua ainda hoje como símbolo da insubmissão perante o poder colonial português e que é evocado frequentemente na memória popular como exemplo de resistência. A narração é particularmente interessante, na medida em que a autora coloca em relação de equivalência Ginga e a figura de um embaixador francês, símbolo de uma das experiências do colonialismo hegemónico europeu. Através desse artifício, Ginga não é de todo apresentada como sujeito subalterno e colonial. Narra Maria Archer o seguinte : « Em vida do irmão, D. Ana de Sousa viera a Luanda como embaixatriz, a negociar tréguas. A todos maravilhou pela inteligência, soberbia animo rial. Conta-se que Luiz XVI, ‘le roi soleil’, enviou ao sultão da Turquia, um daqueles poderosos sultões que faziam tremer a Europa, certo embaixador especial. Foi recebido em audiência solene, mas sem que oferecessem ao orgulhoso patricio assento em face do sultão. Impertubável, ele tirou dos ombros a preciosa capa, lançou-a no chão e sentou-se nela. Quando se retirou não levantou a capa. Alguém lho disse. O arrogante fidaldo respondeu : - Os embaixadores do rei de França não carregam com as cadeiras. Não é provável que D. Ana de Sousa estivesse a par destas picuinhas cortesãs. Mas deu-se com ela o seguinte episódio. (…) D. Ana de Sousa foi recebida com aparato. O governador de Luanda falou-lhe em audiência de gala. Estava no topo do salão, sentado na poltrona doirada, sob o dossel. Em redor, de pé, o hemiciclo dos fidalgos mais graúdos. Não havia outro assento. A par da afronta feita ao seu sangue rial a princesa negra não se deixou descair. Altaneira, com um gesto chamou uma das escravas que lhe faziam cauda ; a escrava dobrou-se no tapete e a princesa sentou-se sobre ela. Discorreu com segurança sobre os direitos soberanos do rei seu irmão, e negou-se a reconhecê-lo por vassalo do rei de Portugal, alegando que só é vassalo quem é vencido (…). Finda a audiência, a princesa retirou-se seguida do seu cortejo. No chão, na mesma atitude, permanecia a escrava. Lembraram à princesa que a chamasse. D. Ana de Sousa riu-se e respondeu que aquele assento já não lhe servia » (1939 : 17-18). A relevância da Rainha Ginga como símbolo da resistência angolana é inequívoca, pese embora as narrativas da biblioteca colonial que salientam o facto de ela ter assinado um tratado de paz com o rei português, Afonso V, em 1657, e o facto de se ter convertido ao cristianismo. Na perspectiva angolana, contudo : « Os colonialistas afirmam que ela foi rebaptizada e voltou a aceitar a religião católica, antes de morrer em 17 de Dezembro de 1663, aos 82 anos de idade. Porém, o facto mais marcante da sua vida foi que ela tinha conseguido preservar a independência nacional ! » (Carvalho, 1995 : 65). O reino Kimbundu Ndongo, situava-se a sul do reino do Kongo, e terá sido fundado por volta de 1500. Cedo despertou o interesse de Portugal, por se afigurar como fonte primordial de recolha e escoamento, através do porto de Luanda, de escravos para alimentar as necessidades de exploração do Brasil, e também como provável fonte de metais preciosos. Citando o Regimento Real, datado de 16 de Fevereiro de 1520, o qual ordena o envio dos emissários Manuel Pacheco e Baltasar Castro ao reino, por D. Manuel, monarca português, Cruz e Silva apresenta a seguinte descrição dos eventos : « As fortes motivações para apoiar e encorajar a conquista do território dos Ngola, era por demais evidente, tendo em conta que o Brasil a construir depois de quinhentos reclamava mão-de-obra abundante, que só África poderia fornecer. (…) A primeira missão do rei de Portugal às terras do Ndongo (…) estabelecia os objectivos da missão : ‘(…) O nosso principall fundamento hé mandarmonos nesta uiajem, para uerdes se pode (y) s fazer cõ el Rey d’Amgola se faça christão e asy a jemte de sua terra (…)’ ‘(…)E camdo de todo vyrdes que está pera nam ser christão, uos espidireys o milhor que poderdes, uendo e preguntando pleas cousas que há na terra de viveiros e metãees e qualquer resguate e se hy ouerdes algun resguate, seria bom comcertades de volo levarem a bordo do navio’. (…) A esta solicitação e contrariando todas as expectativas criadas à volta das possbilidades do Rei do Ndongo se tornar cristão e vassalo de Portugal, o rei africano colocou os embaixadores portugueses num longo cativeiro. O socorro para Manuel Pacheco e Baltasar de Castro chegou do Kongo em Setembro de 1926 » (1996 : 222-223). Segundo referências que remontam à presença jesuíta no território no século XVI, Ngola Kiluanje (1515-1556), também conhecido por ngola Inene, terá sido o quarto rei do reino Ndongo, um dos estados vassalos do reino do Kongo. Ngola A Kiluanje Inene fundou a dinastia que mais tarde havia de dar corpo ao Reino de Angola, o qual englobava, os distritos da Ilamba, do Lumbo, do Hari, da Quissama, do Haku e do Musseke. Inicialmente, o Ndongo era, pois, vassalo do Antigo Reino do Kongo até Ngola A Kiluange Inene se declarar independente. O rei constitui, por isso, uma das referências de maior peso simbólico nestas narrativas de memória, na medida em que parece fornece uma forte ancoragem identitária. Recorde-se, a este propósito, a exortação de Cordeiro da Matta na sua cartilha para a aprendizagem do Kimbundu : « Rilong’ienu o Kutânga kiambote, ana’Ngola Kiluanji ki a Samba ! Tang’enu : tang’enu ! ». Para além disso, o reino Ndongo representa um exemplo celebrado da resistência à presença portuguesa. Em 1560, Paulo Dias de Novais foi encarregue de ir em missão ao reino. Ao contrário do ManiCongo, o N’Gola não só não estava disposto a converter-se ao cristianismo, como também proibiu a evangelização e encarcerou Paulo Dias de Novais até 1565, altura em que foi liberto, regressando este a Portugal para pedir auxílio para a ocupação dos territórios. Tendo sido nomeado, em 1571, proprietário sucessório de um amplo território que se estendia por 270 km a sul do vale do Kuanza, Paulo Dias Novais acabou por morrer em 1589 sem conquistar o reino Ndongo. Referência central da identidade colectiva do que veio a ser Angola, o reino reveste-se, por isso, de valor fundacional e representa a irredutível oposição e resistência ao invasor. Outra referência comum é a de Kimpa Vita. Oriunda do Soyo, reino do Kongo, Kimpa Vita (1682-1706) foi uma profetisa que, apropriando-se de referências fundacionais do catolicismo (como Santo António de Pádua, Jesus, Maria, etc.) e afirmando-as como figuras congolesas, deu início ao chamado movimento antoniano, o qual sobreviveu mesmo após a condenação de Kimpa Vita à morte pela fogueira. Transcendendo fronteiras coloniais, o movimento terá sido, de facto, mobilizado pelo rei Ksaku-a-Muemba do Kongo (1694 – 1710) como parte da sua estratégia de unificação do reino : « eclodiu (em 1693) um movimento liderado por Kimpa Vita, aristocrata Mukongo, baptizada com o nome cristão Beatrice, pregando o profetismo bacongo e a restauração do antigo reino dos manicongos em Mabnza Kongo, livre da escravatura que o tinha reduzido à miséria. (…) Kimpa Vita começou a proclamar uma mensagem política, revestida de um conteúdo religioso cristão e africano ao mesmo tempo. Durante uma doença grave, ela teve a visão na qual sonhou que se havia personificado no S. António. (…) A única diferença foi que o Santo António de Kimpa Vita não era um santo branco (…). Kimpa Vita deu à religião estrangeira uma personalidade africana e esse era o seu objectivo fundamental : o de estabelecer uma Igreja Africana com base nas tradições bíblicas. Assim, o Congo passaria a ser a verdadeira Terra Santa. Que Cristo deveria ter nascido em Mbanza Kongo de uma virgem negra. Que a cruz não deveria ser venerada ‘poque era o instrumento da morte de Cristo’. Que os fundadores do Cristianismo eram africanos. (…) Kimpa Vita conseguiu organizar ou criar, em menos de dois anos, uma nova Igreja com o seu próprio dogma » (Carvalho, 1995 : 67-68). Do movimento antoniano, emergiram ainda outros cultos messiânicos que, no século XX, serviram de base à pregação de Simon Kimbangu (1887-1951). Este líder religioso foi, em 1921, condenado à prisão pelas autoridades belgas que o acusavam de potenciar a insurreição através da sua pregação de oposição ao domínio europeu e através da organização e mobilização dos seus seguidores. Neste sentido, o Kimbanguismo constituiu-se como outro movimento de base religiosa e de forte contestação social e política contra o poder colonial. Em Tales of Faith. Religion as political performance in Central Africa (1997), Mudimbe explora precisamente como « representations of religious systems bind, fuse or oppose eavh other in synthetic discourses which, at a different level, might transmute into metadiscourses, such as those represented by histories of Christianity and Islam » (Mudimbe, 1997 : ix). O objectivo será, pois, o de focar « the phenomenon of acculturation as a figure of métissage – that is cultural ‘hybridation’ witnessing to contemporary dynamics of dialogues between peoples and histories » (Mudimbe, 1997 : xii). Neste sentido, impõem-se uma série de considerações de cariz epistemológico e metodológico. Por um lado, a análise de textos enquanto fenómenos e fenómenos enquanto textos. Ambos são conceptualizados como signos que podem ser comparados e que permitem estabelecer conexões intertextuais e interculturais entre si. Por outro lado, é de realçar que não se trata de estudar o domínio da religião e do religioso em si mesmo, mas sim explorar a sua relação e a forma como é expresso no campo do político. Neste sentido, « it does not matter if a particular study represents a colonial representation or not. What is significant is that a given work, in its enunciation, might performatively unveil the truth of colonialism and its obscure ambiguities. (…) In the African context, the religious structures which translate ideological discourses that fuse with political performances are the clearest. Religious enterprises, in their organization as well as in their aims, render a colonial activity in all its political formalities to the point that the politics of conversion re-enact at once the three stages of ethics : politics of development, while actualizing the postulates of evolutionism, negate and transcend cultural specificities in the name of history ; conscience, reduced to the Christianity paradigm that brings together the light of revelation and the universal mission of the ‘enlightened’ ; and, finally, progress, already predicted in the concept of politics » (Mudimbe, 1997 : 15/ 47-48). Sobre a evocação destas referências pela memória colectiva, André reflectia o seguinte « Isso são coisas muito distantes. (…) Muito artificialmente. Nós temos, por exemplo, o Mandume. Você pega no Mandume, o rei Kwanhama, foi morto pelos portugueses. Nós o consideramos um herói. Você pega numa história de Angola de 500 anos e não encontra uma vez o nome do rei Mandume. Mas o povo de lá sabe. Você pega, por exemplo, na Ngola Zinga no norte de Angola, pega na Rainha Ginga na Matamba…. A única coisa que nós temos escrita da rainha Ginga é o que o colonialismo escreveu. Foi trazida para Luanda, uma das suas servas fez de cadeira e depois foi baptizada como Ana de Sousa pelos portugueses…. etc. (Essas referências) São evocadas hoje e muitas coisas que se diz dessas pessoas é artificial. São evocadas para pôr um personagem angolano no centro. É só isso. São evocados como símbolos da resistência angolana, tá a ver ? ». A convocação destas referências assinala um processo central de reinvenção da identidade colectiva no pós-independência. Foi já anteriormente discutido o protagonismo que o trabalho histórico e a memória colectiva partilham ao nível da construção do Estado-Nação. Neste sentido, as exortações heróicas da memória e das suas figuras icónicas estão claramente associadas à afirmação de uma identidade colectiva que se constrói na oposição face ao opressor. Elas constituem, na realidade, ícones da resistência angolana. A crítica à razão metonímica e à história imperial do colonizador pode também ser observada a partir da narrativa de Samuel, trabalhador-estudante em Portugal há cerca de 7 anos : « Eu nasci 3 anos depois da independência. Estudei os mais antigos reis e sobas, a rainha Ginga, o Kiluanje… Era a disciplina de História Social e estudávamos muito isto dos reis e estudávamos também…. Englobava também a história do colonialismo. (…) [O colonialismo] acaba sempre por interessar… Marcou a nossa história, a nossa ‘descoberta’…. A nossa descoberta como cidadãos, após a independência do país. Ficou aquela frase : ‘os portugueses descobriram’…. Mas não faz sentido. Nós já existíamos. Para alguns é que era desconhecido. Ninguém descobriu ninguém (…). Já havia essas nações todas. Como eram descobridores… ignorantes..., tinham essa forma de ver. Descobrir não descobriram : encontraram ! ». A narrativa imperial das descobertas integra-se no que Bamyeh (1993) denomina de despotismo ocidental. Com ele, a existência do Outro é criada apenas e mediante a presença do europeu ; com ele, e os seus actos de descoberta, o que é narrado é a história triunfal e imperial de Portugal. Refira-se que esta história imperial começa, desde logo, a ser sistematizada. Entre 1507-1508 é finalizada a obra do cosmógrafo português Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de situ orbis , a qual foi apenas publicada em 1892, por ocasião do quarto centenário da descoberta da América por Cristovão Colombo. Na análise que faz da obra, Madureira expõe claramente como « ao converter o presente da sua escrita na teleologia do discurso historiográfico, ao inscrever a sua imagem quinhentista como sujeito singular da história do pensamento, o historiador nega a esses outros a possibilidade de historiar » (1993 : 110). Outro exemplo é o da publicação, em 1555, do Tratado dos Descobrimentos, onde cada capítulo é dedicado aos feitos de cada descobridor português e espanhol. Nesse ano também, António Galvano relatava assim a descoberta do Kongo : « No anno de 1484 foy mãdado por este Rey dom João a este descobrimento Diogo Cão cavaleiro de sua casa : chegado ao rio de Manicõgo, que estea da parte do Sul, em sete ou oyto grãos daltura, pos nelle Pedram de pedra com armas & letras reaes qu’denunciavam que o mãdava, & o anno & era em qu’se proscram nas Cruzes de pao, daqui foram ter ao rio Pico do Pico do Capricornio, pondo padrões, oude lhe pareceo ser necessário, tornando a Manicõgo viose cõ el rey delle, q’mãdou embaixador & homes de credito a este reyno ». A constituição sedimentar desta história triunfal é co-constitutiva de uma imaginação imperial. A construção dos discursos históricos sobre o colonialismo português tende a ser moldada por essa imaginação que coloca no centro o ponto de vista do poder colonial, silenciando as perspectivas, narrativas, experiências e memórias de sujeitos que não falam a partir desse centro e cujas vozes se ancoram noutros lugares de enunciação. Tais discursos, ainda patentes em alguma historiografia e, inclusivamente, ao nível do ensino da história, dificilmente podem responder aos desafios colocados pelas análises pós-coloniais. É que neles parece operar com especial fulgor o velho refrão pós-estruturalista, segundo o qual o que está ausente do texto assinala uma inexistência irrevogável. Estes discursos permanecem, pois, ancorados na fractura produzida por uma linha abissal que designa a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o válido e o inválido. Este silenciamento do ‘outro’ deriva e participa, pois, de uma concepção colonial do mundo e do outro e de uma conceptualização teleológica do tempo linear, geradoras de violência e de classificações hierarquizadas das realidades humanas. Nesta visão, África foi sendo cristalizada como o ‘continente recusado’, o lugar dos extremos negativos, o paradigma radical da diferença radical , cuja integração na dinâmica da história, concebida esta de acordo com as ideias triunfalistas do progresso, foi inaugurada e tornada possível apenas pela intervenção do centro colonial/imperial com as suas tecnologias de domesticação do espaço, do tempo, do corpo, do espírito, da rotina e das relações, legitimadas cientificamente pela atribuição de inferioridade ao colonizado. Ecoando o criticismo de Diop (v.g.,1981) sobre o ahistoricismo com que África foi sendo retratada pela academia, Mudimbe alertava para o facto de que, com a expansão europeia, a Europa submeteu o mundo à sua memória (1994). No campo da história, isto implica um complexo esforço que passa pela crítica epistemológica aos termos e condições em que tem sido produzido o conhecimento histórico, pela desnaturalização dos seus significados e referências cognitivas, imaginários sociais e pela integração dialógica do que tem sido desqualificado. Assim, às ausências e/ou silêncios, todo um outro trabalho histórico se impõe. Com ele todo um vácuo ahistórico é substituído pelo dinamismo e fulgor de percursos e trajectórias históricas específicas : « Mesmo Angola e Moçambique, distanciados pela largura geográfica da África Austral, estiveram desde sempre ligados por uma mesma civilização. Veja-se, por exemplo, ‘o grande conjunto cultural’’ tipificado pelo grande Império do Monomotapa, e que se estendeu aos reinos do Barotse, ao reino da Lunda e ao reino do Catanga, que penetraram Angola até ao seu extremo nordeste. (…) O grande Império do Monomopata mantinha já exércitos bem organizados que enfrentaram os portugueses que queriam apoderar-se das nossas terras e dos nossos recursos. Esses povos mantinham uma tamanha unidade política (…). Quando Diogo Cão chegou ao reino do Congo em 1482, já ali haviam reinado sete reis ! (…) O laureado poeta Agostinho Neto, como que a colocar um ponto final a essa questão, arrematou : ‘NUNCA HOUVE DESCOBRIMENTOS ; A ÁFRICA FOI CRIADA COM O MUNDO !’ » (Carvalho, 1995 : 37/39). As experiências do(s) colonialismo(s) afiguram-se a este respeito como um dos espaços mais propícios para esse encontro dialógico. É, no entanto, de salientar, que tal encontro dialógico não se constituirá enquanto embate de pretensões mutuamente excludentes, do qual resultaria novos universalismos. A ser cumprido, deverá sê-lo na « consciência mais aprofundada e recíproca das muitas incompletudes de que é feita a diversidade cultural, social e epistemológica do mundo » (Santos : 2006 : 21). As histórias coloniais constituem, pois, um espaço por excelência para o exercício da hermenêutica diatópica. No âmbito da história, este exercício transforma-se, assim, num exercício de inter-historicidade. A inter-historicidade requer, por seu turno, a recuperação da memória enquanto objecto de interrogação e fonte de uma epistemologia crítica que incide sobre as condições e os termos da produção do conhecimento histórico validado, assim como sobre as condições e as enunciações dos imaginários sociais que aquele inaugura e sedimenta. Como discutido, a relação entre história e memória não tem sido pacífica, muito menos consensual, dado o privilégio epistémico atribuído à primeria. A relativização deste privilégio é sinal do colapso do monopólio do historiador ao nível da produção do conhecimento. É sinal também de que a memória, para além de ser configurada como campo epistemológico possível, permite aceder, quando enunciada a partir de outros lugares, à diversidade epistemológica que supera a auto-referencialidade do conhecimento hegemónico. Colocar história e memória em relação epistemológica implica ainda, como observado, uma dupla ecologia : uma ecologia dos saberes e uma ecologia das temporalidades. Conducente esta dupla ecologia a uma nova literacia temporal que Santos (vg., 2002 ; 2006) designa por multitemporalidade, inaugura-se a possibilidade da inter-historicidade. A integração destas referências ‘anti-históricas’ não só na produção do conhecimento, como muito especialmente ao nível da compreensão de realidades pós-coloniais contemporâneas, poderá inaugurar uma possibilidade de auto-nomeação. A sua desqualificação, por sua vez, permite dar conta da cegueira de macronarrativas históricas ainda em vigência. Para além de produzir activamente a ‘não existência’ do outro lado da linha abissal edificada pela história canónica colonial, elas são incapazes de reconhecer nestas referências ‘anti-históricas’ o potencial heurístico da experiência vivida e transmitida do colonialismo. Neste sentido, estas referências são mobilizadas nas narrativas como uma força de resistência, na medida em que produzem a desestabilização da história hegemónica, criando novas e impensadas constelações de sentido. E elas detêm também uma força de teorização alternativa, porque obrigam à construção do estatuto epistemológico da memória, colocando-a em relação epistemológica com a história.

A nomeação do colonial : a escravatura

Ao discorrer sobre o colonialismo, o tema da escravatura é, quase de imediato, presentificado. A evocação da escravatura é realizada em dois níveis fundamentais. Ambos têm em comum a violência da negação de se ser sujeito. Um primeiro nível poderá ser descrito como reportando-se às experiências relativas ao tráfego de escravos do Atlântico e à sua parca visibilidade como símbolo do mal que põe a nu o ‘humanismo civilizatório’ da Europa, assim como ao seu tratamento comum como questão historicamente encerrada. O facto de a escravatura ser lida como passado morto e monumento inerte pela razão metonímica prevalecente e, como tal, não suscitar um debate sobre as responsabilidades históricas da escravatura no desenvolvimento histórico das sociedades africanas, nem acordar sequer a admissão de ser necessário uma reparação e a reposição da justiça, constitui uma experiência vital da perenização da injustiça. A escravatura parece operar, assim, na senda de Alexander (2004), como uma espécie de trauma cultural que, simultaneamente, ancora a identidade e impende sobre as reconfigurações e reinvenções quer da identidade, quer do futuro. Recorde-se que, para este autor, o trauma cultural ocorre quando os membros de uma dada colectividade consideram que foram sujeitos a eventos ou processos horrendos que, para além de terem deixado marcas indeléveis na sua consciência e nas suas memórias, alteraram/perturbaram/desviaram quer o seu sentido de identidade, quer as suas possibilidades de futuro. É neste sentido que os traumas de um passado colectivo podem transcender os limites da experiência directa individual, presentificando-se no contexto presente. De modo similar, o estudo de Eyerman (2001) sobre a construção da identidade afro-americana recupera também a análise de Alexander e desvela precisamente a centralidade da memória na identificação, enunciação e representação do trauma colectivo que se vem a constituir como um referencial fundador dessa mesma identidade. Abordando a escravatura como memória colectiva traumática, o autor demonstra que « the trauma of forced servitude and of nearly complete subordination to the will and whims of another (…) came to be central to their attempts to forge a collective identity out of its remembrance. In this sense, slavery was traumatic in retrospect and formed a ‘primal scene’ which could, potentially, unite all ‘African American’ in the United States, whether or not they had themselves been slaves or had any knowledge of or feeling for Africa. Slavery formed the root of an emergent collective identity through an equally emergent collective memory. (…) It was slavery (…) that defined one’s identity as an African American, it was why you, an African, were here, in America » (2001 : 1/16). Nas palavras de Luís, jovem adulto de 35 anos, há 14 anos a residir em Portugal, por ter sido recrutado à força pelas FAPLAs – Forças Armadas Populares de Libertação de Angola, exército do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) : « O tempo do colonialismo era o tempo da escravatura. 500 anos !! Os nossos pais iam trabalhar para Malange, para o algodão… Depois teve a cena do bombardeamento em Malange… ». Noutro testemunho, de Mariano : « Eu, por exemplo, digo o seguinte… o que lembro do colonialismo…. Eu não sofri na carne, na pele, no osso. (…) às vezes conversava com os meus avós… quando eles fizeram as suas tropas, diziam que existiam os capatazes. Trabalhavam nas roças do café, do sisal. Diziam que era um trabalho muito duro. Os meus avós eram submetidos a trabalhos forçados… Depois os escravos… muitos africanos foram escravos para a América ». Na senda de Booth, autores como Olick (2003 ; 2008 ; 2008ª ; 2009), Assmann (1998 ; 2006), Derrida (1998), Ricoeur (2000) e Bernstein (1998), oriundos dos mais variados campos disciplinares, têm almejado, como discutido, uma reteorização das clássicas teorias sobre transmissão cultural aplicadas à memória. É no âmbito deste esforço que se tem procedido a uma nova leitura dos contributos de Freud (especialmente os presentes nas obras ‘Totem e Tabu’ e ‘Moisés e a religião monoteísta’), no intuito de produzir uma compreensão, não psíquica, mas cultural da memória colectiva. Na perspectiva destes autores, a abordagem construtivista à memória peca pelo excesso de instrumentalização do passado que permite e, denunciando os limites positivistas do trabalho pioneiro de Halbwachs (1925 ; 1950), advogam a consideração de dimensões e elementos inconscientes e involuntários da memória colectiva. Nestas novas leituras do pensamento de Freud, os autores procuram responder às críticas levantadas a Freud, nomeadamente as acusações que nele identificam um certo lamarckismo cultural e a repudiada implicação de que a filogenia repete a ontogenia. Procuram também ultrapassar o impasse a que Freud chegou e que tanta controvérsia suscitou : a de como admitir a presença de elementos inconscientes da memória colectiva, sem com isso postular a existência de um inconsciente colectivo. Como discutido, Jan Assmann (1998 ; 2006) avança a este respeito com o conceito de ‘memória cultural’. Este conceito postula a existência de uma mnemohistória, a qual requer que a atenção seja focada, não na reconstrução factual da história, mas nas formas sociais pelas quais o passado, nas suas distorções e transfigurações, é presentificado. Para a mnemohistória, portanto, é a actualidade (leia-se : pertinência) da memória que importa analisar. Nesta óptica, a mnemohistória revela os elementos inconscientes, transmitidos de modo não voluntário, que são considerados como sendo a manifestação de uma memória profunda e que opera como horizonte de sentido. Mas não é esta a leitura que decorre das narrativas de memória aqui discutidas. A realidade é que a nomeação do colonial como escravatura por estas narrativas está, como se verá de seguida, bastante mais próxima das estruturas históricas de dominação colonial efectivas do que a historiografia clássica colonial faz crer, quando dissocia a experiência do colonialismo da escravatura, evocando, por exemplo, a abolição desta última. Por outro lado, o que se observa nestas narrativas é a enunciação explícita e voluntária da experiência colonial como sujeição à escravatura. Não se trata, portanto, de uma enunciação involuntária reveladora de uma dimensão inconsciente e preservada, mediante transfigurações, do passado. Enquanto enunciação voluntária, a nomeação do colonial como escravatura constitui-se também como um ajuizamento moral activo sobre um passado colectivo de violência e que irrompe nos momentos de interpelação directa e nas situações em que o presente, presentificando o passado, se converte também em objecto de ajuizamento moral. Neste sentido, as narrativas de memória transcendem a ideia de inescapabilidade veiculada pela noção de subalternidade de G. Chakravorty Spivak (v.g., 1999), demonstrando outras formas de desarticulação das leituras dominantes sobre a relação colonial. A um segundo nível, a evocação da escravatura é, de facto, presentificada como símbolo máximo do domínio colonial. E aqui encontram-se as disjunções e as dissonâncias radicais entre as leituras dominantes, produzidas pelo centro, as quais, embora reconheçam a violência da relação colonial, dissociam a prática esclavagista, enquanto fenómeno historicamente delimitado, do período moderno do colonialismo português, e as narrativas que situam escravatura e colonialismo moderno num continuum de violência. De facto, no caso das macronarrativas hegemónicas sobre a relação colonial no período moderno, é dado frequentemente realce às formas pelas quais a autoridade colonial se opõe à escravatura. Baseadas nas fontes documentais produzidas pela própria autoridade colonial, estas apresentam um entendimento muito restritivo sobre a escravatura como fenómeno localizado num tempo histórico passado, definido pela compra e venda de corpos, não focando, por conseguinte, e como referia Muwembu, as experiências sociais dos sujeitos colonizados nem as formas pelas quais tais experiências são problematizadas.

E a realidade é que, do século XVI ao século XIX, os portugueses foram consolidando a sua presença no vale do Kuanza e desenvolvendo o comércio de escravos, com o apoio do chamado sistema de vassalagem. Incluindo tratados formais ou acordos verbais, as relações de vassalagem impunham aos chefes locais o pagamento de um imposto de escravos aos portugueses. Medina e Castro Henriques chamam ainda atenção para a centralidade da escravatura no desenvolvimento do projecto capitalista de expansão europeia no ‘Novo Mundo’, na medida em que « a organização da expansão, da colonização de ‘novos mundos’ e do capitalismo que as permite (…) não é possível sem a escravatura » (1996 : 83). Uma demonstração eloquente de tal centralidade é providenciada pelos trabalhos de Duarte Lopes, cristão novo e autor, juntamente com F. Pigagetta, da obra « Relação do Reino do Congo », datada de 1591. Embora tenha sido descrito na historiografia portuguesa como um explorador de África, Duarte Lopes - que viajara para o porto de Luanda em 1578 -, é descrito por Ilídio Amaral como um astuto comerciante de escravos. Reportando-se a um relatório de Duarte Lopes de 14 de Dezembro de 1589 , Amaral demonstra como Duarte Lopes procurou rentabilizar ao máximo o comércio de escravos dos reinos do Kongo e de Angola para S. Tomé e para o ‘Novo Mundo’, advogando, no seguimento do apelo de Bartolomeu Las Casas em 1514, a substituição dos índios pelos africanos como mão-de-obra escrava e defendendo a humanidade deste comércio por comparação à « ‘contínua carniceria de carne humana’ das guerras africanas » (Amaral, 1996 : 66). E, de facto, nesse relatório, Duarte Lopes tecia as seguintes considerações :

« ‘do reino do Congo e Angola (e) S. Tomé se podem retirar cada um ano oito mil escravos, se houver navios em que carregá-los, dos quais só a metade que se saquem para as Índias, pagando a quinze ducados pela licença (…), darão a Sua Magestade sessenta mil ducados cada um ano’. Uma vez que dos escravos embarcados morria ‘a metade no caminho por mar, e outro tanto na terra’ de destino, primeiro que se habituassem a ela, e ‘sobretudo com o trabalho das minas’, tendo em conta que as Índias eram muito grandes e exigiriam sempre mais escravos, Duarte Lopes advogava a necessidade de carregamentos mais volumosos. Na altura, ‘para meter cem nas Índias’ seria necessário embarcar ‘mais de duzentas’ peças, pelas muitas que morriam » (Amaral, 1996 : 66/67).

Segundo Wheeler e Pélissier, « as estimativas mais parcimoniosas do número total de africanos enviados de Angola como escravos ao longo dos séculos variam entre dois e três milhões. Quatro milhões será talvez uma estimativa mais realista » (2009 : 73). Já Américo Boavida, reportando-se a Basil Davidson , especifica que, entre 1486 e 1641, cerca de 1 milhão e 389 mil escravos foram levados de Angola, concluindo, de modo concordante, que, de 1580 a 1836, o total de escravos terá ascendido a mais de 4 milhões.

Do ponto de vista histórico, e na tentativa de estabelecer um diálogo entre estas narrativas em disjunções, refira-se que, no século XIX, se registaram as primeiras tentativas legislativas para lidar com a questão da escravatura. A 10 de Dezembro de 1836, Sá da Bandeira emite um decreto com o qual se procurava pôr cobro ao tráfico negreiro por navios portugueses e a 4 de Setembro de 1850, a famosa Lei brasileira Eusébio de Queirós proibiu o tráfico interatlântico de escravos. Todavia, dado o fraco desenvolvimento económico da colónia e dada a elevada dependência relativamente à mão-de-obra escrava e ao seu tráfico, estas medidas acabariam por ser neutralizadas através da institucionalização de formas encapuzadas de escravatura : os trabalhos forçados e os chamados contractos.

A 29 de Abril de 1858, Portugal decreta que todas as formas de escravatura deveriam cessar no prazo de vinte anos. Tal implicava, obviamente, e como Zau (s/d) bem salienta, que só em 1878 os escravos poderiam deixar de servir os seus senhores. Mas, perante este novo horizonte de possível libertação, e com várias outras alterações legislativas no entre meio, um novo artifício jurídico foi criado, através do código de trabalho de 1878 - Regulamento para os contratos de serviçaes e colonos nas províncias da África portugueza. Com ele é proclamado, no plano formal, o princípio da liberdade contractual em relação ao trabalho indígena – princípio este claramente neutralizado pelo facto do regulamento ter sido construído em função do imperativo da obrigatoriedade compulsória do trabalho indígena. Analisando o texto, conclui Martinez lapidarmente :

« Se os indígenas não podiam (…) por si próprios, promover a manutenção dos seus direitos, a única interpretação que se pode fazer é que não eram considerados capazes, e não sendo capazes não poderiam, como não puderam, exercer a liberdade contratual que inspirou a edição da lei, seja para escolher o patrão para quem trabalhar, seja para fixar as cláusulas contratuais, seja para decidir, ao menos, se queriam mesmo trabalhar para outrem. (…) A palavra ‘serviçal’ utilizada para qualificar o prestador do serviço, no caso os ‘pretos livres’, demonstra que, apesar de serem considerados livres até para contratarem-se, os trabalhadores indígenas continuavam a ser vistos como ‘servos’ » (2008 : 56-57).

Com as pressões da Conferência de Berlim, em 1885, Portugal deveria, como se sabe, legitimar a posse dos territórios ultramarinos através de uma política de ocupação efectiva e do cumprimento de ‘elevar os povos indígenas à civilização’. Quatro anos depois, a Conferência de Bruxelas reforça estes compromissos e a eles acrescenta medidas contra o tráfico da escravatura. Obviamente que a ocupação efectiva dependeria da capacidade de implantar e desenvolver modos de exploração e desenvolvimento capitalista (Santos, 2006), para os quais a questão da força de trabalho é absolutamente central. E novas medidas são levadas a cabo para estes fins, procurando-se encontrar a conciliação entre o fim da escravatura e as exigências da exploração dos territórios coloniais. É o caso do Regulamento da Justiça de 1894 e a introdução do trabalho correcional, assim como a utilização de impostos, nomeadamente o da palhota, como meios indirectos de trabalho forçado. Em 1898, é criada uma comissão « para estudar a maneira de fazer com que os africanos trabalhassem, sem que com isto houvesse ofensa aos princípios liberais, os quais os próprios africanos não reconheceram, exatamente ‘[...] pelo atrazo moral e intelectual [...] produzido pelo [...] longo período de escravidão’ » (B.O.M. nº. 50 de 10.12.1898, pp.484-485, cit in Martinez, 2008 : 82).

A comissão elabora uma série de propostas que inclui o dever do trabalho forçado para os indígenas. O cumprimento deste dever por parte dos indígenas passa a estar sob tutela do Estado. Propunha-se também que, sendo a vadiagem crime, o trabalho deveria ser imposto como preceito legal. Assim, a teórica ‘liberdade contractual’ de 1878 é definitivamente eliminada, pelo que passaria a ser considerado conduta criminosa o não ter trabalho, sendo, por conseguinte, legítimo, moral e legalmente, impor o trabalho. Apresentado a 23 de Março de 1899, o projecto acaba por ser decretado em Novembro desse ano. Observem-se algumas das questões colocadas pelo Decreto :

« Considerando que o regulamento das condições do trabalho dos indígenas, que deveria ter acompanhado as providências altamente humanitárias e generosas que tiveram por intuito banir das possessões ultramarinas portuguezas todos os preceitos legaes que auctorizavam o trafego da escravatura e o estado de escravidão, se torna cada vez mais urgente á proporção que se amiúdam as tentativas e se alargam os emprebendimentos para o aproveitamento e exploração agricola dos terrenos das ditas possessões (…)

Art. 1º Todos os indígenas das províncias ultramarinas portuguezas são sujeitos à obrigação, moral e legal, de procurar adquirir pelo trabalho os meios que lhes faltam de subsistir, de melhorar a própria condição social. Têem plena liberdade para escolher o modo de cumprir essa obrigação ; mas, se a não cumprem de modo algum, a autoridade publica pode impor-lhes o seu cumprimento. (…)

Art. 18º Os indivíduos que (…) contractarem indígenas para serviço domestico ou assalariado, ficam obrigados (…) a desempenhar-se para com os serviçaes dos deveres moraes de uma tutela bem-fazeja, e a empregar os meios possíveis para lhes melhorar a educação, corrigindo-os moderadamente, como se eles fossem menores. (…)

Art. 33º Os indígenas que desobedecerem á intimação e resistirem á acção compulsória (…), os que se evadirem dos logares onde lhes tiver sido dado trabalho (…) ; os que (…) se recusarem á prestação do trabalho, serão entregues ao curador dos serviçaes e colonos da comarca (…) para serem condemnados a trabalho correcional ».

Estas transfigurações vão sucedendo-se umas às outras, sendo evidente que a instauração da República, em 1910, não representou nenhuma ruptura ao nível das práticas de trabalho forçado. Wheeler e Pélissier referem a este propósito que « Em 1911, a República aprovou um regulamento que era praticamente uma cópia da lei de 1899, embora estabelecesse normas mais restritivas aos empregadores portugueses : o termo do contracto era limitado a dois anos e havia novas sanções para os empregadores que batessem nos trabalhadores africanos » (2009 : 168-169). Por seu turno, a reforma laboral de 1914 veio a institucionalizar a obrigação ao trabalho de todos os africanos (com a excepção dos assimilados) durante período um pré-determinado.

Numa outra (aparente) perspectiva, a nefasta prática da escravatura é atribuída ao nativo e a defesa da sua eliminação passa não só pelo ideário da missão civilizadora, como também pela necessidade urgente de se arranjar braços para a exploração da colónia. Trata-se de uma estratégia de inversão dos termos de acusação que é relativamente recorrente. No seu opúsculo, o capitão de infantaria Lobo da Costa perfilha esta posição. Referindo-se à Lunda, considera :

« Todos os que teem mais ou menos conhecimento de coisas de Africa, sabem que o negro só reconhece o direito do mais forte (…). Ora é justamente baseado n’esse direito (…) que o gentio faz a guerra entre as diversas tribus. Essas luctas (…) obedecem sempre no fundo ao espírito da ganancia e teem por fim o roubo e a rapina. (…) Terminada a razia (…) [é] princípio assente e reconhecido que o prisioneiro de guerra é, para todos os efeitos, escravo do vencedor. (…) os homens, mulheres e creanças que ficaram em poder do mais forte teem para este o valor de moeda corrente em todas as transacções. E são, em geral, estes infelizes que os próprios europeus se veem obrigados a adquirir, visto que é a única forma de obter os serviçaes de que necessitam » (1911 : 48).

Leituras como estas produzem o duplo efeito de legitimação da actuação da autoridade colonial, dados os seus propósitos ‘humanistas’ e ‘civilizatórios’, e de desresponsabilização e apagamento do tão recente comércio negreiro transatlântico. Medina e Castro Henriques são lapidares a este respeito. Para os autores :

« A literatura ocidental tem multiplicado os documentos e as análises destinados a provar que, feitas as contas, os Europeus não tinham inventado nem a escravatura nem o comércio de escravos em África. A escravatura seria já, muito anteriormente ao século XV, uma prática generalizada nas sociedades africanas ». Todavia, sublinham fortemente, « nenhuma língua africana conhecia, antes da chegada dos Europeus, a plavra escravo e menos ainda escravatura (…). As formas de escravatura africana eram bastante ténues e implicavam a prazo mais ou menos longo, a integração nas estruturas familiares. O parentesco permitia tornar flexível o sistema e repelir as formas violentas de dominação e de exclusão. O simples facto de existirem mecanismos que permitiam a alguém – homem ou mulher – tornar-se voluntariamente escravo de outra pessoa, sublinha a enorme flexibilidade do sistema, pois aquele que optava pela escravatura fazia para resolver um problema pessoal – fome ou dívida, por exemplo, recuperando a liberdade, apoiado pelo ‘proprietário’, logo que as circunstâncias se tornassem mais propícias. Da mesma maneira, em muitas sociedades africanas, o escravo dispunha de formas ‘legais’ de mudar de proprietário, caso o desejasse. No espaço angolano, numa vasta região que abrange Kassanje, Bié e a Lunda, podemos dar-nos conta, através dos documentos existentes, que os homens e as mulheres escravos se inserem numa situação muito mais complexa do que aquela que considera o escravo como coisa ou bem de alguém » (1996 : 90).

Lobo da Costa, atrás mencionado, advogava ainda que, para alcançar o objectivo de findar com a escravatura, seria imperativo criar no gentio necessidades que não pudesse satisfazer, com as quais « se obrigaria o gentio ao trabalho, por necessidade, o que traria como consequência inevitável o aniquilamento da escravatura por desnecessária » (1911 : 49). Desse modo, a eliminação da escravatura não perigaria o desenvolvimento capitalista da colónia, tornando os sujeitos coloniais em mão-de-obra e, simultaneamente, em consumidores. Sublinhe-se, ainda, o facto, segundo o qual a exploração forçada de mão-de-obra constituía-se como componente das dinâmicas de cooperação entre os poderes coloniais em África Subsahariana. Boavida faz menção a este respeito às convenções entre Portugal e a União Sul-Africana de 1926 e entre Portugal e a Rodésia do Sul em 1934. Renovadas anualmente, ambas estabeleciam que Portugal deveria « enviar cada ano cento e sessenta mil trabalhadores negros para as minas da Rodésia do Sul e da República Sul-Africana. Aqueles que morrem, quer durante o trajecto, quer nas minas, devem ser substituídos gratuitamente pelas autoridades portuguesas » (1981 : 72).

Já as reformas levadas a cabo por Adriano Moreira, em 1961, nomeadamente a revogação do Estatuto dos Indígenas de 1954 que precedeu o novo Código do Trabalho Rural, de 1962, conviveram com práticas anteriores. Por seu turno, o novo Código do Trabalho Rural entrou em vigor a 1 de Outubro de 1962, através do Decreto de Lei n.º 44309 de 27 de Abril de 1962. O Código foi redigido em conformidade com o instituído pela Constituição Portuguesa vigente na altura, cujo artigo nº 106 definia claramente que « O Estado pode forçar os indígenas a trabalhar em serviços públicos de interesse geral para a colectividade ». Para além disso, ao não permitir, por exemplo, o retorno das terras usurpadas a camponeses, ao instituir as chamadas Juntas de Povoamento, com as quais se re-organiza a política de criação de colonatos europeus, ao reconhecer, na sua alínea n.º 3, que « a tarefa da ocupação e desenvolvimento dos territórios ultramarinos implicou o reconhecimento de que as populações africanas (…) não estavam em condições de eficazmente defenderem os seus direitos e interesses dentro de um sistema caracterizado pelo salário », ao reprimir a actividade de associações e sindicatos, o novo Código de Trabalho Rural afigura-se como uma continuação do que Boavida classifica de « política colonial escravagista do Governo Português », a qual é inclusivamente inconstitucional, na medida em que é « incompatível com o princípio de igualdade de direitos de todos os cidadãos portugueses » (1981 : 41). Estas supostas cedências não aplacavam a revolta dos movimentos nacionalistas. Wheeler e Pélissier explicam a situação :

« Inicialmente, esta mudança teve pouco efeito prático, pois o anterior indígena ainda tinha a sua caderneta e ainda se encontrava sob a obrigação moral de trabalhar ; logo, era provável que fosse sujeito a um período de trabalho contra a sua vontade (sob o regime dos ‘contractos’). (…) Segundo os nacionalistas, os portugueses estavam a oferecer a sua civilização a um povo que exigia a independência. (…) Para as massas, semelhantes considerações eram irrelevantes ; elas apenas conseguiam entender que ainda se encontravam legalmente obrigadas a trabalhar sob contracto e que não podiam viajar sem autorização (a guia) » (2009 : 277-278).

As dissonâncias entre olhares historiográficos clássicos que informam ainda grande parte do senso comum da antiga metrópole, e estas narrativas de memória são bastante significativas. O valor destas dissonâncias deverá ser, pois, re-avaliado. Na sua apreciação normativa, a dissonância parece carregar em si o fardo do caos dificilmente inteligível. Estas dissonâncias não são, porém, o sinal do caos e da incomunicabilidade ; são sinal de complexificação, por desfazerem o privilégio epistémico do centro e por incluírem, no âmbito do exercício de inter-historicidade, os silêncios produzidos por aquele (Gomes ; Meneses, 2011). Catherine Reinhardt, v.g., mapeia precisamente estas dissonâncias em torno da comemoração do 150º aniversário da abolição da escravatura nas Caraíbas, demonstrando como a comemoração e o objecto de comemoração são alvo de disputas entre a narrativa francesa que descreve a abolição como legado do Iluminismo e da Revolução Francesa e as lutas dos escravos como estando numa relação de continuidade relativamente aos contributos de Montesquieu e Diderot, e as histórias e memórias subalternas, assim como as reivindicações pela comemoração, não da abolição, mas da luta anti-esclavagista. Escreve Reinhardt, « 1848 became a moment of victory for the French, the victory of humanitarian ideology over a horrific system of human exploitation. In their reactions to the 1998 commemoration, people from the French Caribbean (…) brought into focus the power of the slaves’ struggle that made abolition inevitable. Alfred Marie-Jeanne (…) clearly distinguished the celebrations on his island from those organized in France : ‘We do not celebrate the abolition of slavery ! We commemorate the antislavery insurrection. There is a difference. The Negroes did not wait for a divine liberator from metropolitan France to lead the revolt. The slaves conquered their freedom on their own » (2005 : 13). O que Reinhardt põe assim em evidência é, fundamentalmente, o que Delpechin classifica de síndrome de abolição, o qual « can be clearly seen in the words and actions of the ‘abolitionists’ who fought to end slavery ; crediting themselves as the ones to realize its inhumanity ; as if those oppressed by slavery had not clearly been aware of this » (2005 : 6). Do ponto de vista, portanto, das narrativas dos sujeitos outrora colonizados, o entendimento da escravatura é muito mais amplo e, sendo mais amplo, nele cabem várias formas de violência e de negação de se ser que vão além da compra e venda de corpos. Na realidade, tal como a escravatura, o colonialismo nega a possibilidade de se ser. Considere-se, novamente, a reflexão de André :

« Eu cresci dentro do colonialismo, não é ? Não digo que todos os colonos usavam o terror em relação a nós, mas o terror do colonialismo esteve sempre connosco. Sempre connosco. Era uma atitude impeditiva, que nos impedia de progredir, nos impedia de avançar. E sempre que nós queríamos avançar, eramos reprimidos, não era ? Ou levados para o contracto, ou presos, ou… sei lá. Foi uma situação bastante difícil. Era uma impossibilidade. Você não podia ser aquilo que queria ser. Isso é que era verdade. Isso é que era verdade. (…) A independência não é como algo dada, no prato, ‘toma lá’. Mas como um alcançar da independência do sujeito para se governar a si mesmo. É independência política : o indivíduo governa-se a si próprio. Em segundo lugar, essa independência envolve vários aspectos da vida humana. Até na religião tem uma influência. Eu gosto muito de relacionar a religião com a política. Chamam-me político, às vezes. Mas eu gosto muito de relacionar a religião com a política, porque eu não posso só falar da religião como coisa espiritual. Eu relaciono-me sempre com uma coisa concreta. Todo o homem é um homem político ; toda a mulher é uma mulher política, porque se relaciona com o dia-a-dia, com a vida. E só assim a política tem valor, só assim a religião tem valor para mim. Só assim se pode falar da independência. Da possibilidade de ser ». Nestas narrativas, a temporalidade linear que localiza e delimita sequencialmente a escravatura e, posteriormente, formas modernas de colonialismo, não fazem sentido. Urge, pois, realizar a este nível uma ecologia das temporalidades. Parte integrante da sociologia das ausências, a ecologia das temporalidades desafia directamente as relações de dominação que assentam na hierarquização de sentidos distintos de temporalidade, pois

« São essas hierarquias que reduzem tanta experiência social à condição de resíduo. As experiências são consideradas residuais porque são contemporâneas de maneiras que a temporalidade dominante, o tempo linear, não é capaz de reconhecer. São desqualificadas, sumprimidas ou tornadas ininteligíveis por serem regidas por temporalidades que não se encontram incluídas no canôn temporal da modernidade capitalista ocidental » (Santos, 2006 : 102).

Nenhuma das sequências lineares que guia a historiografia colonial é uma unidade fechada em si mesma e o colonialismo moderno e tardio é, nestas narrativas, uma transfiguração da escravatura. Através, pois, da ecologia das temporalidades, visibilizam-se os silêncios das narrativas dominantes, notavelmente os que derivam da invisibilização e desqualificação de interpretações, leituras e memórias de sujeitos outorora colonizados. A ecologia das temporalidades opera aqui como porta de entrada para aceder às dissonâncias, discontinuidades e disjunções das experiências históricas do(s) encontro(s) colonial(ias).

Reportando-se a Benjamin, Santos (2002) demonstra, como observado anteriormente, que a teoria da história da modernidade foi construída em função da ideia de futuro, sendo este equacionado com progresso. Nesta concepção, o passado tende a ser sub-representado como a acumulação fatalista, conformista de catástrofes sobre as quais nada se pode fazer. É o lamento por este passado morto e neutralizado que deverá uma política de memória calar, fazendo-o ressuscitar reflexivamente de forma a identificar nesse passado a compreensão do presente actual e o potencial disruptivo de conflitualidade social. Na realidade, o desafio lançado por Santos ressoa fortemente a crítica de Walter Benjamin para quem uma visão da história como uma espécie de ‘procissão triunfal da civilização’ deverá ser substituída pela imagem que se espelha nos olhos do anjo da história na sua contemplação do passado : uma imagem pejada de ruínas do sofrimento humano. A possibilidade de partilhar este olhar depende da capacidade em dele remover os enviesamentos interpretativos a que a ideia da história como progresso da perfectibilidade infinda obrigou, assim como os efeitos de estrangulamento e invisibilização do sofrimento que produziu. Sendo pois, germana do direito à história e situando-se fora do jugo da razão metonímica, esta convocação pós-colonial da memória diz respeito ao repensar do que pode ser a base epistemológica (e, de modo mais fundamental, ontológica) de sujeitos silenciados que de objectos descritos se reconfiguram em agentes de enunciação, nomeação e produção de conhecimento.

A nomeação do colonial : o terror

As narrativas de memória sobre o colonialismo são também estruturadas pela evocação de momentos de extrema violência da relação colonial tardia. Estas centram-se, sobretudo, no período inicial da resistência armada contra a presença portuguesa. A evocação destes momentos é largamente compreendida à luz da discussão de Zerubavel (2011) acerca da relação entre o processo de construção nacional e a produção e partilha de uma visão genérica da história nacional. Re-afirmando a identidade nacional, esta visão genérica é organizada em marcos simbólicos e icónicos, bem como em referências fundacionais. Diz-nos o autor : « Collective memory provides an overall sense of the group’s development by offering a system of periodization that imposes a certain order on the past. (…) this periodization involves a dialogue between the past and the present, as the group reconstructs its own history from a current ideological stance. (…) The power of collective memory does not lie in its accurate, systematic, or sophisticated mapping of the past, but in establishing basic images that articulate and reinforce a particular ideological stance » (2011a : 218). A selectividade dos momentos evocados prende-se claramente com o facto de estes constituírem momentos de particular violência. No cômputo global, são três os momentos mais evocados : a chamada revolta do algodão da Baixa de Cassange, o 4 de Fevereiro e o 15 de Março. 4 de Janeiro de 1961 marca o início da revolta contra a dominação colonial, e que foi denominada como ‘Guerra da Maria’. Esta designação é normalmente interpretada como sendo uma homenagem a um dos seus instigadores, António Mariano. Tendo tido contacto com o nacionalismo da UPA – União dos Povos de Angola no Congo e inspirado pelo Kimbanguismo, Mariano terá liderado um movimento de protesto, conhecido como ‘Maria’ (Cann, 2011). A revolta foi também acompanhada pelas actividades do PSA (Parti Solidaire Africain) de Antoine Gizenga, fundado em 1959, no então Congo Belga, e que, a partir da independência, estendeu a sua acção a Angola, centrando-se nos distritos de Malange e Lunda. No centro desta interpretação, está implícita a teoria da subversão vinda do exterior. Esta ganhou significativa popularidade no regime colonial. Ela assenta, essencialmente, em argumentos que retiram a capacidade de autonomia e iniciativa das populações locais, reduzindo o papel destas a resultados de manipulações estrangeiras, e que menosprezam as raízes da revolta, procurando preservar, por essa via, a mitologia de uma nação pluri-racial orgânica e harmoniosa.

A revolta foi levada a cabo na Baixa do Cassange, norte de Angola, pelos trabalhadores forçados dos campos de algodão da região. A insubmissão desta região não foi, de todo inédita. Os primeiros protestos locais datam de 1927, um ano depois da instalação da Companhia Geral dos Algodões de Angola - COTONANG (consórcio luso-belga, criado em 1926), e a eles estão associados alguns movimentos de inspiração religiosa como o Kimbanguismo, atrás referido. Saliente-se que a Baixa de Cassange foi desde sempre profundamente resistente à presença colonial. De facto, o reino de Cassange, que terá sido estabelecido entre 1540 e 1560, só entre 1911 e 1913 é que foi subjugado pelos portugueses (Wheeler ; Pélissier, 2009).

Edíficio da Cotonang, s/d.

Trabalhadores nos campos de algodão da Baixa de Cassange.

A cultura obrigatória do algodão foi introduzida em 1947 em benefício da COTONANG, à qual foi concedida a exploração de uma área de 80.000 km que incluía os distritos da Lunda e de Malange. Era assente em formas particularmente violentas de trabalho forçado que, produzindo a reificação dos sujeitos coloniais, se transfigurava como forma moderna de escravatura. De acordo com Pissarro, a exploração era ocupada por 150.000 pessoas (35 mil agricultores e respectivas famílias) :

« Todos eles coagidos a cultivar e vender o algodão (…) à COTONANG (…). As gentes da Baixa de Cassange, mulheres e crianças incluídas, são retiradas das suas aldeias e obrigadas a cultivar o algodão em terrenos indicados pela empresa. Salários não existem. Os únicos rendimentos dos agricultores aparecem no final de cada campanha com a venda obrigatória do algodão à COTONANG que estabelece preços reduzidos (…). Se alguma cheia ou imprevisto acontece nas lavras que tinham a seu cargo, os agricultores ficam entregues aos seu azar : a COTONANG não os compensava (…). Se o terreno que cultivavam começar a dar sinais de saturação, os capatazes da empresa forçam-nos a deslocar-se para locais a quinze ou vinte quilómetros das suas cubatas. (…) Os camponeses da Baixa de Cassange pouco mais são do que escravos » (s/d).

Este regime de ‘cottoncracy’ era, pois, claramente baseado em formas de trabalho forçado que (re) presentificavam a escravatura. A produtividade dos agricultores era objecto de forte vigilância, exercida por negros recrutados do Exército, responsáveis por assegurar que os agricultores produziam apenas algodão, não sendo autorizado o cultivo de alimentos para as famílias nas áreas designadas para cada agricultor (Cann, 2011). Os trabalhadores entraram, pois, em greve no início de Janeiro – época de plantio, recusando pagar o chamado imposto de capitação , queimando as cadernetas de identificação e as sementes da COTONANG, cortando estradas e pontes, matando gado, organizando marchas, assaltando lojas e missões, etc. Ainda nesse mês, após a morte de um capaz mestiço, Manuel Martins, funcionário do Gabinete dos Negócios Políticos dá conta num relatório confidencial da gravidade da situação e do refrão da revolta : « mueneputu tuge ia gingilis » (« o governo português é merda de passarinho »).

Refira-se que este género de regime de ‘cottoncracy’ foi também implementado na região de Icolo-Bengo após a proclamação do Acto Colonial, em 1930. Anteriormente, os modos de produção locais de algodão estavam nas mãos da burguesia angolana local (branca, mestiça e negra). Um dos filhos desta burguesia, hoje historiador, dá o seguinte testemunho :

« … a região de Icolo Bengo, zona oriental, próxima de Kuanza Sul, onde havia muito algodão. O algodão havia sido implantado lá cerca dos anos 20, porque aquela região (…) é uma região de terras negras que são raras em Angola. Essas terras negras são imensamente fertéis (…). Até 1930, seja a antiga burguesa angolana – os chamados angolenses – seja os descendentes dos colonos brancos europeus (…) produziam algodão. O algodão era a principal riqueza dessa zona. Este algodão era depois exportado para Portugal. Só que aconteceu o seguinte : (…) as máquinas é que eram muito antigas e não estavam em condições de trabalhar o algodão que era re-exportado para Inglaterra. Só que, em 1930-32, na sequência do Acto Colonial, os civilizados, os assimilados, entre aspas (ponha entre aspas, porque eu tinha uma tia que falava perfeitamente o português e recusava a assimilação, porque achava que era uma humilhação. Era uma tia negra) (…). A minha tia, como o meu tio, que eram grandes proprietários, foram expropriados e o algodão acabou. Ficaram muito mal, quase na miséria. Porquê ? Por causa de duas grandes empresas – a Lagos & Irmãos e a Carvalho Freitas. Só eles tinham autorização de explorar o algodão (…). E a população dita indígena era obrigada a plantar algodão antes de tudo. O milho que nos veio das Américas, a batata-doce, a massambala, o inhame e outros produtos hortículas (…) que eram a base da alimentação… tudo isso só podia ser plantado depois de estar assegurada a colheita de algodão. Resultado : por vezes havia fome numa zona muito rica. E os pobres dos indígenas, dos chamados indígenas, se não conseguissem produzir a quantidade de algodão que havia sido estipulada pela administração colonial (temos aqui uma colaboração muito bizarra entre Estado e interesse privado) (…) Então, precisamente com o Acto Colonial, há esta lenta destruição da burgueia angolana (a qual) foi-se tornando cada vez mais escura (…). Houve na minha região uma miséria tremenda a partir de 1930. O meu pai ficou arruinado. O meu tio arruinado ficou. A minha avó arruinada ficou. As suas terras foram expropriadas (…). Por outro lado, o preço do algodão era o mais barato do mundo. O desgraçado do camponês a quem a administração colonial…. Vinha o chefe de posto ou o administrador, por vezes com os seus cipaios (ou seja, a tropa local africana)…. iam de lavra em lavra e determinavam : ‘Olha, tu vais plantar isto neste espaço’. Aquilo era demarcado. E a família inteira tinha que trabalhar ali. E ficava uma outra parte para a economia de sobrevivência, para a alimentação. As autoridades não se interessavam se o milho dava ou não dava. O algodão tinha que dar sempre. E se as poopulações não produzissem a quantidade de algodão, eram castigadas. Eu vi isso. Eram amarradas grilhetas às pernas dos homens e eram chicoteados e obrigados a trabalhos forçados. Isto contra a lei, porque a lei já tinha abolido o trabalho forçado. Mas na prática havia. Para além da humilhação de irem em fila indiana com um capataz e um chicote enorme, o cavalo marinho – que era o chicote feito com a pele do hipopótamo. E, então, o desgraçado do campónio levava 100 kg e só registavam 70-80kg. Portanto, só recebia o pagamento de 70-80kg. O camponês sabia perfeitamente que estava a ser enganado, mas mal podia abrir a boca : levava logo uma chicotada. Isto são coisas que eu vi. Uma das coisas que muito me revoltou era uma mulher, uma campónia, cujo filho… com quem eu brincava muito. (…) Essa campónia era muito gentil. Ela oferecia-me sempre milho verde e eu gostava muito. (…) E como o meu pai tinha uma loja do mato, eu dava-lhe açúcar e pão e outras coisas (…). Um dia houve uma seca enorme. E houve uma deputação de comerciantes e burgueses locais, angolanos e portugueses, junto do governador para que se fizesse uma ajuda aos camponeses (…). A resposta foi que ia ver, que ia comunicar ao Ministro das Colónias (…) Mas o Marcelo Caetano tinha sido ministro pouco antes e ainda tinha uma palavra a dizer. Isto foi em 1948. E o que ele disse foi : ‘Estes negros são uns fingidos. Eles são é preguiçosos. Não querem trabalhar. Não senhor, não se dá ajuda nenhuma’. E houve uma fome tremenda. E qual o meu espanto, eu vejo aquela mulher, aquela camponesa de quem eu gostava tanto, deitada morta diante da porta do meu quarto. Isto para mim foi tão violento que eu disse não : são bandidos ! Eu tinha 8 anos ».

A 4 de Fevereiro de 1961 (data do assalto à Prisão de Luanda e a outras instalações da autoridade colonial) são enviadas forças militares, cuja acção é reforçada por bombardeamentos pela Força Área. Nas narrativas relativas à memória colectiva referentes à operação militar, conhecida por Operação de Cassange, é denunciado o uso, pela primeira vez, de bombas incendiárias Napalm. A acusação pública original, segundo a qual a Força Aérea Portuguesa terá recorrido ao Napalm, incinerando 17 aldeias e provocando cerca de 5 000 mortes, data de 1970, com a publicação de um artigo da autoria de José Ervedosa, antigo piloto que desertou para a Argélia, no Jornal Africasia. O relato foi posteriormente retomado por Pélissier (1978), por Freaudenthal (1995), por Camacho (2002) e por Wheeler e Pélissier (2009).

O assalto à Cadeia de São Paulo, à Esquadra da Polícia de Segurança Pública e à Casa da Reclusão de Luanda com o fim de libertar presos políticos, na noite de 3 para 4 de Fevereiro foi consagrado como o início da luta armada contra o domínio colonial, sendo o 4 de Fevereiro feriado no país.

Fonte : Guia do alfabetizador « A vitória é certa : a luta continua ». República Popular de Angola. Ministério de Educação. 1980. O episódio do 4 de Fevereiro não se encontra satisfatoriamente esclarecido, persistindo dúvidas sobre a autoria, entre outras questões (Wheeler ; Pélissier, 2009). Por seu turno, o 15 de Março de 1961 evoca o massacre, o « terrorismo » e a « guerra subversiva » levados a cabo contra a população colona no Norte de Angola pela UPA. As narrativas de uma parte significativa da historiografia militar portuguesa contemporânea descreve a situação angolana da seguinte forma :

« Havia já um partido emancipalista angolano a lutar pela independência de Angola (…) inserido nas lutas pan africanas, e os portugueses não sabiam. Tratava se da UPA (União dos Povos de Angola) chefiada por Holden Roberto, Movimento e personalidade que ninguém conhecia, que fora criado em Accra, no Ghana, em 1958. Até à independência do Congo Belga não pôde instalar se nesta colónia porque os belgas o não permitiam mas, a partir de então, fixou se na fronteira de Angola, ao norte, frente a S. Salvador e iniciou imediatamente a agitação em território angolano subvertendo as populações e introduzindo armas, situação que as autoridades locais denunciavam mas a Metrópole ignorava. Ou seja, estava se a gerar a olhos vistos uma guerra que seria de carácter subversivo e de guerrilha, dentro de Angola, e ninguém por cá sabia disso ou tomava medidas adequadas. Não se acreditava em nada de avassalador, esquecendo se do carácter internacionalista da subversão e as características de uma guerra subversiva. (…) Este erro de apreciação que foi cometido pelo nosso governo retardou todas as hipóteses de uma defesa atempada, e possibilitou o massacre » (Nunes, 2012 : 6).

Sobre o massacre do dia 15 de Março nos distritos de Cuanza Norte, Uíge e Zaire, o Tenente-Coronel Pires Nunes fornece a seguinte descrição :

« Foram, então, assassinadas muitas centenas de brancos e alguns milhares de pessoas de outras raças, sem discriminação de sexo e idade, as habitações e as estruturas económicas foram destruídas, as estradas e as pontes foram cortadas, o pânico e o caos instalaram se por todo o lado. As populações aterrorizadas refugiaram se nas matas, fugiram para os países vizinhos ou acolheram se nalguns grupos de resistência que os sobreviventes haviam constituído em certas localidades de Carmona, Negage, Sanza Pombo, Santa Cruz, Quimbele e Mucaba, entre outras. Ali aguardavam a chegada de socorro, que tardava ou não chegava mesmo por falta de tropa em quantidade suficiente. A Metrópole continuava paralisada e, durante dois meses, os elementos da UPA tiveram tempo para levar a sua selvajaria a todo o Norte » (2012 : 8).

Receando as implicações internacionais, Portugal retardou a divulgação dos eventos ocorridos a 15 de Março. Sobre as estratégias de divulgação, Vaz faz duas observações relevantes. Em primeiro lugar, destaca a inicial minimização dos eventos, à qual se seguiu uma política de « empolamento propositado quando se julgou oportuno substituir, no inconsciente colectivo, o apaziguamento pela revolta ». A partir desse momento, procurou-se atingir simultaneamente vários objectivos, desde o « exarcebar a pulsão sentimental, através do relato e da exposição fotográfica das atrocidades » e o « desacreditar a idoneidade dos sublevados, apresentando-os como drogados ou bêbados » até ao « demonstrar a participação de estrangeiros tanto no planeamento como na execução das acções » e a « inspiração ideológica da área comunista » (1997 : 78-79). Guerra partilha a mesma leitura. Para o autor, « Os relatos da revolta do Norte, explorando os casos reais de terrorismo e barbárie, criaram o estado de histeria colectiva de que Salazar precisava para mandar avançar para Angola ‘rapidamente e em força’. Mas esses relatos escamoteavam por completo o fundo da questão (da revolta) (…) bem como o carácter igualmente terrorista da resposta do colonialismo » (1988 : 30).

Fonte : Diário de Lisboa. 17 de Março de 1961.

Fonte : Diário de Lisboa. 18 de Março de 1961. Título : « A força pública restabelece a ordem com a colaboração das populações locais nas regiões do norte de Angola onde se registaram os últimos acontecimentos ».

O que persiste, todavia, na memória colectiva e nas narrativas produzidas pela ex-metrópole é predominantemente a imagem horrenda do « terror negro ». Nelas tende a ser silenciado o « terror branco ». Este « terror branco » teve início logo após os eventos de 4 de Fevereiro e intensificou-se, numa espiral de paranóia vingativa, depois do 15 de Março, com perseguições e assassinatos indiscriminados de angolanos por civis e milícias, havendo a obsessiva e paranóica incerteza sobre como distinguir o « negro perigoso do indígena fiel » (Mateus ; Mateus, 2011 : 149). De facto, todo o angolano negro era visto como um potencial terrorista :

« Empoladas pelos rumores, as histórias de horror acenderam um rastilho de vingança (…). Disparavam mal viam alguém, incendiavam senzalas e só poupavam os prisioneiros até eles terem falado. O massacre dos africanos foi tão brutal e indiscriminado quanto tinha sido o dos brancos (…) Levou a massacres, instigados pelos portugueses, de muitos quimbundo, no vale do Cuanza, tão longe que chegaram a ocorrer para lá de Malange e em algumas partes do centro e do sul de Angola, e à perseguição, aprisionamento e, por vezes, desaparecimento de certas elites africanas em várias cidades. Agora havia apenas inimigos e suspeitos » (Wheeler ; Pélissier, 2009 : 258/260).

Fonte : http://entreasbrumasdamemoria.blogs.... Consultado a 1 de Maio de 2012.

Fonte : Horário Carvalho de Oliveira Caio, 1961, « Angola, os dias do desepero ». Edição de autor. Imagens disponíveis em : http://ultramar.terraweb.biz/RMA/Im.... Consultado a 1 de Maio de 2012. De facto, após o assalto à prisão de São Paulo, à Casa de Reclusão Militar e à estação de rádio, foi formada um mílicia branca que encetou, a 5 de Fevereiro, um massacre de africanos, ao qual se seguiram rusgas e execuções sumárias. A 10 de Fevereiro nova sublevação de 70 homens que tentam novamente tomar de assalto o posto administrativo de São Paulo, despoleta outro massacre da população africana. O terror branco era dirigido, sobretudo, contra os ‘calcinhas’ – alcunha depreciativa atribuída aos assimilados, considerados a verdadeira ameaça, sendo o africano ‘tribalizado’ considerado como sendo relativamente inofensivo, dada a sua natureza ‘infantil’ e ‘primitiva’. Os angolanos que soubessem ler e escrever foram particularmente atingidos pela violência da reacção branca, logo a seguir à revolta da Baixa de Cassange, onde até os livros foram queimados. Do ponto de vista da experiência e da memória do continuum de violência da relação colonial, esta, de facto, dificilmente poderá ser periodizada em unidades rígidas. A narrativa de Vítor, dá conta da continuidade das práticas de violência : « as pessoas têm ideias muito acentuadas do que era o regime colonial, sobretudo no que diz respeito ao trabalho dado aos povos indígenas. (…) A PIDE é quase uma conversa sobre o colonial…. Todos têm esta memória da polícia. Em função disto, surge tudo o que tem a ver com o modus vivendi…. O regime colonial tenta transpor para a realidade angolana uma série de modos de vida que eram contrários à forma como o povo vivia (…) Minha mãe e os meus tios falam…. Eram obrigados a ter uma forma de vestir, ser e estar que eram coloniais. Não tinha nada a ver connosco. Era a imposição de uma cultura diferente. (…) Meu padrinho era o administrador de S. Nicolau [Prisão Bentiaba]. E lembra-me eu garoto (…) de ver ele… era uma pessoa com muitos cães….. e soltava os cães nos negros. Ele era branco. Nesta cadeia foram deportados muitos nacionalistas para lá. Esta cadeia é um palco da memória colectiva de muita coisa ».

As irrupções da memória : como o presente chama o passado

A evocação destas memórias de violência no presente é de enorme relevância. E essa evocação prende-se, não só com a longa duração da relação colonial portuguesa, mas também com os constrangimentos vividos no presente, concebidos como herança da dominação colonial. Encontra-se aqui, portanto, uma complexa dualidade nas abordagens à memória, assinalada por Booth quando advoga a adopção de uma posição intermédia entre o passivismo (a noção que somos a nossa herança) e a perspectiva construtivista : « On one account, we always see the past from the vantage point of the present, and from its needs and conflicts. The contours of our appropriation of the past change, then, according to what presses in the here and now (....). The constructivist reading is surely right in this sense : that all of these actions contain at least in principle an element of will, of artifice, in the present. (….) At the same time (…) the thick memory of a life-in-common, the tectonic plates resting one on the other, deeply inform the present so that its actions are never wholly separable from the past » (2006 : 67). Esta complexidade poderá ser escalpelizada em vários níveis. Com um carácter profundamente reflexivo, as narrativas de memória enunciam (pese embora, como observado, a asserção segundo a qual o colonialismo ‘já bazou’) as heranças da dominação colonial, a qual é fundamentalmente descrita como a impossibilidade e a negação de se ser. De facto, por um lado, são enunciadas as continuidades pós-coloniais que dizem respeito à reprodução de relações sociais de cariz colonial, especialmente por referência à raça, enquanto meio de classificação social. Nestas narrativas, é-se confrontado com as irrupções de memória, de que falava Whitehead (2004), as quais desvelam, simultaneamente, que o passado está longe de ser enterrado.

Vem do passado

Nelson, de 30 anos, na diáspora há três anos, observava : « é nas conversas… chamam-te ‘aquele branco’, ‘aquele preto’. Não é fixe. Existe bué serem os brancos que têm direito, tiram trabalho (…) é uma maka em Angola agora. Havia uma empresa que tinha essa makologia : só por ser branco, fica o branco, porque o director é branco e o outro é mulato. Há separação. No trabalho, nos bairros, na música. (…) Tu queres, podes ir ! Porque é que te confrontas com essa barreira ? É muito complexo… vem do passado. Vou-te dizer : esses dizem : ‘esses gajos já não colonizaram 500 anos ? Tão aqui a empatar porquê ?’ Isso é racismo. Não tem outra explicação. (…) Isso de ser colonizado, tá interiorizado. É todos os dias. Todos os dias sentes isso ». Reflexões como esta eram generalizadas. Também para Luís, residente em Portugal desde que sua família o conseguiu libertar do recrutamento forçado pelo exército do MPLA : « Porque o mulato é que consegue os melhores cargos… Não sei explicar… isso tem a ver com o colonialismo. Os portugueses faziam filhos mulatos, tem a ver. (…) Tenho esta pele [negra], vou arranjar emprego… No colonialismo vejo a mesma coisa, apartheid… o negro não tinha hipótese. Era só o trabalho pesado. Ias fazer mais como ? Não fazias nada… ». Mica, de 30 anos, estudante, referia de modo similar : « O racismo existe e as pessoas fingem que não. Os pretos queixam-se mais, porque são mais pobres…. O problema dos blacks…. Porque é que os mulatos têm poder ? Isso tem a ver com a história, com o colonialismo. Quando o branco fugiu, o mulato já tinha propriedade. O mulato tem mais cultura de bens, de merdas, da riqueza, de negócio…. A cultura de negócio é uma coisa de branco. O black tem dinheiros dois dias e depois passa… a coisa não é dele ». Também no mesmo sentido, Samuel reflectia que : [O colonialismo] teve alguma influência (…) no desenvolvimento daquele separatismo entre negro e branco. O negro só servia para servir…. Eu… essa mentalidade de separação, não gosto ; não gosto de falar de raças, o branco, o mulato e, depois, o negro. Onde o negro não podia frequentar, o mulato podia entrar e o negro não podia…. O negro que podia entrar já tinha um nível mais ‘culto’, já era mais ‘civilizado’. (…) Não vou chamar isto apartheid, mas…. Talvez para manter sempre aquele nível, as coisas não serem descobertas pelo negro, em termos de convívio, nível de vida. (….) [Os filhos] seguem um bocado o que os pais foram. Os pais eram oprimidos, não tinham liberdade de expressão, passam isso aos filhos…. Se aparecer alguém com dinheiro, já é visto como chefe, patrão, como superior mesmo. Não há aquela democracia… ». É, inclusivamente, de sublinhar que a mensagem de Nito Alves (1945-1977) sobre a perpetuação da desigualdade racial no pós-independência parece ganhar uma nova ressonância no contexto de um modelo de desenvolvimento económico que permanece excludente. O agravamento do sentimento de privação relativamente às oportunidades detidas e monopolizadas por poucos e partilhadas com o afluxo de estrangeiros ao país, e a reprodução – sem renovação significativa – das elites políticas e económicas são factores que parecem re-activar as fracturas históricas entre diferentes segmentos sociais, assumindo estes, novamente, contornos raciais. Relembre-se a este propósito que o 27 de Maio de 1977 representa um dos episódios mais traumáticos na história contemporânea de Angola. Na versão oficial, o 27 de Maio é descrito como ambicioso golpe de Estado, organizado por Nito Alves e José Van Dúnem, para destronar Agostinho Neto, presidente do MPLA e da República Popular de Angola, e conquistar o poder. Nito Alves pertencia aos órgãos mais importantes da estrutura partidária (Comité Central e Bureau Político), chegando inclusivamente a exercer o cargo de Ministro do Interior. Era uma figura extremamente popular junto das classes populares. Nito Alves detinha, de facto, um forte acolhimento nos bairros pobres de Luanda e ia assumindo o papel de ‘líder informal’ das massas, com as quais organizava reuniões políticas onde eram veiculadas duras críticas ao poder. Uma das críticas que mais ressonância obteve foi a que denunciava a permanência de desigualdades raciais do regime do MPLA. Nito Alves e José Van Dúnem criticavam fortemente a própria liderança, a qual, no seu entender, estaria dominada por elementos brancos e mestiços. E, na realidade, apesar de integrar elementos de origens étnicas diversas, incluindo o próprio Nito, o poder era apreendido como estando nas mãos daqueles elementos que, dessa forma, reproduziam a estratificação da sociedade colonial. E esta nova enunciação da questão racial atiça os ânimos. A afirmação de Nito segundo a qual o racismo só acabaria em Angola quando brancos e mulatos varressem as ruas, foi de imediato apreendida pelas elites como uma perigosa ameaça racista. Perante o criticismo cada vez mais acutilante do movimento de Nito Alves, o MPLA, em Outubro de 1976, condena-o por dissidência. E novamente a historiografia oficial narra os eventos que sucederam : expulsos das estruturas partidárias, Nito Alves e Van Dúnem lideram a rebelião em Luanda, tentando controlar a Rádio Nacional, aprisionando e assassinando membros das estruturas de poder, amigos pessoais de Agostinho Neto, na tentativa de derrubar o regime. No texto emanado da reunião do Comité Central que determinou a expulsão de Nito Alves, a violência da palavra anuncia a violência da acção : « Que este fraccionismo apresentando-se com uma capa aparentemente revolucionária visa realmente dividir o MPLA e desviar consequentemente o Povo dos verdadeiros objectivos da etapa actual da luta : a Reconstrução Nacional e a Defesa da integridade territorial do País contra o imperialismo ». O anúncio é também formulado pessoalmente por Agostinho Neto quando, nesse mesmo dia de 21 de Maio, na Assembleia de Militantes, na Cidadela Desportiva de Luanda, discursa : « Vamos dar um combate sério ao fraccionismo. Não pode haver fracções dentro do MPLA. Ou se é do MPLA ou não se é do MPLA. Quem não está de acordo sai. (....) esta é uma ditadura [sic] e se for necessário tomar medidas mais duras, nós vamos tomar medidas mais duras (....). Quem manda é o MPLA ». Do 27 de Maio resultou o endurecimento da repressão à oposição. A partir de então, o padrão de resolução da dissidência passou por purgas e rectificações (Botelho, 2007). Inicia-se a repressão com execuções sumárias, prisões arbitrárias, práticas de tortura. São particularmente atingidas as organizações de massa do partido, mas também as Forças Armadas, a Administração Pública, a DISA (polícia política), a polícia militar e a polícia de segurança pública, os ministérios, os estudantes e os intelectuais. Instala-se um poder policial que desenvolve uma violenta campanha de terror nos órgãos de comunicação, com a repetição na TPA (Televisão Pública de Angola) da longa-metragem que retrata a versão oficial dos eventos. Os traumas perpetuados pelo silêncio imposto e pela ausência de uma verdade reconciliadora, fizeram-se sentir nas narrativas de actores de diferentes quadrantes sociais. Eram narrativas sobre famílias divididas por alegadamente terem tido no seu seio um nitista ou um denunciante, sobre pessoas impossibilitadas de fazer o luto por se desconhecer o destino dado a seus familiares. Nessas narrativas, o 27 de Maio era frequentemente interpretado como a subjugação definitiva do negro por elites brancas e mestiças que coexistem hoje em simbiose com uma elite negra. Numa dessas narrativas, Joaquim, de 40 anos, negro, urbano, com formação académica, cuja família fora atingida pela rectificação, deu azo a esse ressentimento. Contava que, durante anos, acordava sobressaltado e atormentado por pesadelos e suores frios, que queria indagar sobre o que se teria passado com sua família e conhecidos e que nunca o pôde fazer. Interpretava o 27 de Maio como a subjugação definitiva do negro. Veiculando o seu (re)sentir, repetia, num misto de humor irónico, de amargura e ressentimento : « Os pretos estão lixados ! Os pretos estão fodidos ! Mataram os melhores. Não sobrou ninguém. Os [negros] que sobraram não são ninguém. Eles [as elites no poder] podem estar à vontade, fazer o que quiserem ». A forte presença destas evocações permite, pois, reflectir como Soyinka para quem :

« we can do worse than explore the effects – both obscured and current – of that ancient but yet unexpiated wrong (…) into an understanding of the irruptions that confound even our grossest projections of the capacity of humanity for unconscionable acts of violence against its own kind. Such a proceeding, and an objective assessment of the roles and responsibilities of the participants – both violators and victims – may enable us to anticipate or identify warning signs of impending repetitions of such collective derelictions in our own time » (2000 : 22).

As funções da memória : a crítica pós-colonial

Como referido, o passado colonial e a sua memória podem constituir um recurso para avaliar o presente. Mwembu explica a este propósito como os pintores congoleses cristalizaram nas suas produções artísticas do pós-independência a memória humilhante e dolorosa do chicote, usado pela autoridade colonial. Para o autor, « it functioned as a message addressed to the dictatorship Mobutu, which continued to apply the pain of the whip in the prisons of the special research squad and of the national services of intelligence and defense. (…) To reproduce on canvas the pain of the whip during a clearly dictatorial regime is therefore a form of protest against that regime, one that also conducts itself as a colonizer with regard to the governed » (2005 : 448-449). Nas narrativas de memória aqui discutidas, é aparente a enunciação de uma certa valorização do tempo colonial, em que as ‘coisas eram mais organizadas’ e onde ‘havia respeito’, em detrimento do presente. Nelson reflectia o seguinte : « …quando saio de Luanda… as pessoas do interior têm outra memória. Falam positivamente do outro tempo [colonial] e pior agora [presente] (…). Esperam a independência, deu-se a independência e esperam melhores condições… há uma certa revolta.... Não era assim… não era o que estava prometido [com a independência] … as pessoas voltam no tempo ». Também Mariano discutia a mesma questão : « …o português foi um ganho para Angola. Eu digo o seguinte : embora na altura, Angola era província de Portugal, mas depois da retirada houve um arrependimento total. Isso corresponde a quê ? À vida da população. Porque a vida recuou. Em vez de progredir, recuou. Quando eu estava a estudar, em 75, após a retirada dos portugueses, eu tive que recuar de classe porque já não valia. Eu ia para a quarta classe e fui para a terceira, porque não valia. Foi um retrocesso na minha vida. (…) Após 75, Angola sofreu uma crise económica complicada em termos de alimentação e tudo. Muitos emigraram. Teve para a Zâmbia, Zaire, RDC, Namíbia… Emigraram depois dos portugueses e só agora na paz estão a voltar. Foi a guerra ». Já para José, há oito anos em Portugal : « [Os mais velhos] falam da tradição, do respeito, da ajuda mútua que havia antigamente [no tempo colonial] (…) como as pessoas eram… podia-se deixar o filho na casa do vizinho e era tratado como filho. Hoje não se vê isso. (…) Está no nosso calão que a gente usa : o kota já tens que respeitar. Mas agora os kotas são os velhos. (…) falam do nível de vida que era mais organizado. Os meus pais falam isso : havia mais organização e respeito. Havia também aquela coisa da superioridade…. [No tempo do Agostinho Neto], havia mais organização que hoje…. Era tipo uma irmandade, o povo era unido e davam valor à palavra. Não como agora que falam de qualquer maneira ». Na narrativa de Luís, a reflexão vai na seguinte direcção : « Isso esquece ! Nem fala nisso ! [As gerações mais novas] Não sabem nada. Não querem saber nada. Não são angolanos verdadeiros. Se eu der este telemóvel, vai dizer : ‘Ó tio, isso não vale nada’. Tá fodida. Só pensam nas coisas materiais. No Sabizamga [bairro pobre de Luanda] isso não acontece. Só quando tens água pelos joelhos e apanhas paludismo, é que sabes o que é a vida. (…) Vão dizer que está bom [a situação actual]. Que [o país] tá a evoluir. Isso vem dos pais com dinheiro. Tá-se a cagar para quem tá atrás dele ». Nestas narrativas, há a salientar duas questões. A primeira refere-se a uma aparente valorização do passado colonial que apenas poderá ser compreendida se se tomar em consideração a experiência da violência gerada pela guerra colonial e pela guerra civil. Esta aparente valorização convive com a nomeação do colonialismo como escravatura e tal coexistência é demonstrativa das complexidades que os actos de memória carregam consigo – complexidades essas que se prendem com os intituitos da própria evocação : a nomeação do colonialismo como escravatura pretende enunciar aquilo que foi a experiência colonial globalmente ; a valorização relativa do passado colonial constitui-se como uma crítica ao presente. Como refere Mwembu, « One comes to believe that this nostalgic attitude for the colonial period would be a sort of preference for slavery over liberty (…). We think that such nostalgic attitudes must simply be considered a form of protest by a population concerned about the poor conditions of their present life » (2005 : 459). Esta valorização do passado colonial serve, pois, de crítica ao presente pós-colonial. Mas está longe de implicar o desejo de retorno. De facto, o valor da independência é um absoluto que inaugura a possibilidade de se ser negada pelo colonialismo. É neste sentido que se ancora a possibilidade de pensar a memória como prática moral. Esta possibilidade é formulada por Lambeck (1996) e decorre da admissão de dois princípios : por um lado, a valorização da intersubjectividade e da vida social na construção, transmissão (voluntária e involuntária) e aprendizagem da memória social, e, por outro, os usos do passado como modelo heurístico e interpretativo do presente. É nesta segunda acepção que as narrativas de memória se centram. Elas demonstram como o valor em articular narrativamente o passado é apreendido ao nível dos seus fins e efeitos morais por referência às necessidades e constrangimentos que o presente impõe. O interesse em abordar a memória enquanto prática moral é, portanto, múltiplo. Por um lado, permite aceder concretamente à forma como os sujeitos constroiem contextualmente as suas próprias ‘exegeses’ compreensivas. Por outro lado, a evocação do passado tende a operar moralmente como o fundamento explicativo/compreensivo do presente, das suas insuficiências, das suas idiossincracias. Ou seja, a evocação do passado tende a servir como parâmetro de avaliação moral do presente e da situação dos sujeitos nesse presente. Tal dinâmica de avaliação moral do presente, via o que a memória nos fornece do passado (ou como a memória cria o passado por reacção ao presente), constitui um mecanismo recorrente na experiência da vida social. A segunda questão a destacar refere-se à transformação da sociabilidade pela introdução de valores liberais, como o individualismo e o materialismo. Como referido, e no seguimento da análise de Durham (2002), estas formas de ajuizamento sobre o presente, tendo por referência a experiência prévia e a memória do passado, revelam profundas dinâmicas de transformação, quer a nível de sociabilidades, quer a um nível mais global, societal. Estas fazem com que uma das experiências mais marcantes da subjectividade pós-colonial seja a experiência de um campo plural e ambíguo sobre quais devem ser as premissas da subjectividade, da acção e da sociabilidade. Neste campo plural e ambíguo, cada acção, como a dádiva de um telemóvel, pode ser inflectida por expectativas e juízos contraditórios. Uma terceira dimensão que importa explorar é, paradoxalmente, o criticismo que as narrativas veiculam relativamente às continuidades entre o colonial e o pós-colonial. Neste criticismo, a ideia de mudança perde terreno em favor da percepção de uma continuidade quer das dinâmicas de estratificação e mobilidade social a ele associadas. O facto do presente ser criticado à luz do passado colonial, evoca a análise de Poluha e Rosendahl (2002) acerca da memória como campo de aprendizagem política que medeia a relação e o posicionamento dos sujeitos face a esse mesmo presente. Luís é especialmente contundente : « Em todo o país que o Diogo Cão foi, em todos os países em que foram [os portugueses] tá tudo podre. Não sei se por causa dos diamantes ou quê…. Tá tudo podre ! (…) O colonialismo tem tudo a ver… (…) Se for um Angolano verdadeiro faz essa comparação [entre colonial e pós-colonial]. Angolano verdadeiro é quem olha para o país. (…) Dizem que Angola tá a evoluir. Tou na marginal e vejo prédios. Vou ao Sambizanga, vejo miséria. (…) A parte essencial, o bem estar do povo, tu não tens. (…) Nos bairros há solidariedade. Sou apaixonado por ser angolano por isso. Tou-te a dizer. Quem tem dinheiro afasta-se. Quando tens muito dinheiro, esqueces do resto. É demais. (…) Então, a vida ? Vamos estudar, ter um curso. Mas a vida ? A vida ? O País ? O macaco só olha para o rabo dos outros. Não olha pr’ó rabo dele ». Para Mica : « o processo de transição geral em África do colonialismo para a independência foi mal feito, porque tu, ao fim de 400 de escravatura, dás o poder assim de repente : ‘olha, tá aqui. É teu outra vez.’ Não pode ser assim… E o poder corrompe em qualquer lado. Eu preferia que aquilo voltasse a ser um reino…. Porque era o que era e deixava de ser uma fantasia… (…) eu preferia… sei lá… isto não funciona… a democracia, o capitalismo, o comunismo…. É mentira… é uma utopia, é em segunda mão ». Em quarto lugar, há ainda que discutir o uso moral do passado como exortação às novas gerações. De facto, as evocações do tempo colonial podem constituir-se como uma prática moral de ajuizamento sobre o presente e também de instrução e preparação dos mais jovens. Como referem Antze e Lambeck, estas evocações podem ser olhadas como « assertions and performances, they carry moral entailments of various sort » (1996 : XXV). O jovem Simão demonstrava precisamente esta questão : « Das vezes que ouvimos falar do colono foi para dar exemplo, para dizer que não tiveram as mesmas oportunidades que vocês (jovens) têm : ‘eu andava muito a pé para ir na escola’ ; ‘vocês têm de lutar’…. É para os jovens se esforçarem… ‘o pai do meu pai lutou muito’, ‘não pensem que a vida é fácil’, ‘a minha herança é o vosso estudo’, ‘a vida não é fácil’, ‘temos que lutar’, ‘vocês não a passar nada’, ‘nós passámos muito para vocês terem’. É. O mais pobre lembra mais, porque a vida exige luta. O rico não lembra ». Pese embora o valor absoluto da independência, o continuum de violência gerados pelo colonialismo, guerra colonial e guerra civil faz colapsar as periodizações histórias convencionais. Esta experiência do continuum de violência está exemplarmente concentrada na narração quase anedótica de um episódio em que Agostinho Neto foi interpelado por um ancião. Este é ainda hoje bastante popular e representa eloquentemente um ‘backward reading’, no sentido avançado por Poluha e Rosendahl (2002). Botelho apresenta uma descrição do mesmo : « tornou-se proverbial o relato daquela visita que Neto fez à província de Malange, algum tempo antes de conhecer a morte. Aí encontrou a face da desolação e da destruição (…). A sua intenção era, talvez, persuadir a população de que se tratava de um sacrifício necessário para que a revolução prosseguisse. Isso mesmo deve ter querido dizer aos sobas que com ele se reuniram – as testemunhas disseram-me que esses chefes locais se apresentaram perante o Presidente sujos e rotos, emblema da pobreza extrema em que viviam. Mas depois das suas palavras encorajadoras, prenhes de ideologia, veio a palavra alimentada pela sabedoria. Um dos sobas, mais velho, não pôde conter a pergunta : ‘Camarada Presidente, quando acaba a independência ? » (2007 : 67). De facto, é bem conhecido o facto do Estado pós-colonial angolano ter nascido do caos e da violência de uma guerra civil que, desde o início, foi contemporânea da luta pela independência. Num contexto de um conflito civil atroz e da vigência de um sistema de partido único de inspiração marxista-leninista, Angola viveu um longo período de repressão e autoritarismo. Por uma confluência complexa de factores, este sistema de dominação conheceu uma profunda crise a partir de meados da década de 1980. Antecedida por um programa de liberalização económica, a abertura do regime culminou na suspensão das hostilidades, no abandono do sistema de partido único, na instauração do multipartidarismo e na instituição formal e constitucional do ‘Estado de direito democrático’. Este momento, descrito pela ‘historiografia’ oficial como transição democrática, cedo se revelou profundamente problemático. De facto, as eleições de 1992 marcaram uma transição formal de Angola para o sistema multipartidário. A contestação dos resultados eleitorais pela UNITA deitou por terra a esperança de dar vida à transição, reacendendo-se rapidamente o conflito, efemeramente interrompido com os acordos de Lusaka, em 1994. A violência da guerra civil no pós-independência foi marcada pela brutalidade e pela longa duração. Entre 1992 e 1994, calcula-se que cem mil pessoas tenham morrido das consequências directas da guerra e que 70 000 tenham sido vítimas de minas. Com o re-acender da guerra, após as eleições de 1992, cidades, como a de Huambo, foram reduzidas a ruínas, cerca de 20% da população tornou-se refugiada e estima-se que 20 mil minas tenham sido espalhadas pelo território. No Human Development Report das Nações Unidas, de 1997, estimava-se que a guerra civil tivesse gerado cerca de 280 mil refugiados em países vizinhos, 1.2 milhão de deslocados, metade dos quais crianças com menos de 15 anos, 1 milhão de crianças directamente expostas à guerra, quer como civis, quer como combatentes, 500 mil crianças mortas e milhares de crianças órfãs, separadas das famílias ou raptadas pelos exércitos. Em 2004, no rescaldo da guerra, estimava-se que, desde 1994, 800 mil pessoas tenham perdido a vida, que haveria cerca de 4 milhões de deslocados no país e meio milhão de refugiados noutros países (Wheeler ; Pélissier, 2009).

Guerras e silêncios

Apesar do continuum de violência, é evidente que a guerra colonial, tendo conduzido à libertação e à independência, reveste-se, como observado, de um valor fundacional. Mas a guerra civil é colocada em relação de continuidade com a violência colonial duplamente. Por um lado, porque tem as suas origens nos efeitos da dominação colonial. Por outro lado, porque reproduziu relações coloniais. A este respeito considera o mais velho Kianda ex-combatente da tropa negra do exército português, e pai de um dos jovens entrevistados, o seguinte : « Bem, como houve muitas guerras…. As pessoas já esqueceram, não há mágoas [do colonialismo]. Entrámos foi noutros episódios. De guerra. (…) aí separam os povos, ficámos a lutar entre nós. É como se faz aos cachorros. Eles chocam, não é assim ? Eles são irmãos, mas se a gente chocam-lhes, eles atacam. Foi o que aconteceu com o africano. Ficámos com uma porrada de guerras dentro de nós. (…) A guerra [colonial] matou a família toda. Podia ser uma pessoa muito magoada, mas está tudo esquecido. (…) Na segunda guerra, já entre nós, matou e limpou o resto da família. (…) O povo africano é um povo muito sofrido ». Neste continuum de violência são geradas são situações de impossibilidade moral. Kianda explica : [Os activistas da guerra colonial] queriam ser todos iguais, melhores condições. Já não vamos para as fazendas, vamos para a escola…. E na guerra, se forem 100, voltam 5. (…) [Sobre o valor das guerras] Valeu [a pena] para quem está vivo. Mas e quem está sem ninguém ? A família dizimada…. ? Como será essa pessoa ? Que é que ele vale ? (…) Vamos só lutar pela paz. Mais nada ». Interrogado sobre as mudanças geradas pela paz, alcançada em 2002 , é assertivo, não deixando de apontar a perenização das situações de injustiça : « Ai !! Mudaram ! Mudaram muito. Cada um tem a sua casa, tem a sua vida. Hoje estão a voltar para os seus terrenos, para os seus campos, mas muitos… [os antigos combatentes] o que fazer ? Estão sentados à espera de receber esse dinheirinho para sobreviver ». O testemunho de Kianda é particularmente revelador das implicações do continuum de violência. Dando conta com especial eloquência das situações de impossibilidade moral, Kianda narra : « Eu fui mascote militar [da tropa portuguesa]. Eu vivi essa situação. Como quando a gente apanha macaquinhos e a gente cuida e mima. Até hoje não consigo criar um animal, porque me lembro dessas coisas. Passar o dia com uma corda amarrada…. (…) Aos 16 deixei de ser prisioneiro nativo e eu tive que me enquadrar e entrar na tropa colonial (…) Vê só o que é que um homem sofreu. Outros a estudar, a progredir, eu não (…) São essas coisas… diz que esquece, mas nunca passa. Ficam na memória para sempre. (…) Fiz a recruta e fazia as frentes [de guerra] também. (…) Eles [os militares] estudaram uma estratégia. Era pegar na tropa nativa e misturar, confundir o povo. Misturavam com os negros mesmo. Cada companhia tinha 40 negros que era para misturar, que é para… o carro quando for ao combate… os combatentes verem ‘Ali estão os nossos irmãos’. Então não faziam fogo. [O entrevistado era enviado a uma povoação antes de chegar a presença militar portuguesa] Qual era a melhor solução ? Quando chegava lá, era mandado identificar-me nas populações quem eu era. (…) Que era para salvar, tinha de trair o outro. E tinha que explicar ao comandante, se vocês forem por lá, iam morrer. Na minha companhia não morreu ninguém. Foi como na Guiné. Eram os Flechas. Que é que faziam ? Eles entram nas matas, apanham prisioneiros… para pôr uns contra os outros. Eram Grupos Especiais em Angola. E em Cabinda, chamavam Tropas Especiais. Eles apanhavam as pessoas e traíam. Davam dinheiro para trair os outros. Essas pessoas… muitos deles tiveram que fugir no 25 de Abril. Vieram para aqui [Portugal]. Tiveram que ser portugueses. (…) Pessoas que traíram, mataram [no tempo da guerra colonial e da guerra civil] e hoje estão…. Comandantes…. E quem esteve na mata ? A uns chamam heróis e outros não. São heróis ? Os heróis estão sentados debaixo daquela mangueira. De manhã à noite a contar histórias de guerra e no fim do mês vão para as bichas para receber subsídio… Muitos não têm documento ou não sabem ler…. Agora. O que estudou ? Tem patente. Aconteceu com a guerra colonial. Depois dessa guerra aconteceu outra vez como quando acabou a guerra ». A experiência de Luís ilustra eloquentemente a violência vivida com a guerra civil : « Eu estava no Muto Yakevela, ao lado do cine tropical, antigo Salvador Correia. Apanharam-me na rua. Os meus pais ficaram 3 meses sem saber onde eu estava. Foram as FAPLA. Um colega meu é que disse que eu estava num centro de recrutamento chamado Adidos ao lado do aeroporto da Força Aérea de Luanda. Então, tinha 15 anos. Fui para o Kuando-Kubango. Passados seis meses é que voltei para Luanda. Desidratado, com anemia… tudo. Tive que trocar de documentos para fugir, se não, não saía. Foi a pior história da minha vida ». O testemunho de Kianda, notavelmente sobre as estratégias do exército português na utilização das suas tropas negras, aponta para o peso das situações de impossibilidade moral geradas pela experiência da traição forçada. O testemunho de Luís sobre o seu recrutamento forçado em adolescente aponta para a mesma problemática. Luís esteve na frente do combate e permanece em silêncio sobre a sua experiência enquanto soldado. Como mencionado, Primo Levi explora, através dos Sonderkommands dos campos de concentração nazis, a forma como a violência extrema coloca os sujeitos dela objectos/objectificados em situações de impossibilidade moral, citando Alessandro Manzoni, poeta italiano do século XIX, para quem « ‘Provocateurs, oppressors, all those who in some way injure others, are guilty, not only of the evil they commit, but also of the preversion into which they lead the spirit of the offended’ » (Levi, 2004 : 85). De modo concordante, o contributo de Walter Benjamin (1992) é seminal, na medida em que foca as consequências de experiências, cujo grau de violência, as torna incomunicáveis. Por outro lado, são enunciados os riscos de conflitualidade social que estas situações de impossibilidade moral, geradas na guerra colonial e prolongadas pela guerra civil, podem ainda acarretar para o presente. Na realidade, face ao potencial de conflitualidade social que aqui transparece, a transmissão intergeracional de memórias é claramente uma questão delicada. Nos testemunhos dos mais jovens, são generalizadas as referências aos silêncios e à parcimónia com que os mais velhos falam do passado. Relativamente ao colonialismo, Samuel considerava a este respeito : « O colonialismo está muito presente na cabeça das pessoas. Nota-se. Os mais velhos falam dessas coisas, mas não falam directamente… usam expressões…. Na família, quando conversam entre eles, falam em dialecto, umbundu. (…) evitam falar nos mais novos. Não sei se é por medo, receio… se é para nós olharmos para a frente e não termos a vida que tiveram (…) Os mais velhos não falavam muito…. Os meus pais também não falavam…. Não sei… foi talvez pela fase que passaram que foi muito difícil. (…) Mas se os mais velhos, não falam, vai pelas atitudes : ‘Não faças isso’, ‘Não faças aquilo’, ‘Não te metas nisso’ (…) Falar directamente sobre isso [o colonialismo], não falávamos muito ». Também para Júlio, trabalhador estudante de 27 anos, em Portugal há 4 anos : « Não foi tipo conversa… tipo, ‘senta, vamos conversar’. Fala superficialmente…. Estamos na casa do avô a ver televisão, vemos a novela, passa uma imagem e ele fala qualquer coisa do colono…. Falam muito superficial…. (…) Se calhar, não davam muito valor a isso… Em Angola, não se fala muito disso. É um assunto que querem esquecer. Ficou lá para trás. Podem até falar sobre isso, mas é para esquecer. O que eles querem é deixar isso para trás. (…) Os meus pais não falaram sobre isso, os meus pais dificilmente tocam nisso do colonialismo. Se é uma maneira de nos preservar… não sei, pode ser… ou fazer com que a gente não fique revoltado com os portugueses. Mas se for uma maneira de nos preservar, valeu a pena ! Porque… como é possível ? Vocês… tanta civilização e sem mais nem menos discriminação. (…) Valeu a pena, porque eu não consigo olhar para o outro e discriminar. (…) Eu não me lembro da minha família, de alguém falar mal dos portugueses… Nem pai, nem mãe, nem avô…. ‘Eles vieram cá e escravizaram-nos’, não fizeram isso. Eles dizem é ‘vocês, jovens, não devem ficar com esse ressentimento’ ». No que se refere à guerra civil, Samuel explicava : « Já não se fala na guerra (…) mas há sempre aqueles prós e contras que talvez possam surgir…. Ninguém quer voltar a viver esse drama duas vezes. Quando digo drama, digo holocausto, sei lá…. Foi uma coisa pesada ! (…) A guerra [civil] foi 25 anos. 25 anos de guerra. O povo sofreu muito, perdeu muito…. Casas, fazendas, parentes, mortes… é um assunto muito delicado. Nem todos os mais velhos falam disto com vontade e profundidade. O meu pai era caminionista, estava no Bié e tinha muitos haveres : tinha casas, fazenda, criação e perdeu tudo por causa da guerra. Como perdeu, não fala. Se perguntares porque perdeu, responde só ‘foi a guerra’. Diz ‘deixa lá. Já passou’. Não sei do que aconteceu com o pai. Só sei que foi a guerra ». Nelson partilha a mesma percepção : « a guerra está na memória de maneira calada. As pessoas acham certo não falar e falar dos tempos novos : quer ter a sua casa, quer ter o seu carro… Mas ficaram essas marcas, jamais saíram da cabeça de um angolano » De modo concordante, Victor, estudante de mestrado, considerava : « O angolano em geral não é muito de recordar o passado. Mesmo os 30 anos de guerra não mudou essa mentalidade. Querem sempre esquecer e ultrapassar as mágoas ». É perante estas constatações e interrogações que importa retomar o testemunho de Kianda. O que se segue é um excerto de uma entrevista : « -Eu mostro sempre aos meus filhos as zonas da guerra, onde sofremos. Temos que passar essa memória (…) Mas quando a gente fala com a juventude, procuramos não tocar em nada para não acordar as mágoas. Quê ?! Dizer, ‘aquele matou o filho deste e aquele…’ ?
- Então, os mais velhos não falam para não criar mágoas ?
- É. É. A gente conta. Mas há sempre um momento que a gente vê e trava. Mas é preciso… eu acho que isso se passa em todo o mundo. Temos que mostrar : aqui foi o sítio que se combateu. Aquela foi a arma que se usou. Eles [os mais novos] vêem… para eles verem o que é que era.
- Então, os mais velhos passam a mensagem….
- Sim ! Mas com cuidado. O colonialismo já passou. Está tudo esquecido. Mas a última guerra é que afecta mais. [Sobre o colonialismo] É para apagar. A missão é esquecer. Contamos para conhecimento. Passamos isso para a área da cultura. Não é para fomentar as pessoas. Não. É para a área da cultura. Só. [A mágoa do colonialismo] já passou, já passou. Senão a guerra nunca mais acaba. (…) A memória é para a paz. Só a paz ». De modo similar, André explicava : « Estive preso 3 anos e meio em 1961. Em Junho de 1961. Depois do 4 de Fevereiro. Estive preso. Estive preso 3 anos aí. (A acusação era de) Terrorista ! Terrorista, não tive outra acusação. Não me acusaram de outra coisa, se não de estar aí… eu era o único Pastor (…), eu tinha estado no Brasil, trazia os meus diplomas dos Estados Unidos da América e naquele tempo… era demais. Não podia. ‘É um terrorista esse indivíduo’. ‘Comunista’. É verdade. (…) Quando me casei, quando comecei a ter filhos… tive dois filhos e uma vez estava a contar a história da minha prisão aos meus filhos. E o mais velho, no dia seguinte, pegou numa faca. Dirigiu-se à escola e eu disse : ‘o que é que vais fazer com a faca ?’. ‘Ah, um miúdo estava a dizer, estava a falar mal do Agostinho Neto e tal e eu…’. E eu : ‘Que é que você quer fazer ?’. E nunca mais contei a história da minha prisão aos meus filhos ! Nunca mais ! Até hoje. Nunca mais. Nunca mais contei. Nunca mais ». Questionado sobre as dinâmicas intergeracionais de transmissão de memória, André considerava o seguinte : « - Isso também lhe queria perguntar… Quais é que são as dinâmicas de transmissão dos mais velhos para os mais novos ? – Pouca gente transmite isso. Pouca gente. – Porquê ? Por causa disso ? De pegar numa faca ? – Pode causar um trauma neles, pode causar revolta neles. E você mesmo, quando conta a tua própria história, pode ter uma síncope a qualquer momento. É bom não pensar nessas coisas. O pai da X, morreu aqui na prisão como preso político. O meu sogro era um dos 50. Do processo dos 50 e morreu na prisão. Eu fui vê-lo à prisão do hospital militar Maria Pia e eu fiz o enterro dele. Quando fiz o enterro dele, ele ainda não era o meu sogro. Mas eu vim casar com a filha dele. Eu acho que são histórias que não vale a pena a gente contar. Não vale a pena contar. – Mas assim entramos num paradoxo…. – É isso mesmo. Você quer lembrar as dores por que passou… é um bocado difícil. Muito difícil. Aqui na nossa cultura é muito difícil. Você, se sofreu, não lembra o seu sofrimento. Porque isso pode prejudicar a si próprio, aos seus… e também tem outra coisa : também chega a um ponto que as pessoas não acreditam em si. Não acreditam no que você tá a dizer, porque são coisas inacreditáveis. Se, por exemplo, eu contar tudo às pessoas, as surras que eu apanhei, as pessoas não vão acreditar nisso. Não vão acreditar em mim. – Na prisão ? – Na prisão. Foi terrível. Coisas terríveis. Eu afirmo só : fui preso. Agora, as vissicitudes que eu passei eu não conto a ninguém. Não conto a ninguém. – É para preservar o futuro ? Não conta para preservar um futuro em paz ? – Não sei. (silêncio) Se nós contássemos tudo o que o colonialismo fez em Angola, não havíamos de preservar paz nenhuma para o futuro. Iriamos provocar ódios, invejas. Ressentimentos. Isso é que iriamos produzir. Digo isso como um cristão, não é ? Agora, outra pessoa pode não pensar assim. Vai encontrar aí muita gente que não pensa nisso. Mas como cristão, eu penso que…. Não devemos esquecer o passado ; o passado não se esquece. – Mas se não se conta, vai-se esquecer…. É o paradoxo…. – Pois é, é um paradoxo. A vida é um paradoxo. – Então, conta-se só um bocadinho… – Não se contam os factos. Conta-se a história abstracta. Abstracta, pois. (…) É isso mesmo. É isso mesmo. Se você ler os livros que já escrevi, nenhum deles fala da minha prisão. Porque você começa a escrever e, às tantas, pára. Não posso continuar a escrever isso. Em nenhum dos meus livros… pode ser que encontre alguma que mencione a prisão, mas nenhum dos meus livros conta o drama. Aquilo que foi ». Através desta economia da memória, os mais velhos, ao mesmo tempo que operam como ‘outros mnemónicos’, na expressão de Zerubavel (2011), parecem, pois, assumir um papel activo de interlocutores e mediadores das tarefas de reconciliação e de reconstituição de alguma harmonia social.

Crítica da razão proléptica : cuidar o futuro

No estudo de cenários de pós-conflito, como o caso de Angola, a literatura dominante foca, sobretudo, as estratégias institucionalizadas e/ou institucionalizáveis de reconciliação, sendo prolífica na análise de aspectos técnicos e concretos associados às tarefas de pacificação, reconciliação e reconstrução, tais como a desmobilização de combatentes e sua re-integração, a desminagem, o retorno dos refugiados, etc. Este género de análise foca também as formas de recomposição das sociedades, associando-as frequentemente às formas de intervenção na mediação e resolução de conflitos por actores externos, como ONGs, entidades da comunidade internacional e mesmo autoridades governamentais. Raramente são abordadas as formas pelas quais os sujeitos, nas suas relações interpessoais, familiares e/ou comunais, elaboram as suas próprias estratégias de reconciliação, pacificação e construção do futuro. Estes, de facto, raramente são olhados como agentes que activamente gerenciam as suas experiências de violência, as suas memórias e cicatrizes, desenvolvendo estratégias de futuro. Como demonstram Harneit-Sievers e Emezue « the potentials and capabilities that African societies themselves have to recover from the ravages of war received little attention » (2000 : 112). O que se encontra retratado nestas narrativas são as dinâmicas associadas a uma espécie de economia da memória, a qual se afigura predominantemente como prática de cuidado, nas quais a evocação do passado é tendencialmente moldada por uma lógica de solidariedade inter-geracional que, procura, simultaneamente, consciencializar sobre o passado e libertar o futuro das gerações mais novas dos legados das experiências de opressão do passado, assegurando a paz. Se a razão proléptica amplia o futuro como a representação abstracta do progresso, segundo a sua lógica historicista, a sua crítica tem por objectivo contrair o futuro, pelo conhecimento profundo e carnal de que esse futuro tanto pode ser de esperança, como de frustração e sofrimento. A praxiologia do cuidado da economia de memória aqui analisada produz precisamente essa contracção do futuro, ao ser orientada para a maximização das possibilidades de esperança e para a diminuição dos riscos de conflitualidade social. Ela é orientada para um futuro desejado. Neste sentido, a praxiologia do cuidado funda uma nova semântica da esperança como actividade de ‘escolta’, para usar a linguagem ‘heideggariana’, e de engajamento, que constroí o futuro a partir do presente e à luz do passado. Sobretudo na perspectiva de quem experienciou este longo passado de violência (que inclui a dominação colonial, a guerra pela libertação nacional e a guerra civil), o valor absoluto da paz assinala, ainda, uma ambivalência que retrata, por seu turno, a complexidade da realidade pós-colonial. Na perspectiva de Kianda que atravessou as várias guerras em Angola : « [A memória serve] É tentar manter aquilo que temos hoje, tentar manter a história do passado. (…) É a paz que tem que ser mantida. É isso. Mas também há aquele que não quer fazer nada e quer viver do outro. O que é que acontece quando estás na guerra ? ‘Vamos fazer isso só para ir buscar esse copo’. Mas morre gente por causa do copo. O que é um revolucionário ? Ele quer melhorar as coisas, mas para isso ficam vidas ». Samuel vai ao encontro de Kianda, considerando : « A independência e a paz são as duas importantes, estão ligadas, estão ao mesmo nível, mas a paz representa uma ruptura melhor ». Enquanto elemento de cuidado dos mais velhos para com os mais novos e o seu futuro, os silêncios, as omissões e a parcimónia na transmissão de memórias tendem a ser dificilmente compreendidos pela tradição intelectual ocidental como práticas emancipatórias e/ou de valor terapêutico. Alcinda Honwana explica esta questão a partir dos seus estudos de caso em Angola e Moçambique, fazendo referência à inaptidão da psicoterapia ocidental em dialogar com as formas de reconciliação e pacificação locais : « dominant Western psychotherapeutic models locate the causes of psychosocial distress within the individual and design responses which are primarily based on individual therapy. (…) recovery is achieved through helping the individual come to terms with his or her experience. (…) These approaches have been relatively successful and culturally acceptable in European and American contexts (…) and are in harmony with its ontological presuppositions. (…)Western approaches to treatment are, thus, not necessarily applicable in non-western contexts or cultures. Summerfield points out that Cambodians do not share or talk about their feelings and memories about the trauma of the Pol Pot years with foreigners. He also mentions that Mozambican and Ethiopian refuges describe forgetting about the traumatic past as means of coping with it. (…) Recalling traumatic experiences through verbal externalizations does not constitute a necessary condition for coming to terms with the traumatic past (…) African societies are based on forms of ‘common sense’ that differ from those prevailing in the West. (…) Persons are not perceived as isolated, autonomous atoms who enter into discrete relationships with various others (…). Persons are constituted by their relationship with kin and community (…) The afflicted person is never treated as a singular individual, but rather as part of a community » (2006 : 151-152-153-154). Do ponto de vista da abordagem psicoterapêutica clássica, a ausência das suas formas institucionalizadas e discursivas de ‘healing’, pacificação e perdão tende a ser apreendida como uma falta e, na pior das hipóteses, como uma incapacidade de superação dos traumas e das violências. Tal abordagem permanece refém de si própria e da perspectiva de individualismo que a caracteriza, ao ser incapaz de identificar formas locais distintas de reconstituição da harmonia global do sujeito, que incluem o re-estabelecimento daquela com os outros, com a comunidade, com outras dimensões impensadas na tradição hegemónica do Ocidente (Meneses, 2008b). Essa incapacidade produz, por sua vez, efeitos inter-relacionados que incluem o desperdício destas experiências e a sua desqualificação. Os silêncios e a economia nas formas de transmissão da memória aqui retratadas manifestam o imperativo de reconstituir algum tipo de harmonia social e constituem uma praxiologia do cuidado em relação ao futuro. Neste sentido, esta praxiologia do cuidado aproxima-se fortemente do princípio de lealdade antecipada, formulado por Hathaway e Boff (2009), como lealdade àquilo que se quer no futuro ; lealdade ao futuro desejado. Todavia, a parcimónia na transmissão da memória está longe de significar « a surrender to evil », sendo antes « akin to a balm that comes after a cataclysm of nature, even when clearly of man’s making. It overrides grief and despair, diffuses rage, infuses one with a sense of purgation (…). At such rare moments memory ceases to be a burden. It becomes a quiescent stock-taking, an affirmation of existence in the present and a resolve in defense of unborn generations » (Soyinka, 2000 : 35). Nestas estratégias interpessoais de construção da pacificação e, por conseguinte, da abertura de futuros encontram-se as ‘revoluções moleculares’ (Boff, 1999) das tarefas quotidianas de cuidado para com o futuro. Tal passa pela prática do ‘esquecimento’, sem esquecer, e do perdão. David Gross explica que « at the heart of this outlook was the assumption that remembering by its very nature tends to be more constraining, and at times more destructive (…) when on lives with too much awareness of his or her past, that past can easily become oppressive. (…) forgetting began to be regarded as the path that leads to ‘wholeness’ – with wholeness now redefined to mean not a complete and successful integration of the past into the present but something very nearly the opposite : an expansive unfolding of all one’s suppressed or denied possibilities » (2000 : 52-53). Embora foquem os processos de perdão inter-grupos, Neto e Pinto demonstram precisamente esta questão em Angola pós-guerra civil : « the aim of intergroup forgiveness process is reconciliation » e que « intergroup forgiveness does not need to be strictly conditionned on adequate reparation and compensation », sendo ainda recusada a ideia segundo a qual a reconciliação deverá ser impulsionada e guiada pelas autoridades (2007 : 772). Pese embora, pois, o seu apelo sobre a necessidade de tornar a memória e a história nos pilares da justiça história, Soyinka recusa o peso paralisante do ressentimento trazido pela experiência da violência extrema. Para Soyinka, ficar prisioneiro do passado significa perder « the ability to walk again » (2000 : 21) e neutralizar os conteúdos emancipatórios da memória que, para evocar as palavras de Benjamin, fulguram em momentos de perigo. Aqui se encontra também uma opção radical entre o ressentimento e a possibilidade de futuro, a qual é consubstanciada como a questão central de sociedades que, submetidas a violências atrozes de longa duração, se tornaram especializadas na gestão da sobrevivência. O valor absoluto da paz e a prática do cuidado por relação ao futuro – praticada de modo mais intenso no seio do ambiente familiar -, conduzem a uma significativa disponibilidade para ultrapassar feridas, mesmo na ausência de um pedido de perdão. No estudo conduzido por Neto e Pinto em Luanda, atrás mencionado, era evidente que os participantes « were well aware that reconciliation presupposes reciprocity, but they were also persuaded that in some (apparently desperate) cases, where the former enemy persistently denies any responsibility, it may be better to forgive anyway in order to achieve closure » (2007 : 725). Vivido não como a procissão triunfal do progresso, mas como a acumulação das ruínas do sofrimento humano, o passado mostra que o futuro, ao invés de ser o caminho que conduzirá sempre ao progresso ou à redenção, é igualmente susceptível de se transformar no caminho da frustração e do desastre. Por outro lado, se a ideia, segundo a qual por mais miserável que seja o presente da experiência, a expectativa do futuro pode ser sempre redentora, fazendo com que se tolere o presente, a recusa do retorno do passado, permite o ajuizamento crítico do presente e torna o futuro objecto de cuidado. Deste modo, embora « Quem atira pedra, esquece. Mas quem é ferido, vai ao espelho e vê a cicatriz », como vários entrevistados referiam, o mais velho Kianda lembrava : « O céu é hoje. O inferno é hoje. Isso que tás a fazer é o seu céu. É o que lhe vai dar o pão amanhã. Se tem seus filhos, serão seus anjos que amanhã lhe vão cuidar. Se você tem a sua vida e não preparas o futuro, ai, aí é o inferno ».

Reflexões finais

Na sua crítica às formas de intensificação do pensamento abissal que conduz à progressiva disseminação de regimes de fascismo social, Santos alerta para a necessidade de um pensamento pós-abissal. O pensamento pós-abissal preconizado pelo autor exige a superação da auto-referencialidade obsessiva da modernidade ocidental, mediante o recurso às epistemologias do sul. Confrontando estas a monocultura da ciência moderna, tais epistemologias deverão produzir a co-presença radical do que foi activamente desqualificado e produzido como não existente, não válido, não verdadeiro.

Na sua vocação pós-abissal, as epistemologias do sul constituem-se, assim, como um campo específico da ampliação do real – específico, porque, ao invés, de expandir o real da razão metonímica em função de uma auto-referencialidade que canibaliza a diferença, transfigurando-a como elemento ou atestação dos seus pressupostos e da realidade por ela produzida, amplia o real sob o signo do diverso, isto é, práticas, conhecimentos, saberes, cosmovisões, sociabilidades que foram sendo historicamente desqualificadas como arcaicas, improdutivas, inferiores, inexistentes e utópicas (no sentido de irrealizáveis).

Esta ampliação do real é, no contexto deste trabalho, prosseguida em dois trilhos paralelos : através de uma ecologia das temporalidades e através de uma ecologia dos saberes. De facto, tendo por objectivo principal o desenvolvimento de uma análise pós-colonial sobre a experiência e a memória do colonialismo português em Angola, tornava-se imperativo proceder a uma ecologia das temporalidades que fosse capaz de visibilizar as disjunções, descontinuidades e dissonâncias que as formas de nomeação e interpretação da relação colonial pelos sujeitos, outrora colonizados, trazem consigo e que foram sendo secundarizadas e silenciadas quer pela prevalência de uma história imperial, produzida no contexto da relação colonial, quer ao nível de alguma da historiografia pós-colonial e onde se re-elaboram referências, vocabulários e imaginários naturalizados. Ancorado em narrativas de memória, o exercício da ecologia das temporalidades mostrou os múltiplos efeitos redutores e despolitizantes do sentido de temporalidade linear, sobre o qual assentam as periodizações históricas e as análises sobre a relação colonial convencionais. Por ela, aquilo que é normalmente concebido como unidades sequenciais e delimitadas que organizam processos e fases históricos, bem como as noções de passado, presente e futuro, desvelam-se como pontos de referência móveis, deslocalizáveis e re-activáveis, os quais são mutuamente constituintes e os quais convivem em tensas relações de coevidade.

Impossível é a ambição totalitária de fixar tais pontos de referência como se fossem marcos de quilometragem de uma estrada na tentativa de criar uma explicação global e unidirecional. Na realidade, o global dificilmente é unidirecional : as narrativas de memória trilham múltiplos caminhos e interpelam múltiplos destinos, isto é, são accionadas diferentemente consoante os propósitos, sendo detentoras de uma polivalência significativa que é, por vezes, povoada por (aparentes e não aparentes) paradoxos e ambivalências. Elas são ‘palimpsestos temporais’. Este entendimento do passado, presente e futuro como referências móveis, mutuamente constituintes e coevas, implica a superação da obsolescência implícita na ideia de temporalidade linear e que tende a instituir o passado como monumento inerte, cujas evocações perdem, nesses termos, o potencial de crítica e engajamento transformativo no presente e do futuro.

Por outro lado, o potencial de paralisia que o confronto entre uma monocultura do conhecimento, onde a autoridade colonial é a figura central do próprio conhecimento histórico, e as histórias e memórias historicamente desqualificadas, é superado mediante relações dialógicas sustentadas em práticas dialógicas de tradução inter-cultural. De facto, a tradução inter-cultural proposta por Santos constrói-se numa zona de contacto, onde as culturas trazem aquilo que de seu consideram ser passíveis de tradução recíproca. Operando como porta de entrada para aceder às dissonâncias, descontinuidades e disjunções das experiências históricas do(s) encontro(s) colonial(ias), a ecologia das temporalidades permite que o empreendimento da tradução seja, de facto, inter-cultural e não seja reduzida a mais um recurso adicional da reprodução expansiva da razão metonímica. A análise das narrativas de memória requer claramente a superação da temporalidade linear em que os exercícios de periodização historiográfica se ancoram. Essa superação torna-se possível através da ecologia das temporalidades que obriga ao diálogo com estas memórias e narrativas. Esse diálogo permite a visibilização das formas como a experiência e a memória (directa e transmitida) do colonialismo extravasam e implodem as unidades sequenciais que organizam o tempo linear. Essa visibilização, por seu turno, desvela como o passado é presentificado e como opera como parâmetro de ajuizamento sobre o presente. Simultaneamente, a ecologia das temporalidades apoia, requer e conduz ao exercício de uma ecologia dos saberes. No caso das narrativas de memória em apreço, não é possível dissociar ambas as ecologias. Elas são parte integrante e inalienável do esforço de construir conhecimento que, também simultaneamente, se deve constituir como justiça cognitiva e como produto do diálogo com a diversidade epistemológica do mundo. De facto, considerando as especificidades da temporalidade destas narrativas de memória e da própria memória, considerando também que estas histórias, memórias, experiências e narrativas foram sendo historicamente destituídas de valor epistemológico e, por fim, considerando que, no que diz respeito à história do colonialismo, os documentos e testemunhos disponíveis referem-se sobretudo à própria autoridade colonial, restando, com poucas excepções, aos sujeitos colonizados, o mundo imaterial da memória, a ecologia dos saberes deverá incidir directamente sobre a possibilidade de construir uma relação epistemológica entre o saber da história e o saber da memória. Tal passa, como discutido, pela construção do estatuto epistemológico da memória e pelo reconhecimento da validade das suas formas de conhecimento. A relação epistemológica entre história e memória, sobretudo quando esta última é pertença de sujeitos historicamente constituídos como subalternos, para evocar a terminologia pós-colonial, e quando é ancorada em lugares de enunciação distintos (seguindo as propostas relativas a uma hermenêutica diatópica), requer o confronto entre diversos sentidos de temporalidade, permitindo, nessas condições, a superação da auto-refencialidade epistémica e, por conseguinte, a abertura à diversidade epistemológica. Fundamentalmente, a ecologia dos saberes amplia e democratiza a produção de conhecimento, para além de monopólios instituídos. No campo das relações entre história e memória, a ecologia das temporalidades e a ecologia dos saberes instituem-se, então, como inter-historicidade. As histórias coloniais constituem, pois, um espaço por excelência para o exercício da hermenêutica diatópica que se converte num exercício de inter-historicidade. A inter-historicidade não dispensa a recuperação da memória enquanto objecto de interrogação e fonte de uma epistemologia crítica que incide sobre as condições e os termos da produção do conhecimento histórico validado, assim como sobre as condições e as enunciações dos imaginários sociais que aquele inaugura e sedimenta. As narrativas de memória aqui discutidas revelam os limites da razão metonímica e apontam significativamente para a forma como a razão proléptica, sendo produto da razão indolente, é um particularismo que não tem ressonância universal noutros contextos. Elas são também reveladoras de subjectividades construídas como complexas constelações dos topoi da fronteira, do barroco e do sul. Elas são produzidas por sujeitos que descentram os discursos hegemónicos e desvelam as formas de conhecimento das margens, que desestabilizam e desarticulam sentidos e significados naturalizados pela monocultura do conhecimento moderno e, ainda, por sujeitos que são particularmente aptos para dar voz à experiência colectiva da violência da dominação colonial. Os efeitos da razão metonímica são especialmente visíveis nas formas de violência, epistémica, social e ontológica, engendradas pela política colonial de instrução e educação. A sua crítica permite também ver como, no decurso de todas as transfigurações do poder colonial (abolindo formalmente a escravatura e instituindo o trabalho forçado, por exemplo), a experiência dos sujeitos foi marcadamente uma experiência de impossibilidade permanente. Nesta óptica, a nomeação do colonial como escravatura possui uma clarividência histórica de maior alcance do que a da historiografia dominante quando dá primazia analítica aos relatos da autoridade colonial em detrimento da experiência e das memórias dos sujeitos do colonialismo. Para além disso, o enfoque nas práticas de desarticulação permite ampliar o real fora do jugo da razão metonímica e demonstra como as identidades subalternas se definem, não só pela opressão a que estão sujeitas, mas também pelas formas de resistência, criticismo e sátira dirigidas ao ‘falso civilizador’. As narrativas de memória mostram ainda como referências icónicas, enquadradas de modo ‘anti-histórico’, se constituem como estratégias contra-hegemónicas que permitem a auto-nomeação e que fazem falar os silêncios sobre a vacuidade das missões civilizadoras portuguesas. Por fim, estas narrativas são produzidas como ‘palimpsestos temporais’, nos quais a memória é uma prática moral de ajuizamento sobre o presente, ao converter o passado como modelo heurístico de compreensão e como parâmetro de comparação sobre e para esse mesmo presente. Nestas narrativas desenrola-se, pois, uma crítica pós-colonial significativa. Ao nível da razão proléptica, a economia de memória baseada numa praxiologia de cuidado para com o futuro é demonstrativa de como aquela é, fundamentalmente, um particularismo da modernidade ocidental. O futuro da razão indolente é sobrecodificado como horizonte de redenção abstracta. Esta concepção isenta a actividade humana da sua responsabilidade perante o futuro, pré-determinado como está pela noção historicista de progresso. Constituindo-se, em contrapartida, como praxiologia do cuidado, a economia de memória desmente frontalmente as ilusões triunfalistas da razão proléptica. Nela, o futuro é objecto de uma lealdade antecipada. Nela, a esperança não é uma espera ; é uma prática. Nela, o futuro significa um engajamento com o presente, de modo a preservar a possibilidade de futuro, face ao potencial de conflitualidade social de passados traumáticos e face aos perigos de uma memória obsessiva sobre as violências da razão metonímica que sustentou a dominação colonial. Encarada sob o prisma da sociologia das emergências, a praxiologia do cuidado é uma emergência que, no presente, assegura outra emergência : a do futuro. Uma nota final sobre Narciso : a comunalidade ou quem se lembra de Platão ?

Thus we might understand ‘I know’ as a way of recognizing the fact that we belong to this humanity of ours because we are born and are condemmed to live together. (…) What does matter is being born together » (Mudimbe cit in Golan et al, 1999 : 115).

No âmbito das abordagens pós-coloniais, é, pois, evidente a atenção dada às condições de/para tematizar a diferença no contexto de preocupações e engajamentos (científicos, éticos e políticos) para com a reposição da justiça histórica e ontológica. Na verdade, uma das críticas mais perturbadoras dirigidas contra a configuração epistemológica da modernidade ocidental que sustentou processos de expansão europeia colonial e capitalista, refere-se precisamente a uma dupla impossibilidade de se ser sujeito : impossibilidade instituída pela linguagem (bem como pelas disciplinas, poderes e instituições) dessa mesma configuração, e impossibilidade de se ser reconhecido fora dessa linguagem e respectiva biblioteca ou canon. No limite, a única existência possível para um sujeito impossível é a sua reificação. A questão que se coloca, porém, é explorar como o diálogo entre o foco na ‘politics of difference’, com base nas possibilidades permitidas epistemologicamente, e uma abordagem ontológica, entendida não como construção de definições, mas de interrogações, poderá permitir ir além de novos essencialismos, literalismos e solipsismos. Fundamentalmente, trata-se aqui de explorar a possibilidade de conceber e explorar o arquivo sedimentar e processual da história como instrumento disponível para o exercício de uma ontologia crítica, tal como foi conceptualizada por Foucault. Interrogar, neste âmbito, a produção do conhecimento histórico não é acto fortuito. Enquanto trilho analítico, a história permite ancorar a análise a ser produzida pelas propostas que se definem como pós-coloniais no quadro do sistema-mundo, bem como permite, por essa mesma razão, aceder à complexidade das relações entre escalas e entre fenómenos, tais como colonialismo e capitalismo, políticas de identidade e diferença, passados e presentes. Quer isto dizer que a história – caso não seja lida unidireccionalmente como um exercício global de poder de conversão e, por conseguinte, da ampliação da mesmidade por via das forças históricas da globalização epitomizada pela expansão europeia – poderá ser desvelada como campo de questionamento recíproco de realidades, posicionamentos e escalas. Tendo em mente estes processos, poderá ser de utilidade a interrogação sobre a possibilidade de se pensar a diversidade epistemológica, incluindo a biblioteca colonial, em termos de comunalidade ou de arquivo comum, cujas activações – contingenciais e selectivas – condensam opções e identidades particulares em dinâmicos processos de re-actualização e, talvez mais relevante ainda, de reposicionamento face ao outro. Neste âmbito, importa sublinhar que a ideia de arquivo , associada a uma noção de comunalidade, enquanto comum-pertencer, poderá ter a virtualidade de ser pensada como instrumento de uma ampliação particular do real – ampliação essa caracterizada pela hibridação (o que implica, no mínimo, uma profunda relativização do essencialismo estratégico) e pela persistente admissão do novo. Tal significa colocar a hipótese se tal virtualidade pode ser pensada como um momento de transcendência, não como realidade última de uma síntese dialéctica pré-determinada, fixa e perene, mas como momento inaugural do novo, isto é, como momento em que novas possibilidade de ser são inauguradas na sua dignidade e se encontram disponíveis e não restringidos a regimes exclusivistas de verdade, autoria, identidade e diferença (comunalidade). A aversão normalizada às ideias de transcendência, transculturalidade e comunalidade, advém da recepção acrítica de processos sedimentares de esteorotipização conceptual e poderá ser mitigada através da revisitação crítica de dois conceitos que estruturam as noções (e ambições) relativas à identidade e diferença : o particular e o universal. A subjugação histórica do particular pelo universal tornou este último numa entia non grata. O problema colocado pelo postular, ou não, do universal e da sua relação com o particular, dominou o pensamento filosófico, tal como é manifesto em Platão, Aristóteles, no nominalismo medieval e moderno, bem como nos acesos debates de Quine e Goodman, entre muitos outros (cf. Zimmerman, 2011). A questão do universal tem sido mormente conotada com o postular de uma dada realidade, princípio, valor ou prática que é válida independentemente de qualquer tipo de variável ou especificidade. O universal absorve e, assim, disciplina o particular. Percursor do idealismo absoluto hegeliano, o idealismo transcendental de Kant radicava exemplarmente a universalidade nas características internas da própria razão. Erigindo o racionalismo radical como a postura filosófica e científica por excelência, a revolução kantiana afirma a autonomia irredutível da razão que impõe as suas leis ao real. Esta possui um carácter universal, no sentido de único e necessário, na medida em que se afigura como o caminho da verdade e do conhecimento. O papel da razão consistiria, pois, em assegurar a plena aplicação da lei da unidade universal e necessária, pese embora as antinomias dilemáticas encontradas ao procurar, como via única disponível, construir o acesso ao absoluto por via das categorias que detêm apenas efectividade no plano sensível . Aliás, é de salientar como, na história das ideias modernas do Ocidente, especialmente durante o século XIX, no contexto da tradição epistemológica do positivismo, o universal passa a ser explicitamente associado à ideia de evolução, enquanto espécie de maiêutica aplicada à diversidade das formas de vida. Recorde-se, a este propósito, que Spencer conceptualiza a lei universal da evolução como integração da matéria e dissipação do movimento : « ‘A evolução é uma integração da matéria acompanhada duma dissipação da mesma, durante a qual a matéria passa duma homogeneidade indefinida, incoerente a uma heterogeneidade definida, coerente, e durante a qual também o movimento retido sofre uma transformação análoga’ » (cit in F.-J. Thonnard, 1953 : 753). Nesta acepção, tornam-se facilmente compreensíveis as objecções dirigidas contra esta noção : os seus usos (ideológicos e políticos) constituíram frequentemente um atentado à lei da (e ao direito à) diferença e, consequentemente, a reais e concretas possibilidades ontológicas. Tal manifesta-se na vivacidade da discussão sobre a possibilidade e, inclusivamente, a pertinência de uma filosofia que seja africana. Eze, por exemplo, critica Irele (1996) neste sentido quando este último, ao assumir analiticamente o colonialismo não como uma disrupção histórica da historicidade africana, mas como um elemento integrante desta que influenciou estruturalmente a existência contemporânea, problematiza uma distinção analítica entre o potencial emancipatório dos valores universais abstractos propostos pelo Iluminismo e a distorção de que são alvo historicamente. Para Eze, de facto, a discussão sobre valores ou ideias como esquemas universalmente neutros obscurece o facto de esses mesmos valores e ideias serem parte integrante de práticas concretas. Nas suas palavras, « Ideals do not have meaning in a historical vacuum » (1997 : 13). Contudo, na sua origem etimológica, a ideia de universal está associado precisamente associado à ideia de um comum-pertencer – ideia esta que é basicamente o reconhecimento de uma condição, ou qualidade, partilhada à qual se pode ter acesso, e não o postular de uma dissolução identitária numa totalidade homogeneizante. Na realidade, no domínio da lógica, a ideia de universal interroga « what it is for things to share a feature, attribute, or quality or to fall under the same type or natural kind » (Zimmerman, 2011). De modo ainda mais enfático, Mudimbe esclarece que « From the fifteenth century onwards (…), the universal and the particular have been used to bend the obvious and adjust very poor fallacies, including cultural essentialisms that are (…) reifications. The fact of the matter is that, from textbooks of logic as well as from simple common sense, (a) universal and particulars do not exist in themselves, (b) universals exist in the function of particulars ; in other words, universals proceed from particulars and (c) universals are not entities but qualities of elements, empirical things, abstract elements, invented realia » (2013 : 68-69). O que podem trazer de novo estas re-leituras ? Procurando distanciar-se criticamente da estereotipização conceptual, podem contribuir para re-significar a ideia de universal e, por arrasto, as de transcendência e comunalidade. Por um lado, a clássica consideração aristotélica, segundo a qual o uno apenas pode existir no múltiplo, permite pensar o universal como mantendo uma relação de dependência embrionária relativamente ao múltiplo. O universal é, pois, a interrogação sobre o que poderá ser partilhável pela infinitude dos particulares : uma interrogação sobre os significados da ideia de ‘condição humana’ e uma busca eticamente orientada por ressonâncias empáticas que ampliem o espectro da liberdade e da auto-nomeação. Não significará, assim, nesta acepção, a disciplinarização pré-determinada dos particulares em função de uma ideia ou referencial absolutamente independente. A ideia de uma comunalidade cuja qualidade seja transcultural (isto é, esteja disponível), construída a partir da inter-culturalidade, recebe uma objecção fácil : a de repetir a dialéctica hegeliana e, desse modo, re-afirmar um universal disciplinário. Uma primeira contra-objecção poderá, por sua vez, ser formulada a partir de uma reconceptualização da noção de dialéctica : dialéctica como espaço libertador de uma ontologia crítica pela qual se inauguram as possibilidades de se ser e que se mantém numa relação de disponibilidade e de transferibilidade entre sujeitos e comunidades. Ao contrário dos efeitos reificantes e aprisionantes do essencialismo estratégico, as identidades dialécticas poderão assumir-se como o resultado mais fecundo da comunalização do arquivo, pois, « while they are based on a set of experiences, and on internalization of what is common to these experiences, they do not exclude the possibility that future experiences will subvert presente identites » (Masolo, 1997 : 298). Uma segunda contra-objecção argumentará que este arquivo em comunalidade existe apenas enquanto disponibilidade que pode, em liberdade, ser activado no contexto de uma ontologia crítica – a qual é, necessariamente, não essencialista, processual e relacional. Permitirá tal consideração pensar na possibilidade do universal (na figura de um arquivo comunalizado) como uma relação que disponibiliza e que coloca em aberto particulares em comunicação ? Assinalará, por seu turno, essa possibilidade um momento de transcendência, entendido como processo dinâmico de exceder uma dada realidade, ampliando-a ? Trarão estas questões algum sentido diferente à enunciação da diferença ? Do ponto de vista ético e político, haverá busca efectiva pela ressonância empática entre sujeitos em liberdade e em relação ? Tornar-se-á a enunciação em anunciação ? Inaugurar-se-á uma humanidade não etnocêntrica ? Poder-se-á, na verdade, usufruir do mote sartriano, « I am what I am not and I am not what I am » ?

Lembrar Platão

Na versão de Ovídio sobre o mito de Narciso (Metamorphoses 3. 342-510), transcrita por Morford e Lenardon (1995 : 246 e ss), é possível ler os seguintes excertos : « When her time had come, the beautiful Liriope bore a child, with whom even as a baby the nymphs might have fallen in love. And she called him Narcissus. She consulted the seer Tiresias, asking whether her son would live a long time to a ripe old age ; his answer was : ‘Yes, if he will not have come to know himself.’ For a long time this response seemed to be an empty prophecy, but as things turned out, its truth was proven by the unusual nature of the boy’s madness and death. (…) He was seen once as he was driving the timid deer into his nets by the talkative nymph, who had learned neither to be silent when another is speaking nor to be the first to speak herself, namely the mimic Echo. At that time Echo was a person and not only a voice. (…) Juno brought this about because, when she might have been able to catch the nymphs lying on the mountain with her love, Echo knowingly detained the goddness by talking at length until the nymphs could run away. When Juno realized the truth, she exclaimed : ‘The power of that tongue of yours, by which I have been tricked, will be limited ; and most brief will be the use of your voice’. (…) O how often she wanted to approach him with blandishments and tender appeals ! Her very nature made this impossible, for she was not allow to speak first. But she was prepared to wait for his utterances and to echo them with her own words – this she could do. By chance the boy became separated from his faithful band of companions and cried out : ‘Is there anyone there ?’ Echo replied : ‘There !’. (…) He was persistent, beguiled by the reflection of the other’s voice, and exclaimed : ‘Come here and let us get together’, and never would she answer any other sound more willingly. She emerged from the woods (…) and rushed to throw her arms about the neck of her beloved. But he fled and in his flight exclaimed, ‘Take your hands off me ; I would die before I let you possess me’. She replied with only the last words, ‘Possess me’. Thus spurned, Echo hid herself in the woods (…). Then only her voice remained (..) she is never seen on the mountains, but she is heard by everyone. The sound of her echo is all of her that still lives. Narcissus had played her so, just he had previously rejected other nymphs (…) and as well males who had approach him. Thereupon one of tjose scorned raised up his hands to the heavens and cried : ‘So may himself fall in love, so may he not be able to possess his beloved !’. The prayer was a just one, and Nemesis heard it(…) There was a Spring (…) Here the boy lay down, tired out by the heat and his quest for game and attracted by the pool and the beauty of the place. While he was trying to quench his thirst, it kept coming back again and again, and as he continued to drink, he was captivated by the reflection of the beauty that he saw. He fell in love with a hope insubstantial (…). He gazed in wonder at himself, clinging transfixed and emotionless to what he saw (…) Unwise and unheeding, he desired his very self (…) He raised himself up a little and stretching out his arms to the surrounding woods exclaimed : ‘ (…)I behold my beloved, but what I see and love cannot have ; such is the frustration of my unrequited passion. (…) I am you ! I realize it ; my reflection does not deceive me ; I burn with love for myself. (…) And now grief consumes my strengh ; the time remaining for me is short, and my life will be snuffed out in its prime’. When Echo saw what he had become, she felt sorry, even though she had been angry and resentful. Each time the poor boy exclaimed ‘Alas’, she repeated in turn echoing ‘Alas’. And when he said ‘Farewell’, Echo repeated ‘Farewell’ too. (…) Then too, after he had been received in the home of the dead belowhe gazed at himself in the waters of the Styx. (…) the Dryads wept, and Echo sounded their laments ». Esta versão alerta, claramente, para o perigo da auto-referencialidade. Nela, a auto-referencialidade é a exaustão última. Nela, o que se encontra é o esgotamento, a solitude em desespero e a morte, causada pela negação da reciprocidade. De facto, nas várias versões disponíveis do mito, o tema da negação da reciprocidade e as suas consequências permanece como estruturante. Em Pausânias, por exemplo, na sua obra ‘Description of Greece’, faz referência ao mito de Narciso nos seguintes termos : « [9.31.7] On the summit of Helicon is a small river called the Lamus. (…) In the territory of the Thespians is a place called Donacon (Reed-bed). Here is the spring of Narcissus. They say that Narcissus looked into this water, and not understanding that he saw his own reflection, unconsciously fell in love with himself, and died of love at the spring. But it is utter stupidity to imagine that a man old enough to fall in love was incapable of distinguishing a man from a man’s reflection. [9.31.8] There is another story about Narcissus, less popular indeed than the other, but not without some support. It is said that Narcissus had a twin sister ; they were exactly alike in appearance, their hair was the same, they wore similar clothes, and went hunting together. The story goes on that Narcissus fell in love with his sister, and when the girl died, would go to the spring, knowing that it was his reflection that he saw, but in spite of this knowledge finding some relief for his love in imagining that he saw, not his own reflection, but the likeness of his sister ». Traduzirá esta narração alternativa algo distinto da auto-referencialidade absoluta encontrada na versão de Ovídio ? A figura da irmã gémea parece simbolizar uma busca de si mesmo e, nesse sentido, a semelhança relativamente à narração de Ovídio é afirmada. Nessa linha de raciocínio, o que Pausânias nos narra é fruto, pois, de uma racionalização, cujo objectivo é tornar a estrutura narrativa do mito mais plausível e reconhecível e cujo resultado é a história de um amor incestuoso. Uma outra razão de interesse deverá ser explicitada nesta evocação de Pausânias. É que, embora seja sua irmã e semelhante a si próprio, a amada, nesta versão, é distinta de Narciso. O que nesta narração parece ser enfatizado é a relação de pertença entre os dois : uma relação de mútua constituição. Para além deste primeiro nível de semelhança aparente, a leitura comparada permite ver que, de facto, nas duas versões, subsiste o tema da negação ou da impossibilidade da reciprocidade. No caso de Ovídio, essa negação resulta da recusa e da rejeição explícita do amor de Eco por Narciso. No caso de Pausânias, trata-se, todavia, da impossibilidade de reciprocidade imposta pela morte da amada. Nas duas situações, a ausência de reciprocidade afunda-se num estéril exercício reflexivo, simbolizado pela contemplação do reflexo de si mesmo. O próprio sujeito, como Narciso, morre como reflexo de uma impossibilidade - um desejo perene de si mesmo, apenas alcançável num outro que, por ser inatingível, não o designará. Discutindo o sistema de significados das distintas versões do mito de Narciso, Pellizer claramente demonstra como elas « express a vast reflection that focuses on the definition of the self and the other, on reflexivity, complementariness and amorous reciprocity » (1987 : 116-117). E, citando Fedro, de Platão, Pellizer desvela como tais impossibilidades são superadas quando o acto reflexivo coincide com gesto da reciprocidade no momento em que nos vemos pela primeira vez : « ‘he cannot explain how, but without realizing it, sees himself in the loved one, as in a mirror (hosper en katoptroi)’ » (1987 : 117).

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NOTES

[1] Fábula dos Vimbundos de Caluquembe. In Hauenstein, 1965 : 22.

[2] Tradução do autor.

[3] Esta narração, adaptada pela autora, corresponde à versão mais conhecida da lenda de Narciso. Para mais informação, consultar, Kravitz (1975) e Morford e Lenardon (1995).

[4] cf., Santos, 2002 ; 2004 ; 2006 ; 2007 ; 2007ª ; 2009 ; 2011 ; 2011ª ; Santos et al, 2004 ; Santos ; Meneses, 2011.

[5] Em sentido concordante, e apoiando-se em Lévi-Strauss, Mudimbe argumenta o seguinte : « everyday stories witness an intellectual configuration, as do, in their own way, the apparently more complex discursive systems. (…) in everyday stories, one observes beliefs and their connection to valuing attitudes and actions they inspired, as well as the manner in which these beliefs are aimed at goals. Often, they confirm common sense in the process, and the progressive constitution of an appropriateness, and a good probability of the truth, in what is being valued, designated, or remembered » (Mudimbe, 2009 : 419/ 422).

[6] De facto, tem sido esta a leitura dominante. Para Olick (2011), v.g., reportando-se ao espaço ocidental, é, precisamente, no momento em que se agudizam estas aporias e se desvanecem as ancoragens modernas da subjectividade e da identidade que a problemática da memória ganha novo impulso.

[7] Heidegger fornece uma descrição exemplar desta concepção cultural de tempo : « O espaço de tempo vulgarmente entendido no sentido de distância entre dois pontos do tempo é o resultado do cálculo do tempo. É através dele que o tempo, representado como linha ou parâmetro – tempo que assim é unidimensional -, é medido por números. O elemento dimensional do tempo, assim pensado como sucessão de agoras, é tomado de empréstimo da representação do espaço tridimensional » ([1962] 1991 : 213).

[8] Para uma discussão sobre a crítica a este ‘ethos do novo’, ver Viegas e Gomes, 2007.

[9] Como também expõe Santos, na modernidade ocidental, « comum às diferentes teorias da história foi a desvalorização do passado e o hipostasiar o futuro. O passado foi visto como consumado e, portanto, como incapaz de fazer a sua aparição no presente » (2006 : 47).

[10] Apesar do seu antagonismo, ambas as correntes convergem, como se verá, na direcção de uma nova aliança entre a emergência e a consolidação da figura moderna do Estado-Nação e o estatuto do trabalho histórico, sendo este último um dos pilares constitutivos da afirmação daquela.

[11] cf. 1988, 1989, 2002, 2006, 2007, 2009, 2011ª.

[12] No que diz respeito ao materialismo histórico, refira-se a crítica de Gramsci sobre a visão teleológica que naquele estava presente (Crehan, 2004 : 91 e ss).

[13] Recorde-se a este propósito como a reacção romântica ao historicismo conduziu à formulação da mesma noção de negação de coevidade, atrás mencionada, assim como a análise de Fabian no domínio da antropologia (1983). Saliente-se, por fim, a discussão de Santos sobre a construção de uma nova literacia de temporalidades (2006), a qual evoca a noção debatida por Latour acerca da ‘contemporaneidade politemporal’ (1991).

[14] Menção especial para Edgar Morin e IIlya Prigogine. Relativamente ao primeiro, ver « La epistemologia de la complejidad » in A gazeta de Antropología. 2004. N.º 20. Artículo segundo. Disponível em http://www.ugr.es/ pwlac/G20_02Edga.... Consultado a 4 de Abril de 2011. E também, « Restricted complexity, general complexity ». Palestra apresentada no Colóquio « Intélligence de la complexité : épistemologie et pragmatique », Cerisy-la-Salle, França, 26 de Junho de 2005 e publicada em Carlos Gershenson (org.), 2007, Worldviews. Science and us. Philosophy and complexity. Singapore : World Scientific Publishing Co. 5-29. Relativamente a Prigogine, ver El fin de las certidumbres, 1997, Santiago de Chile : Editorial Andres Bello. Paul K. Feyerabend, outro importante teórico, será brevemente discutido.

[15] episteme

[16] Neste sentido, « a razão metonímica diminuiu ou subtraiu o mundo tanto quanto o expandiu ou adicionou com as suas próprias regras » (Santos, 2002 : 245).

[17] A sua obra, publicada em 1965, retrata as transformações das estruturas e dinâmicas familiares, de classe e parentesco na Inglaterra pré-industrial.

[18] É também neste sentido que Dussel (2000 ; 2005) argumenta pela realização da Alteridade negada da modernidade colonial e imperial como dinâmica fundadora de um projecto de transmodernidade, capaz de transcender os limites e as violências da razão moderna.

[19] « Ao libertar as realidades alternativas do estatuto do arcaico, a sociologia das ausências substitui a monocultura do tempo linear pela ecologia das temporalidades ». Esta parte do reconhecimento segundo o qual « as sociedades são constituídas por várias temporalidades e de que a desqualificação, supressão ou ininteligibilidade de muitas práticas resulta de se pautarem por temporalidades que extravasam o cânone temporal da modernidade ocidental capitalista. ». Neste sentido, a « dilatação do presente ocorre (…) pela relativização do tempo linear e pela valorização de outras temporalidades que com ele se articulam ou com ele conflituam » (Santos, 2002 : 251-252).

[20] Saliente-se a este propósito a profícua intertextualidade que poderá ser estabelecida entre Santos (2006) e Koselleck (2004).

[21] Na acepção de Ainda-Não de Ernst Bloch, na qual Santos se ancora.

[22] « Mehta, argue Mohanty, écrit avec l’intome conviction qu’il est possible d’appliquer l’herméneutique heideggérienne à la tradition indienne pour retrouver celle-ci. Mais ce retour (..) n’est rien une ‘tentative de restauration du passé (…). C’est une appropriation nouvelle et plus radicale dês commencements (…) ; c’est une répétition qui orientée par le présent, implique de secouer e ‘poids mort’ de la tradition pour en libérer les forces dissimulées » (Renault, 2012 : 6).

[23] Entendida não de modo reificado, mas como aquilo que funda ou abre uma possibilidade.

[24] Em suposta contraposição a sociedades não modernas, onde o primado do colectivo seria acompanhado pela preponderância da memória colectiva.

[25] Para o autor, tal conceptualização tem sido reforçada pela ascensão de disciplinas científicas que tomam a memória como seu objecto de indagação, associando, ainda, a reificação da memória com os meios e as práticas tecnológicas de preservação do passado como algo que pode ser objectivado, transaccionado e comodificado. Sobre novos desenvolvimentos desta questão, ver Olick (2011).

[26] Ewald Hering foi um fisiologista alemão influente durante as últimas décadas do século XIX e início do século XX. Escritor e tradutor, Samuel Butler produziu, também no século XIX, ensaios sobre o pensamento evolucionista. Da mesma época, Haeckel, médico e proeminente defensor das teorias de Darwin, formulou e sistematizou a célebre analogia entre filogenia e ontogenia.

[27] O que Zerubavel viria a chamar de ‘Outros mnemónicos’ (2011).

[28] Reconhecendo que as análises que decorrem de uma apropriação não reflexiva ou crítica do conceito halbwachiano de ‘memória colectiva’, correm o risco de ignorar o papel da subjectividade no trabalho cultural da memória, reduzindo esta, de forma quasi positivista, a um produto de forças sociais relativamente abstractas, Fentress e Wickham defendem a elaboração de « uma concepção de memória que, sem deixar de prestar plena justiça ao lado colectivo da vida consciente de cada um, não faça do indivíduo uma espécie de autómato, passivamente obediente à vontade colectiva interiorizada » (1992 : 18). De facto, embora enfatize a qualidade intersubjectiva e identitária da memória e embora saliente a diversidade e o carácter transformativo, não fixo, da memória colectiva, Halbwachs parece desqualificar a memória individual, o que motiva Ricoeur (2000) a considerar criticamente que Halbwachs faz um uso quase que kantiano da ideia de quadros sociais da memória que se imporiam unilateralmente à consciência individual.

[29] Especialmente os presentes nas obras : « Moisés e a religião monoteísta » (1990) e « Totem e tabu. Alguns pontos de concordância entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos » (2001).

[30] Neste âmbito, uma das referências seminais é Primo Levi, judeu italiano sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz (Levi, 2004). Ver, a este propósito, « Os que sucumbem e os que se salvam ». 2008. Lisboa : Teorema.

[31] Continua o autor : « De acordo com uma série de sondagens realizadas em Espanha entre 1975 e 1977, a manutenção da paz, a ordem e a estabilidade eram as principais prioridades dos espanhóis (...). Mesmo quando, a partir de 1977, a justiça, a liberdade e a democracia se sobrepuseram aos valores anteriores, estes continuaram a ser avaliados muito positivamente pela sociedade » (2004 : 113).

[32] Expressão cunhada por Alex Wilde, no artigo « Irruptions of memory : expressive politics in Chile’s transition to democracy » in Journal of Latin American Studies, 31 (2). 1999.

[33] Num outro texto, Brito et al ilustram estas ‘irrupções da memória’ em contextos de passado autoritário e repressivo, recorrendo a um observador argentino, para quem « ‘há uma constante vigilância, uma certeza do desastre, um conhecimento carnal do medo, um sentimento de que a história é sempre circular, que, como os corvos, dá voltas e mais voltas. E depois, lá está a amnésia voluntária’ » (Feitlowitz, 1998 : XI, cit in Brito, 2004ª : 189).[[Num outro texto, Brito et al ilustram estas ‘irrupções da memória’ em contextos de passado autoritário e repressivo, recorrendo a um observador argentino, para quem « ‘há uma constante vigilância, uma certeza do desastre, um conhecimento carnal do medo, um sentimento de que a história é sempre circular, que, como os corvos, dá voltas e mais voltas. E depois, lá está a amnésia voluntária’ » (Feitlowitz, 1998 : XI, cit in Brito, 2004ª : 189).

[34] Ver Caruth, 1996 ; Alexander, 2004.

[35] Ver também a colectânea de artigos em O livro negro do colonialismo, organizado por Marc Ferro (2004), nomeadamente os de Yves Bénot, Pap Ndiaye, Alastair Davidson e os de Elikia M’Bokolo.

[36] cf., Mwembu, 2005 ; Philips, 2005 ; Olik et al, 2011.

[37] Cf., Vansina, Jan, 1965, Oral Tradition. A Study in Historical Methodology. London : Routledge.

[38] De facto, como explica Santos, « In the field of knowledge, abyssal thinking consists in granting to modern science the monopoly of the universal distinction between true and false » (2007 : 47).

[39] Na realidade, Gadamer atribui à modernidade o privilégio de uma nova reflexividade, pela qual se terá « plena consciência da historicidade de todo o presente e da relatividade de todas as opiniões », e pela qual se estará pronto « a compreender a possibilidade de uma multiplicidade de pontos de vista relativos », através de « uma reflexão que se coloca, deliberadamente, na perspectiva do outro » (1998 : 17-18). Do ponto de vista da crítica pós-colonial, são evidentes as insuficiências de tal atribuição, especialmente a que decorre do facto, segundo o qual a crítica à ‘tradição’, assim como o trabalho hermenêutico entre tradições (a que corresponderá a ‘fusão de horizontes’) comungarem da mesma episteme e do mesmo horizonte de sentido e de experiência.

[40] Ankersmit (2001), outro teórico do construtivismo radical no campo da história, problematiza a forma como as leituras realizadas a partir de fragmentos do passado produzem imagens icónicas sobre esse mesmo passado. A partir do momento em que estas imagens icónicas se difundem pela história oficial e se estabilizam na memória colectiva, desafiar a sua veracidade torna-se mais complexo.

[41] É o que faz LaCapra no seu trabalho sobre o Holocausto, considerando o autor que « testemonies serve to bring theoretical concerns in sustained contact with the experience of people who lived through events and suffered devastating losses. They also raise the problem of the role of affect and empathy in historical understanding itself » (2001 : XVI).

[42] A nota dos editores TERRA : A partir daqui, por favor, consulte a versão em PDF do documento atual, a fim de ler, a partir de p. 67 em diante, as notas de rodapé, que já não estão inseridos na versão atual, bem como para ver fotos e mapas.NdR